quinta-feira, 26 de julho de 2018

Anjo Loiro de Pé Sujo



Anjo Loiro de Pé Sujo:
Uma Minibiografia de José Carlos Borim

Não se sabia o sexo do próximo rebento a nascer naquela época, lá pelos fins da década de 1950. Menina ou menino, chegaria mais um bebê ao lar de Lucci Prado Mendes Borim e Dário Foresti Borim. Já tinham vindo três meninas. Uma, a Vana Lúcia, faleceu acidentalmente na primeiríssima infância. As outras duas vingaram: Silvana, a mais velha, e Silvinha, a segunda mais velha, de uma família que seria de cinco filhos.
Deus ia ajudar: era a hora de um macho! A reza foi tanta que veio um varão muito especial, que se tornaria um bom partido: um jovem engenheiro eletrônico de 25 aninhos de idade pescado por uma mocinha também muito especial, uma estudante de Edificações. Essa é Jaqueline Santoro Quintão, esposa dedicada de mil e quinhentos talentos, uma adorada figuraça que organizou esta súper festa e me convidou para redigir essas mal traçadas linhas sobre a vida de meu irmão.
Mas esperem aí. Muita água rolou antes daquele dia chuvoso de novembro, quando os dois prometeram fazer uma forte trança das cordas de seus destinos e juntar os trapinhos na bela Igreja de Lourdes.
Vamos então voltar a 1958. José, sim – José se chamaria o neném em homenagem ao santo marido de Maria, o pai-adotivo de Jesus Cristo, que segundo a Igreja Católica, tem o papel de intervir a favor dos que pedem uma importante graça a Deus. Aliás, “acúmulo de bens nas mãos de Deus” é o significado de “José” em hebraico. De acordo com certas passagens bíblicas, São José teria sido um sujeito exemplar: muito trabalhador, cheio de fé, e grande protetor de sua família. Por estas razões, São José tornou-se venerado como padroeiro universal, não só pelos católicos, mas também pelos cristãos anglicanos e ortodoxos.
Aquele José de 1958 não estaria sendo moldado para ser santo. Isso não! Talvez o fosse, se não fosse o Carlos, seu segundo nome. Muito mais laico e prosaico, “Carlos” é de origem franco-germânica e significa “homem livre.” Homem livre e santo não combinam muito bem para a beatificação. Deve ser por isso que José Carlos, ou, ZECARS, no dialeto de Paraguaçu, virou Rei em terras mineiras e capixabas! Rei por quê? Uai, tô aqui é pra contar isso mesmo. Resumindo já de cara: o meu irmão é loiro, alto, magro, calmo, inteligente, marajá, simpático e de coração muito bom, e de olhos muito verdes! Quer mais?
Tem mais. Nossos pais o ajudaram muito, sempre. Seus irmãos o amaram muito, sempre. Amava-o de modo muito especial a nossa irmã que veio na raspa do tacho, a Ana Beatriz, uma estrela saudosa que hoje muito brilha lá no céu. E olha que ele ainda tem um irmão, de quase a mesma idade, que muito se inspirou nele. A reza pra nascer um “macho” extrapolou um cadim e logo chegou mais um, o Dário Borim Jr., o vulgo Darim que lhes dirige a palavra, um contador de histórias meio-boêmio e meio-poeta – pior ainda, meio-gringo. A felicidade de nossos pais era tão grande com a chegada do loirinho, que mandaram brasa: comemoram muito bem o presente de Deus e seis meses depois daquele dia 4 de junho de 1958, bingo: lá estava encomendado mais bichinho pro ninho!
Tatau, assim apelidado pela avó paterna, Drosiana Foresti Borim, e eu, que carrego a honra do nome de nosso pai, passamos por muita coisa juntos pela proximidade da idade. Mais da metade não dá pra contar aqui não. Não passa na tesoura da minha auto-censura ou no filtro do bom-senso. Zecars já é aposentado, mas isso não quer dizer que chutou o balde, né? E eu preciso manter a classe e preservar o meu ganha-pão de professor universitário da Universidade de Massachusetts por mais uns seis ou sete anos, antes de eu também pendurar as chuteiras. A outra quase-metade das nossas travessuras eu vou tentar resumir aqui pra vocês, sem exagero, que é pra não nos comprometermos além do inevitável.
É claro que a história aqui é a dele, e vou ter o cuidado de proteger a imagem do meu irmão-herói, até certo ponto. Afinal de contas, contador de causo gosta de pôr pimenta na sopa, e estamos todos aqui é para rir e sorrir juntos, na mesma onda de felicidade desse cara muito bacana, um sujeito que chega aos sessenta anos com cara e corpo de rapazinho e com sede de viver e caminhar por todo esse mundaréu velho sem porteira.
Então chega de nhenhenhém. Vamos aos particulares. Zecars teve uma infância cheia de imaginação e aventura. Gostava de brincar com os indiozinhos de plástico que vinham no fundo dos vidros do gostoso achocolatado Toddy. Até os quase treze anos ele imaginou e criou partidas de futebol sobre uma mesa entre os tais indígenas de 4 cm de altura!
Tatau também tinha seu jeito de se divertir mais radicalmente! Lá em Paraguaçu, no sul de Minas, onde passarim canta assim, pir-pir-pir, ele e eu tivemos alguns ímpetos de sadismo infantil, muito na moda nos velhos anos 60. Juntos com nossos amigos, caçávamos e, algumas vezes – que vergonha – matávamos alguns dos pobres passarinhos a tiros de estilingue. Às vezes um gato ou outro também era sacrificado, em nome de uma pele que não era pra fazer tamborim. Sei lá pra quê que era. Deus nos perdôe!
Futsal e futebol de campo faziam parte do nosso dia a dia, é claro. Lá em casa, rolava uma espécie de academia de futebol. No fundo do quintal, a garotada, às vezes um grupo de 14 ou 15, jogava por horas a fio. Tatau sempre foi um bom jogador, e se destacava. Era orgulhoso dos seus dribles e chute forte. Nossos times às vezes jogavam em cidades vizinhas e disputavam as olimpíadas em Paraguaçu. No meio de carinhas cheios de manha, Tatau era honesto, mas achava que eu era ainda mais honesto nas horas de disputa sobre o que teria acontecido e o que não teria acontecido no jogo. Ela falava assim: Darim não mente; é Lobim. Nós dois fomos lobinhos, uma curta passagem inicial pela carreira de escoteiro que não vingou. Aquilo era certim demais para o nosso gosto.
Além do futebol, o talento de Tatau foi de grande destaque em partidas de xadrez. Éramos tantos os aficcionados pelo jogo, que realizávamos campeonatos também lá em casa. Um bom número de adolescentes, como nós dois mesmos, disputavam os torneios que incluíam feras mais experientes, homens nas faixas dos 50 e 60 anos. Tatau era um dos melhores e se tornou campeão em muitas ocasiões.
Por essa época o Zecars também já vivia uma tremenda paixão por eletricidade e eletrônica. Quando criança, brincava com vitrolas quebradas e dizia que um dia seria engenheiro eletrônico. Tinha uma boa dose de inspiração para essa carreira em tenra idade por conta do nosso tio Savinho, irmão de nossa mãe, que estudava eletrônica em Santa Rita do Sapucaí, onde ele mesmo, Tatau, foi estudar aos 15 anos. O meu irmão levava muito jeito, vocês precisavam de ver! Juntava peça de equipamento quebrado daqui e dali, botava os neurônios pra funcionar, e de repente aparecia com um novo amplificador de som para as nossas brincadeiras dançantes, que também tinham coloridos holofostes estroboscópicos sob sua maestria.
Nossos pais tinham tanta paciência e confiança na gente! Era impressionante! Nas férias e feriados, dançávamos de rostinho colado, uma galera de 12 a 15 adolescentes, ao som dos Bees Gees, Marvyn Gaye, Roberta Flack, Pink Floyd,  e um forrozinho do Alceu Valença e do Zé Ramalho. O pessoal da cidade de Paraguaçu fazia fofoca. Falavam que rolava muita droga naquelas nossas festinhas nos anos 70. Mentira pura! Éramos de uma tremenda inocência, gente! Apesar do tesão arretado, ainda vivíamos sem sexo e sem drogas, apesar de muito rock’n’roll! É claro que isso mudou quando mudamos para a cidade grande. Mas esse é outro capítulo. Chegaremos logo lá.
Antes, vamos visitar Santa Rita do Sapucaí. Aquela cidade nunca mais será a mesma depois que meu irmão e companheiros da eletrônica estudaram lá. A turma era séria nos estudos, mas muito alegre e bagunceira! Faziam coisas que assustavam a população, como no dia em que compraram caixas e mais caixas de sabão em pó pra jogar na fonte da cidade. Quando já era noite, e chegava a hora de acender a fonte, os aventureiros estavam de tocaia. E foi aquela explosão de espuma na praça, sem que nenhum dos nativos soubesse por quê.
Tatau adquiriu o apelido de Gambá foi naquele ambiente, vamos dizer, insalubre. A turma não gostava de varrer ou lavar nada, e o par de tênis preto dele fedia adoidado. Os amigos não perdoaram e lhe deram a alcunha de Gambá. Na verdade, o convívio no alojamento só de homens deixou o meu irmão um pouco desumanizado, foi minha conclusão quando eu já morava com nossa mana Silvana em Belo Horizonte. Graças a ela, sempre paciente e gentil, eu já tinha aprendido a ser um pouco menos “selvagem” do que fora nos tempos de Paraguaçu, mas Zecars ainda tinha um longo percurso pela frente. Nada melhor do que morar com mulher pro homem saber que não pode limpar o nariz na toalha de mão! Nem deixar o vaso moiadim depois de uma visita ao sanitário. Paro por aqui nesse capítulo!
O outro capítulo foi mais apimentado, com outros resquícios, em Beagá, da vida do aventureiro de Santa Rita. Já na faculdade de engenharia, e já trabalhando como técnico de eletrônica, Tatau ainda achava tempo pra fazer pura sacanagem pelas ruas de Beagá. Por exemplo, quebrar e coletar antenas de carros e mandar rolar pneus velhos morro abaixo na avenida Afonso Pena. Cruz-credo! Ainda bem que passou essa fase!
Veio a fase seguinte, em que meu irmão instalava antenas de rádio para comunicação em fazendas isoladas do resto do mundo. Tatau era dono de um fusca verde, ao qual deu o apelido de Alfredo. Certa vez fomos nele a uma vila no interior do Bahia. Tivemos que seguir uma caminhonete em que fazendeiros carregavam gasolina para eles próprios e para nós, porque os militares tinham decretado a proibição da venda de combustíveis aos domingos. Que dureza tentar não perder de vista a pick-up dos homens naquelas estradas empoeiradas, sem placas e iluminação, em pleno sertão!
Tatau foi se civilizando com rapidez na capital, ao ponto de ser convidado para dar aulas de eletrônica numa escola de ensino médio profissionalizante, a UTRAMIG. Lá fez nome de excelente professor, e lá conheceu a tal namorada que lhe inspirou outra atitude na vida. Mais jovem do que ele, mas muito esperta e determinada, Jaqueline foi fundamental para exigir e solidificar o amadurecimento do namorado mais velho. Morávamos ele e eu numa república na rua Ceará, quando se conheceram. Isso foi em 1980, depois de termos feito dezenas de festas de arromba numa outra república onde moramos alguns anos, na Avenida Augusto de Lima, perto da praça Raul Soares.
As festança tinham sido homéricas e às vezes escandalosas, lá no Barro Preto. Foram com grandes amigos do peito, como os presentes aqui, como Henrique Prado, Mairon Leite, Geraldo Faraci e Batista Vaz. Outros de nossos amigos, menos queridos e menos disciplinados, chegaram até a ser declarados, oficialmente, pessonas non-gratas pelos administradores do condomínio. Tatau ainda era um tanto rebelde nessa época e liderou uma campanha anticoercitiva junto ao administradores do condomínio para que não fôssemos expulsos do prédio. Saímos, sim, mas por pura e espontânea vontade de morar melhor do que lá. Assim passaríamos um ano alugando outro apartamento, no nobre bairro de Funcionários. Ali nosso comportamento foi um pouco mais decente, mas com certeza longe de qualquer expressão de nobreza.
Da rua Ceará, Tatau se mudou para a Cidade Nova. Já ganhava bem e tinha condição de pagar aluguel sozinho, sem a desorientação ou outras más influências dos companheiros de farra. Todos estavam começando a virar gente, afinal de contas. Eu mesmo precisei sair do país para virar gente! Nessa época de redenção geral, o início dos anos 80, meu irmão concluiu o curso de Engenharia Eletrônica na Universidade Católica de Minas Gerais, curso que sempre fez à noite, com extremo esforço e dedicação, após cada jornada integral diurna de trabalho.
Diplomado, ou quase diplomado, não me lembro, Tatau quase conseguiu um excelente emprego. Foi finalista para uma posição na IBM. Passou em tudo e muito bem, mas a psicóloga o reprovou. Quando lhe perguntaram o que ele mais queria num futuro próximo, ele disse, bem humorado, que nada menos do que passear numa van lotada de mulheres bonitas e simpáticas. Acharam-no um pouco imaturo, acredito.
Logo veio o dia em que Zecars abriria uma firma de conserto de aparelhos eletrônicos. Não deu muito certo, e não faltaram algumas irresponsabilidades ecológicas no tratamento do lixo tóxico, especializado. Deixemos isso pra lá. Tá na hora de falar de mais coisas boas. E são muitas!
Tatau e Jac logo se casariam. Todos nós gostávamos muito dela, e nossa mãe punha muita fé no poder da norinha na hora de salvar o filho da farra. O mesmo –
ela, d. Lucci – pensaria em relação a minha namorada e futura esposa, a gringa Ann. Jac conseguiu, sim, e muito bem, realizar o sonho de d. Lucci! Tatau foi contratado por uma mineiradora alemã, a Ferteco, com planta perto de Ouro Branco, e logo se tornaria um super-star daquela poderosa empresa. Chamado de José ou de Borim, meu irmão só crescia ali dentro. O homem era um gênio na hora de desenvolver circuitos eletrônicos e achar soluções eletro-mecânicas para os problemas seríssimos e caríssimos de uma companhia de grande porte e capital multinacional.
Mesmo ainda muito jovem, Tatau tornou-se chefe de muitos engenheiros. Assumia cada vez mais pesadas responsabilidades nas costas o rapaz que tanto se modificou naqueles anos. Com relativamente pouca colaboração dos patrões, ele concluiu – e com muito mérito – um Mestrado em Automação pela UFMG. Nessa específica área do conhecimento tecnológico, meu irmão caminhava a galope rumo a uma posição de destaque no panorama nacional. Muitas glórias profissionais estavam pela frente e lá chegaria aquele dedicado – e quase chato de tão fanático – engenheiro eletrônico de minas. Tatau se tornara para alguns de nós um verdadeiro Gambá eletrônico!
Tatau e Jac viveram muito bem (e por muitos anos) numa vila daquela mineiradora e, claro, vieram os filhos. Daniel e Flávia trouxeram muito agito e muita alegria para o casal. Era um tempo de dedicação a eles e à exigente Ferteco, mas havia muitas horas para boas partidas de tênis e algumas festas bem comportadas naquela confortável casa, em aconchegante condomínio nas montanhas de Minas. Vieram outros tipos de festas, também, algumas delas patrocinadas pela mineiradora. Tatau gostava de cantar, embora meio desafinado, e de contar “causos” de zombaria ao microfone. Às vezes se excidia no grau etílico e fazia sinistros elogios aos patrões alemães. A pequena fornalha rebelde do meu irmão estava sob controle, quase apagada, mas ainda assim emitia algumas raras faíscas bem divertidas e sardônicas em inesquecíveis churrascos de confraternização entre funcionários e amigos.
Um dia a gigante Vale comprou a mineiradora alemã, e logo Tatau e Jac foram morar por vários anos na beira de uma praia de Vila Velha, Espírito Santo. A carreira dele seguia de vento em popa. Com olho no grande potencial do jovem engenheiro, a Vale lhe recomendou e incentivou a fazer mais um mestrado, esse em Administração de Empresas, um MBA. Zecars na verdade já tinha atingido grande distinção profissional não só no plano nacional, como também grande autoridade em Automação no plano internacional. Agora ele fazia palestras e coordenava importantes projetos de expansão ou de reparos técnicos em plantas espalhadas pelo Brasil de cabo a rabo, e pelo resto do mundo, entre América do Sul e Ásia, África Oriental e Oriente Médio, ou América do Norte e Europa Central.
Quando podiam estar juntos, apesar de serem tantos os compromissos dele fora do Espírito Santo, Tatau e Jac se divertiam naquele delicioso ambiente de cidade praiana. Algumas das lembranças mais fortes que o casal deve ter daqueles anos, penso eu, advêm das caminhadas pelas montanhas da região e dos sabores de peixes frescos que comiam junto à orla, especialmente o peruá frito do Antônio.
E foi por lá mesmo que aos poucos o casal Jac e Tatau foi se tornando mais viciado em caminhadas quilométricas. Um dia voltaram, então, de mudança para Belo Horizonte e se logo filiaram a um grupo de caminhantes de quase só mulheres, o que deixa o meu irmão se sentindo como se fosse dono de um harém. Seria agora a realização daquele sonho de uma van lotada de beldades? Jac não liga não. Aliás, adora – a mulherada é ainda mais amiga dela do que dele, e todos se divertem pra valer.
Agora o nosso ilustre biografado pendura as chuteiras, e assim entra para o panteão dos sexagenários aposentados bem de vida. Como ele e Jac merecem esses privilégios! Tatau já está pronto para muitas caminhadas nacionais e internacionais! Enquanto isso, é muito feliz e faz muita gente feliz ao seu lado. Na condição de irmão e cunhado, só tenho elogios para esse casal nota mil! E nem tenho como agradecer a Jac, por salvar o nosso anjo loiro de pé sujo, e também ao Tatau, pelo tanto que já fez por mim. Este Contador de causo, apesar de tudo o que se disse antes sobre o irmão mais velho, ainda era um pouquinho mais farrista e mais aventureiro. Sobrevivemos os dois, uai, e de letra! Então, gente: benze a Deus! E saravá!

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