segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Mensagens


As formas das pessoas se comunicarem mudaram radicalmente nos últimos anos. Houve o tempo de se usar o serviço de correio via lombo de burro para se enviar notícias. Que transformação passou a humanidade entre aqueles dias imemoráveis e perdidos na história e os atuais, quando pelo sistema Skype, por exemplo, as pessoas separadas por rios e mares se falam e se vêem na tela de computador, ou até mesmo no visor de um telefone!

O telégrafo e as locomotivas trouxeram novo impulso à velocidade das comunicações interpessoais. Mais tarde, os automóveis e os aviões, também. Com o desenvolvimento da eletrônica, porém, a revolução foi radical. Primeiro vieram os satélites, mas as chamadas telefônicas eram muito caras. Depois passamos a trocar longas “cartas” por meio de fitas cassetes. Filhos e pais, namorados e amigos do peito, agora podiam contar longos casos, compartilhar de música e poesia, e enviar essas gravações por meio de um serviço postal que podia levar entre dois dias e duas semanas. Tomava um tempo, mas a comunicação chegava, levando a voz dos entes queridos, as emoções e muita “vida” que assim se fazia possível entre amantes, amigos e parentes afastados fisicamente.

Eu sempre gostei de escrever e receber cartas. Até sonhava com elas, e acabei virando colecionador de selos postais. Antes de completar 14 anos já tinha correspondentes internacionais (na Argentina, Canadá, Colômbia, Grécia, entre outros países), e me deliciava com o privilégio de praticar o inglês e o espanhol e ainda aprender sobre aquelas culturas via correio. Tanto gostava de me corresponder por cartas que guardo na casa de meus pais, até hoje, um acervo de mais de 500 correspondências. Que mundo e que vida estão lá preservados! Em meio a elas também possuo varias dezenas daquelas tais fitas-cartas, inclusive valiosas gravações feitas por meus pais a partir do dia em que eu vim estudar e trabalhar nos Estados Unidos, em março de 1981. Não havia limite para o quê, como ou quando gravar uma carta-cassete, já que os gravadores portáteis podiam nos acompanhar a qualquer lugar. Lembro-me de ter feito gravações daquele tipo até enquanto caminhava pelas ruas, curtia uma festa, ou me encontrava com amigos num bar.

Hoje, em plena era do e-mail, das comunidades virtuais como o Orkut e o FaceBook, e das ligações baratas ou gratuitas entre pessoas morando em regiões tão distantes do planeta, acabo de receber uma mensagem de um modo bem antigo, certamente o meio de comunicação mais ancestral de toda a história da humanidade: o boca-a-boca. Aquele recado foi de outro modo ainda mais significante, um tipo de mensagem que eu jamais recebera. Aconteceu na segunda-feira passada na biblioteca central da Universidade de Massachusetts Dartmouth, onde trabalho há 11 anos.

Antônio, um senhor de meia-idade, me procurou após assistirmos a uma palestra de Salwa Castelo-Branco sobre a história da música portuguesa do século XX. Perguntou-me o nome. Quando soube quem eu era, disse que estava muito satisfeito por me ter encontrado. Trazia uma mensagem, mas talvez eu não me lembrasse mais da pessoa que a enviara. Quando Antônio mencionou o nome de seu irmão, Luís, tive a forte sensação de que eu sabia quem era o tal Luís, apesar de eu não ter recebido ainda nenhuma indicação de quem se tratava. Eu estava certo.

Antônio disse-me que seu irmão, Luís Cabral, pediu-lhe para me dizer, quando me encontrasse, que ele, Luís, tinha gostado muito de ouvir o Brazilliance, meu programa de rádio. Confirmada a minha suspeita de que tal Luís era o mesmo que eu imaginara, imediatamente disse a Antônio que eu também tinha ótimas lembranças daquele ouvinte assíduo, tão interessado em música brasileira, portuguesa e luso-africana, e tão gentil ao ponto de me escrever emails após cada programa, comentando o repertório tocado naquela quinta-feira ou sugerindo novos títulos para o programa da semana seguinte. Eu que nunca encontrei Luís pessoalmente tinha agora a oportunidade de saber mais sobre aquele ouvinte leal, de quem eu não recebia mais emails desde 2004.

Antônio narrou um pouco da história do irmão. Sua voz já se encontrava alterada, mais suave e emotiva. Disse que não queria reclamar da vida ou do destino, mas isso era difícil, pois seu irmão falecera em julho passado, aos 65 anos de idade. Formara-se engenheiro com a primeira turma graduada no novo campus da nossa universidade. Amava música. Tocava violão e violoncelo. Participou de uma banda de jazz por aqui, na região de Rhode Island, e depois na Carolina do Norte, onde foi morar por ordem da marinha, para a qual trabalhava. Na marinha ele chegou a tocar numa orquestra sinfônica e até a dar aulas de violoncelo.

Quando Luís mudou-se para a Carolina fez questão de comprar uma casa próxima a um hospital, pois sua esposa era diabética e passava por crises de saúde bem amiúde. Mal sabia ele que nesse hospital ele passaria muito mais tempo do que ela. Antônio disse-me que seu irmão era cheio de vida, cheio de entusiasmo e amor pela música, mas que seu fim foi muito rápido. Um câncer no intestino ceifou-lhe a vida apenas noves meses após os primeiros sintomas.

Aquela conversa de dez minutos não me saiu da mente até hoje. Ainda me pergunto muitas coisas depois de receber aquela mensagem de um ser que já tinha partido desse mundo. Senti um misto de prazer e dor naquela hora, o que se repete neste momento. Fiquei tão honrado por receber tal recado quanto incomodado pelo fato de não mais possuir suas mensagens eletrônicas e, pior, não ter feito nada para me encontrar com aquele ouvinte-amigo. Ficou-me mais uma lição sobre a fragilidade da vida humana e da necessidade de não deixarmos para amanhã a chance de conhecer alguém que cruza nosso caminho e tem afinidade com nossa alma, com nosso modo de encarar e desfrutar dessa existência tão bela, por várias razões, mas também tão surpreendente, porque tão sinistramente injusta e passageira.

24 comentários:

Valeria disse...

Tão lindo e tão triste ao mesmo tempo! Vc é D+!

Olivia disse...

Gostei mto da crônica, ficou bem sensível!

Frederico disse...

Darinho,

Que história bonita e chocante !

A mensagem do final do texto: “não deixarmos para amanhã a chance de conhecer alguém que cruza nosso caminho e tem afinidade com nossa alma, com nosso modo de encarar e desfrutar dessa existência tão bela, por várias razões, mas também tão surpreendente, porque tão sinistramente injusta e passageira.” dita com muita propriedade, jamais esquecerei.

Obrigado e um forte abraço !

Paula disse...

Boa noite , Darinho!
Msg emocionante...
Obrigada!
Já add seu blog aos meus favoritos!!
Bjo!

Carlos Gohn disse...

Obrigado, Dário. É inspirador ler essa crônica quando estou aqui no meu escritório no Cenex da FALE.
Abraço,
Carlos

Carla disse...

Nossa Brother, a história é muito tocante e, nas suas palavras, viraram uma bela poesia... Parabéns pela escrita, pela história e pela sensibilidade.
Beijos, Cacá.

Marcia disse...

Adorei as "Mensagens".
Abs,
Marcia.

RMP disse...

Falou o certo: a vida é injusta...

Zé disse...

Darinho
Muito boa. A vida muitas vezes não dá uma segunda chance.
Abraço

Silvana disse...

Bela crônica, meu irmão --
bela ilustração, belos sentimentos. Gostei muito de estar com você neste momento.
Beijinho, Silvana

João E. disse...

Darinho,
Sempre leio suas crônicas. Fico ligado nelas porque temos muitas coisas em comum: Paraguaçu, amigos, Estados Unidos (NYC), contemporaneidade (03/Out/1960), e mais. Grande Abraço.
João E. de A. Marques

Viviane disse...

O nosso bate-papo e as suas cronicas sempre me fazem sorrir e me ensinam
muito, mas esta sobre o seu amigo-ouvinte me emocionou muito, me fez
chorar.
Super beijo
E obrigada por transmitir tanta sensibilidade!

Frank disse...

Dario,
Belo texto. Você já me tinha contado a história, mas assim escrita ainda é mais bonita e comovente.
Grande abraço,
Frank

Leticia disse...

Primo,
Suas crônicas me fizeram viajar no tempo de nossa infância e juventude
em Paraguaçu e aqui em Bh também.
Tenho saudades.
Quando vier à BH, se der, vamos nos encontrar.
Luana vai ficar mais um ano por aí.
Um grande beijo à vce e família.
PS: uma boa cachacinha bem tomada, é nectar dos Deuses.

Irene disse...

Dário,
Gostei imenso da sua crónica. Obrigada! Eu penso muito nessa questão da
"fragilidade da vida humana." Incrível, não é?
Boa noite, Irene

Sé disse...

Querido amigo Darinho,
Gostei muito, meu amigo. Como sempre o seu texto tão gostoso de ler, pela sua sensibilidade e leveza, leva-me a refletir um pouco mais sobre sobre os inúmeros caminhos que existem hoje, em prol da amizade e relacionamentos, facilitando este encontro entre pessoas afins. A história que você relata sobre o Antônio Cabral e seu irmão Luiz é reamente muito linda e comovente! Fiquei aqui imaginando como o Luiz, seu ouvinte e admirador, se sentia ao longo deste anos, ouvindo o Brazilliance... As músicas portuguesas, assim como as brasileiras, escolhidadas a dedo, tocam profundamente a alma da gente! E se ele estava fora do seu país de origem, a emoção era ainda maior!
É como que, através das melodias que cercam a nossa alma, um pedacinho da nossa terra querida, ficassem assim, coladinho a gente, como que por magia!
É amigo, você ganhou um presente vindo direto do nosso Papai do Céu, quando colocou à sua frente o Antônio Cabral, para lhe falar do
Luiz! Parabéns!!
Sempre ouço os Cds do Brazilliance que adoro! Agora, quando ouvir, pensarei também, neste seu amigo que partiu, levando consigo, bem dentro do seu coração, estas ricas melodias.
Obrigada amigo, por partilhar algo tão lindo comigo e por me lembrar que devemos ficar atentos aqueles que amamos, dado a nossa breve existência.
Um beijo, Sé

Cristina schmidt disse...

Darinho, fiquei ansiosa esperando para ler esta crônica depois que me narrou este surpreendente encontro.
Adorei!!!
Tento sempre desfrutar do prazer em conhecer o outro para aprender, ensinar e aproveitar o "belo" da essência que cada um carrega dentro de si.
Um bj carinhoso
Cristina Schmidt

Cristina schmidt disse...

Darinho, fiquei ansiosa esperando para ler esta crônica depois que me narrou este surpreendente encontro.
Adorei!!!
Tento sempre desfrutar do prazer em conhecer o outro para aprender, ensinar e aproveitar o "belo" da essência que cada um carrega dentro de si.
Um bj carinhoso
Cristina Schmidt

Gui disse...

Querido Darinho,
Como sempre, adorei o seu novo texto. Muito legal, aliás, você, como ninguém, sabe fazer amizades e cultivá-las com a sua generosidade e sensibilidade.
Por falar nisso, não me esqueci do seu aniversário, deixei para ligar mais tarde, tomei alguns copos de vinho e ficou tarde.Ia ligar ou te escrever no dia seguinte...o resto vc sabe como é.
Assim, mesmo um "pouco" atrasada, mando um abraço especial pelo seu dia, desejando-lhe muitas felicidades, saúde, paz, amor, e tudo mais que você merece.
Estou com saudades. Você vem ao Brasil neste final de ano?
Beijo,
Gui

Risa Helena disse...

...excelente!Grande abraco,Risa.

Maristela disse...

Oi Dário! Estava aqui relendo a sua crônica (mensagens) a respeito do
Luís Cabral.O que acontece é realmente o que aconteceu com você e ele
. A gente deixa passar muitas opórtunidades na vida e só se dá conta
depois que perde. Espero que isto não aconteça conosco.Já tivemos
oportunidade de nos conhecermos e deixamos passar. Não sei quando
acontecerá novamente pois estou com prblemas em casa e quase não vou a
Paraguaçu. Mas, tenho certeza que uma hora vai acontecer. E vai ser
muito bom . Enquanto isto vou me deliciando com suas crônîcas. Grande
abraço.

Mario disse...

“Mensagens”, é bonita de doer, como se diz, com muita macheza, na várzea de São Vicente, onde fui criado. Parabéns!

Abs,
Mario

Antonio Cabral disse...

Tue, February 22, 2011 1:47:47 PM
Ponteio Cultural
...
From:
Antonio Cabral
...
View Contact
To: Dário Borim
Prof. Borim,

Thank you for your enthusiasm and assistance publicizing my fado presentation. I do hope you can attend, but your program ending at 6:00 PM may require you to violate the laws of both physics and the Commonwealth to arrive in Easton in time. In any case, your presence - real or virtual - will be felt. Oddly, it was my brother who introduced me to the music of Villa-Lobos and hearing it always reminds me of him.

Thank you, also, for attaching the blog entry about Luis. Your reflections were very moving, to say the least. I will forward it to my sister-in-law, Heidi, in North Carolina with a translation. Translating Portuguese is always a struggle for me, but trying to read Portuguese with tears in my eyes surely will compound the challenge.

Warm regards,
Antonio

Luci disse...

Li as duas cronicas, "Mensagens" e "Vinicius"... sao lindas!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Ter que decidir qual publicar nao e' facil...
:-)
L

For Casey and André

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