segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Paixão: sina e esperança


Amália Rodrigues (1920-1999), a mais famosa fadista portuguesa, morou, cantou e gravou por uns tempos no Brasil. Ela até mesmo se casou com um brasileiro em 1961. Seu extraordinário legado musical no nosso país foi de grande influência para Caetano Veloso, cantor-compositor que escreveu fados que já fazem parte do mais belo cancioneiro luso-brasileiro de todas as épocas. Na década de 1960 esses dois expoentes da música lusófona criaram pérolas poético-musicais que estabelecem um diálogo sobre a paixão, tema central de um curso que atualmente ensino no Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Na aula inaugural tivemos a oportunidade de compartilhar nossos próprios conceitos sobre o tema tendo em mente, também, a poética de Vinicius de Moraes, obra que estamos estudando paralelamente às investigações sobre a paixão.
Há poucas dúvidas sobre a hipótese de que o termo grego que dá origem à palavra paixão seja pathos. Entretanto, a etimologia consensual de qualquer palavra não encerra nossa busca pela compreensão dos conceitos atribuídos, ao longo dos séculos, a um dado vocábulo do nosso léxico contemporâneo. Não há espaço aqui para desdobramentos filológicos detalhados. Resta-nos dizer que o conceito de paixão – assim como foi o de pathos na Grécia antiga e na Grécia clássica – provavelmente para sempre será caracterizado por inúmeras e profundas contradições. Uma das idéias mais remotas acerca da paixão (isto é, de pathos) é a de passividade, de entrega do ser a uma força superior que o rege, que o subjuga. Inclinação ou tendência natural do ser (ou ethos, em grego), a paixão pode transformar-se em “força destrutiva por desmedida”, segundo a filósofa Marilena Chauí (42). Um conceito mais moderno, porém, é o de que a paixão pode ser a grande força motriz do ser humano. O filósofo francês Gérard Lebrun nos lembra que “paixão e razão são inseparáveis” (18), e que para o filósofo idealista alemão Georg Hegel (1870-1931) em Estética, “[n]ada de grande se faz sem paixão” (Lebrun 18).
Para inspirar nossas discussões preliminares sobre esses dois conceitos de paixão enfocamos o inesquecível e tipicamente dramático fado “Estranha forma de vida”, de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro; e a balada “Coração vagabundo”, de Caetano Veloso. A visão passiva de uma vítima da paixão surge no primeiro verso na letra de Amália Rodrigues: “Foi por vontade de Deus”. O jeito de ser apaixonado e a dor da paixão do “eu” poético inerte e agonizante são, pois, desígnios de Deus. Uma hipérbole sugere, a seguir, que ninguém mais sofre nesse mundo, apenas a persona do poema: “Que todos os ais são meus”. Sua auto-imagem cria uma visão de um “eu” que sofre como um caso de vida excêntrico, de exceção, como se a dor não fizesse parte da condição humana: “Que estranha forma de vida”. A ilusão estéril e anódina é característica marcante da vida dessa persona: “Vive de vida perdida”.
Acreditando no desejo de Deus como causa de seu sofrimento (conforme o primeiro verso do poema), a persona agora, falando ao seu próprio coração, pondera o poder supernatural, metafísico, de uma varinha de mágico como solução para seus males: “Quem lhe daria o condão”. Simbolizada pelo coração, a paixão é então retratada como uma parte do ser sobre a qual a persona não tem poder nem relação de contigüidade. A paixão é autônoma e dirige a vida do apaixonado: “Coração independente/ Coração que não comando”. Para ela, a paixão é mesmo cega e constantemente sofredora: “Vives perdido entre a gente/ Teimosamente sangrando”. Em face da ignorância e estupidez da paixão que lhe assola e desorienta a vida, a persona do poema prefere morrer: “Pára, deixa de bater/ Se não sabes onde vais/ Eu não te acompanho mais”.
Por outro lado, “Coração vagabundo,” canção meio bossa-novista de melodia lenta e triste, foi escrita quase que na mesma época em que surgiu o clássico “Estranha forma de vida” e inicialmente gravada por Caetano Veloso para o seu primeiro LP Domingo (de parceria com Gal Costa). Ao contrário do que se diz no poema português, entretanto, a teimosia não reside no sofrimento, mas sim na esperança de atingir sua plenitude romântica: “Meu coração não se cansa/ De ter esperança/ De um dia ser tudo o que quer”. Caetano compõe a imagem de um ser apaixonado que se vê livre para amar como uma criança, cuja inspiração e fé em melhores dias não desfaleceram por causa da dor e frustração de um amor que morreu: Meu coração de criança/ Não é só a lembrança/ De um vulto feliz de mulher/ Que passou por meus sonhos/ Sem dizer adeus/ E fez dos olhos meus/ Um chorar mais sem fim”. O poema se fecha com a hipérbole da volúpia que habita um coração apaixonado, que dá sentido à vida de quem espera e deseja viver intensamente todas as oportunidades que o mundo lhe oferece: “Meu coração vagabundo/ Quer guardar o mundo/ Em mim”.
Apesar das enormes diferenças entre as visões da paixão em um e outro poema, uma semelhança é inegável. Como no poema de Amália Rodrigues, a persona por detrás dos versos de Caetano Veloso retrata seu coração como uma parte do seu ser que é repleta de determinação, cheia de vontade própria. Apesar do título aparentemente pejorativo e sua melodia ostensivamente melancólica, “Coração vagabundo” é consoante com a visão otimista de Benedict de Espinosa (1632-1677), filósofo judeu que nasceu de pais portugueses refugiados na Holanda. O autor de Ethica dizia não desprezar os perigos da obsessão criada pela paixão, que tanto atemorizam e maltratam o ser humano, mas acreditava na nossa capacidade de “excluir a coisa que causa medo” (Chauí 79), a sina que assombra a “estranha forma de vida” de Amália Rodrigues, e “presentificar aquela que causa esperança” (79), a fé que anima o “coração vagabundo” do músico-poeta da Bahia. Para Espinosa, explica Chauí, é necessário “fortalecer uma paixão da alegria: a esperança” (Chauí 79-80). É hora de se perceber que a diligência pode mais que a passividade. Espinosa, portanto, conclui: “as coisas necessárias são mais fortes do que as contingentes” (Chauí 80).

Obras citadas
Chauí, Marilena. “Sobre o medo.” Adauto Novaes, ed. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 33-83.
Lebrun, Gérard. “O conceito da paixão.” Os sentidos da paixão. Adauto Novaes, ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 12-32.
Rodrigues, Amália. “Estranha forma de vida”. Estranha forma de vida: o melhor de Amália Rodrigues. EMI, 2007.
Veloso, Caetano. “Coração vagabundo”. Domingo. Universal, 1967.

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