domingo, 12 de abril de 2009

Sem espelho

Dário Borim Jr dborim@umassd.edu 

 Acabo de reler uma das mais pungentes narrativas que já encontrei nos últimos anos: "Narciso em férias”. É um conto autobiográfico de Caetano Veloso, uma jóia rara "escondida" em forma de capítulo de livro nas páginas centrais de seu enorme volume, Verdade tropical (Companhia das Letras, 1997). 

Lá se vê maravilhosamente a questão do "eu" (ou ego) em relação ao "corpo" do indivíduo. O "eu" está dentro ou fora do corpo? É o corpo parte do nosso próprio "eu"? Mas e se o corpo “desaparecer”, isto é, e se você deixar de percebê-lo? Nós, nessas circunstâncias, morremos? Enlouquecemos? E se, profundamente deprimido, você não conseguir nem chorar? E se não conseguir se onanizar? E se o corpo secar os dois fluidos humanos mais intimamente ligados à emoção, os do choro e do gozo, que não têm nada ou têm muito pouco em comum com os outros líquidos e excreções humanos, como a urina, a saliva, o suor, as fezes, as acnes, e as melecas — tudo isso é sinal barato de vida. 

Os grandes baratos do corpo são, de fato, os outros líquidos (um deles nem tão líquido): os líquidos do choro e do orgasmo. Mas, e se eles sumiram de você, e se você se sentir totalmente seco? E se você não se lembrar — como não se lembrou, Caetano — de ter escovado os dentes em dois meses? Este questionamento está todo lá, em “Narciso em férias”, um texto orientado por uma múltipla perspectiva diante das lembranças e dos traumas de uma experiência-limite: os dois meses em que Caetano Veloso passou em diferentes celas da Ditadura Militar, no Rio de Janeiro, entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969. 

A voz que narra e reflete sobre aquela desumana desventura legitimada pelo AI-5 se constrói ao mesmo tempo filosófica, biológica, psicológica, semiótica, e acima de tudo, confessional, questionadora de preconceitos e da distância entre o "eu" vivido, o "eu" que escreve, e o "eu" que lê aquele texto. Sob a gentil custódia da Polícia do Exército, o cantor-compositor baiano permaneceu detido durante duas semanas em uma cela solitária tão minúscula que ele era capaz de pôr as costas contra uma parede e tocar a outra em frente com seus pés. O silêncio e a solidão, o medo e a humilhação, a incompreensão do que se passava e do que estaria por vir — aquilo tudo lhe causava um processo de estranhamento que o levou a um tipo de loucura temporária. Por ora desacreditava em si mesmo (já que seu corpo se afastava de sua percepção) e em sua existência (pois a própria vida se tornara absurda, insípida, surda e muda). 

No entanto, pondera o narrador, “que benção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer mas também — e talvez principalmente — ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação!” (362). Restava ao presidiário político de apenas 26 anos uma forma de esperança. Parecia-lhe que poderia ser “salvo do horror a que fora submetido” se sentisse jorrar dele esses líquidos “que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito” (362). Para o memorialista, o pranto e a ejaculação são “vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande, paradoxo interdito à matéria” (362). “Narciso em férias” confirma certa percepção da condição humana explicada pelo psicanalista Jacques Lacan: o ego é basicamente um objeto, uma projeção artificial de subjetividade que se apóia nas imagens visuais que o indivíduo confronta no dia a dia, e nosso corpo faz parte desse cenário ao sentirmos que tem vida sob a pele e ao olharmos para ele diretamente ou através de um espelho. 

Além disso, nosso ego é intrinsecamente dependente do olhar de outras pessoas sobre nós: elas criam importantíssimas imagens para aquele mesmo cenário que compõe quem nós somos. Na companhia de outras pessoas vemos nos seus olhares um jogo de espelhos que nos reflete. Se esses olhares não existirem mais, e nem sequer existir um espelho onde nos vejamos sem intermediação alheia, tendemos a perder a auto-imagem e o auto-respeito. Se aquela rotina de nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para Caetano adquirir uma impressão de perda do “eu”, o escritor destaca outra limitação. Ela se perpetuou por todo o período de prisão, intensificando tal impressão: “não ter acesso a espelhos” (359). Era como se o corpo lhe tivesse sido abandonado de verdade, e a falta de um espelho condenasse Narciso (ele, Caetano, metaforicamente) à morte, a uma morte em horror e suspense, em meio a uma esquisita mescla de descaso e desespero. O narrador explica: “comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia — nunca houvera — outros lugares” (359). 

A letargia se tornara uma forma de fuga para Caetano naquelas longas semanas no cárcere, mas dela ele se afastava em certos dias de visita. Era quando surgiam no ar a voz e o choro de sua esposa, Andréa (Dedé) Gadelha, com quem estava casado há pouco mais de um ano, tentando obter o direito a uma conversa com o marido. Ouvir-lhe a voz sem poder ver-lhe o rosto, tocar-lhe a pele ou lhe dar resposta era para ele “uma experiência dilacerante” (377). Sem ser capaz de tirá-lo totalmente do estado de loucura a que fora levado, afirma Caetano, “aquela voz, vinda do passado remoto e inconvincente” que ele guardava na memória, ainda tinha o poder de enternecê-lo (377). 

Era um limitado retorno do ego despedaçado, que deixava sua tocaia. O enternecimento desequilibrava a letargia, onde normalmente se escondia. A cada tentativa de visita de Dedé, Caetano temporariamente se ressuscitava, sentindo o “ímpeto de abraçar e beijar, cheio de gratidão” aquela mulher que era a “fonte de todo o bem possível” (377). Mal sabia ele que ela estava tão próxima, apenas uma parede separando-os, e que ela jamais desistiria de pleitear até lhe conseguir melhores condições de vida naquela prisão, inclusive sua providencial saída da cela solitária. Andréa Gadelha salvou assim, por um triz, o corpo, a alma e a mente de quem se tornaria um dos maiores artistas e pensadores que o Brasil já viu.

16 comentários:

Anônimo disse...

É realmente uma experiência dilacerante para a alma humana a dor da despersonalização, da perda da identidade, da dignidade pessoal enfim.Victor Frankl descreve isto muito bem em seu livro Um Psicologo no Campo de Concentração, também auto-biográfico,judeu na Segunda Guerra. Parabéns, meu irmão, por mais uma inspiração. Estas pessoas tiveram grande importância mais tarde mas...naquele instante de dor...quem diria?! Grande abraço.Silvana

Thiago de Mello disse...

Dear Borim,

Só tenho uma palavra: GREAT!

Thiago

Rose disse...

Coloquei o texto na sequencia do Tampa do Lixo wwww.tampadolixo.blogspot.com
...gostei muito. Não li o Verdade Tropical. Lerei. Nossa!

O corpo este a mim meio conhecido - tanatos - e meio embaçado - eros.

Eu me sinto dentro do corpo, feito fosse escondida. Sempre questionando pergunto penso em vértebras, gaiolas, sangue o tempo todo fla flu fluindo.

Eu não me sinto comoda em meu corpo embora goste dele. Mas falar em ele me é estranho...eu queria não dizer 'meu pé' 'minha mão' e sim eu mão eu pé.

Quem possui o pe e a mão, Dario?

Beijos

Lisa disse...

Ja' li e gostei muito. Nao sabia daquilo nao. Fiquei impressionada.

Anônimo disse...

É um tema verdadeiramente complexo... Seu texto me fez lembrar um filme chamado "As sombras de Goya". Ele se passa na época da inquisição pelo olhar do, hoje, famoso pintor esponhol Francisco Goya. Foram tempos terríveis em que essa experiência limite de vida e morte foi vivenciada por muitas pessoas... E o filme retrata muito chocantemente esse drama, tem que ter estômago!! E, de fato, fica a pergunta: como não enlouquecer diante de tais circunstâncias? Só o amor... Lacan trouxe importantes contribuições à psicanálise. Poŕem, ele tem uma linguagem difícil e rebuscada. Parabéns por citá-lo de uma forma clara e articulada com o texto! Beijão, Cacá.

Regina disse...

Professor Borim,
a propósito da leitura do seu documento (crónica) sobre as férias centradas no "eu" de Veloso, fez-me pensar e decidi escrever, aqui vai e obrigada. Regina.

Regina disse...

“Sopro de vida”

Li a sua reflexão e achei curioso como consegue “buscar” este equilíbrio humano que é tão frágil. Acho importante reflectirmos sobre estes líquidos que são distinções de uma molécula. Este H2O é essência de vida. De lá brotou, um lago ancestral que mostrou aos seres primários as formas unificadoras do que é ser vivo. Nesse “pool” primário o hidrogénio e o oxigénio se fundiram numa dupla de vida atómica e comungaram uma relação que é vida.

Na água nasceu a vida; na água nasceram os mamíferos; na água cresceram os bípedes; na água criou-se o racional (70% da sua constituição). Somos primordialmente água e, ela, é substancialmente humana. É neste meio líquido que o feto se desenvolve e é na ruptura sobre este saco embrionário que, a pressão impõe um rasgo, e escorre para o mundo, como um cumprimento doloroso de quem vive em água e respira , agora, neste mundo da gravidade, uma substância, invisível ao olho humano , mas fundamental para a subsistência da carne – o oxigénio.

Somos um misto de liquidificação e gasificação onde a espécie se une e abraça a sua essência. Não há nada de fora, não há nada que é mais, tudo é e o que é, é; e nada mais pode ser para além daquilo que é porque é. Ora este ser é identidade pura daquilo que é e não pode haver contradição (essa maldade de fazer fatias de um que é todo, é visão limitada de essência que é fundamento), porque se é, não pode ser um não é (é como querer dizer os opostos como uma unidade, aliás a própria terminologia é diferente tal como os princípios), pois o que não é, é sempre um não é e nada mais pode ser para além do que não é. Nesta identidade do que é, e a não redução ao que não é, para não haver contradição entre a identidade e o oposto, não pode haver nenhuma outra hipótese que seja a terceira via, como alguns lhe chamam. Ou é, ou não é e nenhuma outra coisa pode ser para além do que é ou não é. Assim, une-se o líquido e o gás com a matéria e transforma-se em corpo – e num sopro de vida, enche a pneuma e conquista o nous cravado num soma - HOMEM.

Ser de uma única substância e por ela, tal como nela se escreve vida una, as quatro essências dos clássicos que mostraram a natureza, também humana, como esta fusão consubstancial do cosmos, onde o corpo é terra, a estrutura é sobretudo água, a matéria prima que faz existir é ar e a explosão de vida é fogo que arde e se acende e se apaga com medida. Somos um ser do cosmos e com eles somos ordem que é equilíbrio. Isto é unidade, isto é um todo.

Neste deambular por vícios do raciocínio, lugar que nos faz um ser diferente de outros vivos, temos a aptidão de nos encontrarmos e de vivenciar como seres do mundo e do cosmos. É aqui que se encontrou Veloso como qualquer homem que se redorou sobre si e a sua existência. Somos humanidade que se aconchega num canto da nossa vida e buscamos o fio que nos conduz ao eu de ser o que somos. Caetano Veloso fez isto. Numa unidade, recolhe-se na vida de si e em si movimenta-se para um fundamentação essencial. Pensa, sente, imagina e doí esta forma de vivermos, mas estrutura-nos em essência que nunca se deslocou porque identifica e movimenta um homem.

Isto foi recolhimento que o reformulou e o ordenou num cosmos.
Ele regressou à arché que nos fez vida e nesta fusão de movimento interno ele recreou-se: entre o amor que constroi e o átomo que mantém.

Foram férias sim, férias de um tipo que levam qualquer um a olhar-se ao espelho de si.
Um narciso em férias.

Obrigada pela sua reflexão.

Cris disse...

Darinho,

Ao ler o restante da crônica fiquei impressionada com a totalidade da condição (do "eu")que tinha citado antes... em nosso cotidiano não nos pensamos nele integralmente e (talvez) somente quando limitados de algum sentido é que podemos perceber esse nosso eu "inteiro".

Quando havia dito sobre a falta dos líquidos da emoção, viajei em outros lugares de senso comum, que seriam nossa predisposição para ficarmos mais racionais e menos sentimentais para as coisas odiosas do mundo de hoje. Como passar perto de outros seres humanos em situação de miséria e continuarmos andando sem uma verdadeira reação de horror ao que está acontecendo ali do nosso lado.

Mas,o ler todo o texto, percebi a violência que é negar a uma pessoa uma coisa simples como o espaço, a convivência com o outro,um espelho!Uma tortura horrível, sem nenhum toque, sem nenhuma provocação de dor física. Tão triste esse mundo nosso, querido, em que as pessoas se especializam no sofrimento do outro para vencerem. Para impor seus ideais...

Vc, pra variar, nos faz entrar em outros mundos e repensar nos nossos próprios de maneira crítica. Sabe colocar as palavras, sem ser prolixo, ou direcionar pensamentos, deixando que cada um pense por si próprio e tire seu aprendizado. Um bruxo das letras! E mesmo num texto tão pesado como esse, vc coloca amor e sensibilidade, terminando a crônica com o amor vencendo no final. conseguiu algo que achei impossível. Quando me disse que poderia chocar,pensei nas palavras e o que elas representariam em si, mas o modo como colocou o sofrimento da clausura imposta,deixou as lágrimas e o gozo totalmente em segundo plano. Não é isso que desperta a indignação e sim a perda da identidade nessas condições que foram impostas a um rapaz de 26 anos. Os líquidos viriam como salvação.

Estou louca pra ler todo o livro do Caetano, mas com uma vontade enorme que estivesse do meu lado pra ir tecendo seus comentários e me levando a enxergar as coisas que não veria sozinha...

djborim disse...

Regina,
Que bela reflexao a sua--dentro daquele estilo poetico-racional a que estou me acostumando semanalmente com seus trabalhos. Fico contente que meu texto lhe tenha servido para pensar tao profundamente sobre o papel e o simbolismo do elemento agua na nossa existencia.
E por falar em agua, voce ja viu o filme Agua?
Outra coisa, se me permitir coloco o seu texto na secao de comentarios.
Se nao quiser, nao ha' o menor problema.
Um abraco,
Dario

djborim disse...

Regina,
Esta' ai, entao, o seu texto. Obrigado por permitir a publicacao do "Sopro de vida" (nome do romance de Clarice Lispector, ne?).
O belo e intrigante filme de que lhe falei e' dirigido por uma diretora indiana, Deepa Mehta. O Netflix tem (Water, em ingles). Vc jamais vai esquecer esse filme depois de ve-lo pela primeira vez.
Um abraco,
D.

djborim disse...

Ei, Cris--

Voce enche minha bola de um jeito! O bom e' que penso do
mesmo modo sobre voce(s), que e' com voce(s) que aprendo e me inspiro.

Bjs, D.

djborim disse...

Caca e Nina,
Minhas queridas psicologas da familia--obrigadao por lerem essa cronica meio triste e meio fora do assunto comum da midia. Suas palavras sao sempre muito gentis e me dao animo pra pensar e escrever pela vida afora. Concordo, Caca': Lacan e' de lascar--o estilo dele cria um filtro. Franceses adoram isso. Da' uma preguica justificada, mas vale a pena tentar vencer o obstaculo e chegar ao cerne das suas ideias.
Bjs,
Darinho

Riquinho disse...

Dear Dario,

That was a very fine piece on Caetano! Thanks for sending it. Yes: at all costs, avoid sensory depravation!

I hope we'll be able to catch the show tomorrow.

I hope you are O.K.

Um abraco, Rick

Onesimo disse...

Gostei deveras.
Obrigado.
Abraço.
Onésimo

Thiago disse...

Dear Borim,

Só tenho uma palavra: GREAT!

Thiago

Anônimo disse...

Darinho !!!

Como sempre suas crônicas são fontes fantásticas de inspiração e meio para uma deliciosa, necessária e significante distração!

Grande abraço,

Viviane

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