quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sem o Sam





Sem o Sam

Dário Borim Jr.

Ontem pelas oito e meia da noite fazia muito frio por esta região da Nova Inglaterra: dois graus centígrados negativos, ou seis graus negativos, sob o efeito do vento. Esse talvez não fosse o maior impecilho a minha caminhada. Mais difícil era pensar na saudade que sentia do Sampson, ou, carinhosamente, do Sam, um belíssimo cão da raça golden-retriever, de 40 kg, pêlo dourado brilhante, súper liso e macio, olhos castanhos suaves, doces como mel, rodeados de uma moldura natural bem branca, como fossem óculos de nadadores.
Sam foi meu amigo fiel por dez anos. Ele e eu devemos ter ficado bem conhecidos nesta parte da cidade de South Dartmouth como companheiros inseparáveis de assíduas caminhadas. Em geral saíamos três vezes ao dia, perambulando por aí pelas ruas, fosse dia ou fosse noite, fizesse frio ou fizesse calor. Ele me ajudava a perder peso e eu lhe oferecia a chance de respirar ar livre, de cheirar todo tipo de coisas, vivas ou mortas, no asfalto e nos jardins dos vizinhos, além, é claro, de poder receber muitos mimos das pessoas que encontrávamos por acaso. Eu sempre dizia que Sam era um cachorro viciado em carinhos.
Sam era extremamente gentil e tolerante. Cresceu junto com Zach e Ian, e com eles brincou sem jamais perder a paciência com os ocasionais exageros de meninos ao lidar com seu “brinquedinho” de quatro patas. Zach tinha oito anos e Ian quase onze quando o adotamos em Minnesota. Eram três irmãos que traziam muitos sons, movimentos, amor e alegria à casa. Os amigos que cá vinham nos visitar eram logo alvo de um doce assédio, a incansável busca de Sam por afagos. Dava gosto ver um ser tão parecido a muitos de nós humanos, na nossa necessidade de atenção e chamego.
Antes de atingir a meia-idade canina, Sam também fora pura energia. Corria por todo canto, muitas vezes em alta velocidade. Se por acaso a porta ficasse aberta por alguns segundos, ele logo fugia afundando a pata no acelerador, sem medo. Certa vez isso aconteceu tão radicalmente que ele atravessou a porta feito um cometa em direção à rua. O vizinho que morava em frente, Doug Roscoe, meu colega na Universidade, vinha de carro para casa. Quando viu aquele bicho peludo se movendo como um Airton Senna sob efeito do álcool, parou o carro, mas não pôde evitar que Sam continuasse na sua corrida frenética, e que batesse na porta do seu carro. Felizmente Sam não se machucou, nem a lataria do carro se estragou.
Nossas caminhadas às vezes incluíam tempo para ele namorar um pouco. Aquela a quem eu considerava sua namorada é Piper, uma golden-retriever bem mais jovem e um pouco mais clara e mais leve do que ele -- também um doce de animal, que mora a poucas quadras daqui. Em frente à casa dela, os dois safadinhos corriam, rolavam na grama, e se mordiam levemente, com muito respeito.
Sam era um cão que não reconhecia muitas palavras, mas entendia muito bem suas próprias necessidades e as alheias. Ele entendia, principalmente, os sentimentos das pessoas a quem amava. Quando meu sogro faleceu, não deixou que Ann sofresse sozinha em nenhum momento. Compreendeu sua dor e a acompanhou pela casa noite e dia. Nas raras vezes em que eu adoeci nesses últimos dez anos, ou quando me recuperei de uma pequena cirurgia, Sam jamais me abandonou ao lado da cama. Ele de fato entrava em depressão e não comia nada por vários dias quando um de nós quatro viajava e se ausentava por algum período mais longo. Aliás, à noite ele não se afastava da porta de entrada da casa até que o último de nós quatro voltasse da rua a qualquer hora da noite.
Sam tinha vários meios de se comunicar, naturalmente. Quando recebia um presente, como um pedaço de osso apropriado a seu peso e raça, percorria toda a casa chorando de alegria. Quando ele e eu nos aproximávamos de um quarteirão pelo qual ele não gostava de passar, diminuía a velocidade dos passos até parar, e depois me encarava. Era como dizer: “Por aí, não, meu velho. Tem alguma coisa nesse trajeto que me incomoda”. Infelizmente eu nunca descobri exatamente o que lhe era desagradável, mas sempre atendia ao seu pedido. Na hora em que ele se cansava de uma caminhada, repetia aquele mesmo comportamento. Eu lhe perguntava se estava cansado e queria voltar para casa. Ele imediatamente dava meia-volta, para que retornássemos e ele logo pudesse descansar em paz.
Pouco mais de duas semanas atrás, Sam e eu caminhávamos como de costume. Eu havia notado que nos últimos dias ele parecia cheirar o chão mais amiúde do que antes. Ele devia estar mais dependente do que nunca daquele sentido, o olfato, para se locomover. Eu não sabia que ele estava ficando cego rapidamente. Naquela tarde ele não viu uma caminhonete estacionada a sua frente e bateu com a cabeça no pára-choque. Achei aquilo um pouco estranho. Sam era como eu, muito avoado, distraído, mas não era para tanto.
No dia seguinte, uma quarta-feira (seis de novembro), ele deu outros sinais de que algo estava errado com ele. Na quinta-feira o levei à clínica veterinária. Fizeram alguns exames. A médica disse-me que infelizmente não gostava nada do seu comportamento. Parecia algo muito sério, pois Sam já era outro: tinha uma perna dura, se afastava de todas as pessoas, inclusive de mim, chorava um pouco, e ficava caminhando com dificuldade, em círculo -- às vezes até de marcha ré! Certamente era caso sério para um cirurgião neurologista, provavelmente um tumor cerebral.

A tristeza que foi vê-lo sofrer de dor e desorientação nos dias seguintes não vale a pena descrever aqui. Prefiro relembrar o enorme contentamento que ele nos trouxe por quase dez anos e registrar o prazer que foi poder tê-lo comigo por ainda mais duas noites. Dormimos, meu amigo e eu, lado a lado, em um colchonete posto ao chão. Em alguns momentos, ficamos de rostos quase colados. Apesar das suas intensas aflições físicas, Sam conseguiu adormecer em paz por várias horas, num silêncio e numa paz que jamais esquecerei. Jamais esquecerei, tampouco, a ternura do seu olhar, a maciez do pelo nas suas orelhas, ou o calor da sua pata ao nos cumprimentar como se fosse gente. No sábado, dia nove de novembro, Sam partiu, mas jamais será esquecido por qualquer um a quem tocou fundo no coração. E foram muitos de nós.

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