Sem o Sam
Dário Borim Jr.
Dário Borim Jr.
Ontem pelas
oito e meia da noite fazia muito frio por esta região da Nova Inglaterra: dois
graus centígrados negativos, ou seis graus negativos, sob o efeito do vento.
Esse talvez não fosse o maior impecilho a minha caminhada. Mais difícil era
pensar na saudade que sentia do Sampson, ou, carinhosamente, do Sam, um
belíssimo cão da raça golden-retriever, de 40 kg, pêlo dourado brilhante, súper
liso e macio, olhos castanhos suaves, doces como mel, rodeados de uma moldura
natural bem branca, como fossem óculos de nadadores.
Sam foi meu amigo fiel por dez anos. Ele e eu devemos ter ficado
bem conhecidos nesta parte da cidade de South Dartmouth como companheiros inseparáveis
de assíduas caminhadas. Em geral saíamos três vezes ao dia, perambulando por aí
pelas ruas, fosse dia ou fosse noite, fizesse frio ou fizesse calor. Ele me
ajudava a perder peso e eu lhe oferecia a chance de respirar ar livre, de
cheirar todo tipo de coisas, vivas ou mortas, no asfalto e nos jardins dos
vizinhos, além, é claro, de poder receber muitos mimos das pessoas que encontrávamos
por acaso. Eu sempre dizia que Sam era um cachorro viciado em carinhos.
Sam era extremamente gentil e tolerante. Cresceu junto com Zach e
Ian, e com eles brincou sem jamais perder a paciência com os ocasionais
exageros de meninos ao lidar com seu “brinquedinho” de quatro patas. Zach tinha
oito anos e Ian quase onze quando o adotamos em Minnesota. Eram três irmãos que
traziam muitos sons, movimentos, amor e alegria à casa. Os amigos que cá vinham
nos visitar eram logo alvo de um doce assédio, a incansável busca de Sam por
afagos. Dava gosto ver um ser tão parecido a muitos de nós humanos, na nossa
necessidade de atenção e chamego.
Antes de atingir a meia-idade canina, Sam também fora pura
energia. Corria por todo canto, muitas vezes em alta velocidade. Se por acaso a
porta ficasse aberta por alguns segundos, ele logo fugia afundando a pata no
acelerador, sem medo. Certa vez isso aconteceu tão radicalmente que ele atravessou
a porta feito um cometa em direção à rua. O vizinho que morava em frente, Doug
Roscoe, meu colega na Universidade, vinha de carro para casa. Quando viu aquele
bicho peludo se movendo como um Airton Senna sob efeito do álcool, parou o
carro, mas não pôde evitar que Sam continuasse na sua corrida frenética, e que
batesse na porta do seu carro. Felizmente Sam não se machucou, nem a lataria do
carro se estragou.
Nossas caminhadas às vezes incluíam tempo para ele namorar um
pouco. Aquela a quem eu considerava sua namorada é Piper, uma golden-retriever bem
mais jovem e um pouco mais clara e mais leve do que ele -- também um doce de
animal, que mora a poucas quadras daqui. Em frente à casa dela, os dois safadinhos
corriam, rolavam na grama, e se mordiam levemente, com muito respeito.
Sam era um cão que não reconhecia muitas palavras, mas entendia
muito bem suas próprias necessidades e as alheias. Ele entendia, principalmente,
os sentimentos das pessoas a quem amava. Quando meu sogro faleceu, não deixou
que Ann sofresse sozinha em nenhum momento. Compreendeu sua dor e a acompanhou
pela casa noite e dia. Nas raras vezes em que eu adoeci nesses últimos dez anos,
ou quando me recuperei de uma pequena cirurgia, Sam jamais me abandonou ao lado
da cama. Ele de fato entrava em depressão e não comia nada por vários dias
quando um de nós quatro viajava e se ausentava por algum período mais longo.
Aliás, à noite ele não se afastava da porta de entrada da casa até que o último
de nós quatro voltasse da rua a qualquer hora da noite.
Sam tinha vários meios de se comunicar, naturalmente. Quando
recebia um presente, como um pedaço de osso apropriado a seu peso e raça,
percorria toda a casa chorando de alegria. Quando ele e eu nos aproximávamos de
um quarteirão pelo qual ele não gostava de passar, diminuía a velocidade dos
passos até parar, e depois me encarava. Era como dizer: “Por aí, não, meu
velho. Tem alguma coisa nesse trajeto que me incomoda”. Infelizmente eu nunca
descobri exatamente o que lhe era desagradável, mas sempre atendia ao seu
pedido. Na hora em que ele se cansava de uma caminhada, repetia aquele mesmo
comportamento. Eu lhe perguntava se estava cansado e queria voltar para casa. Ele
imediatamente dava meia-volta, para que retornássemos e ele logo pudesse
descansar em paz.
Pouco mais de duas semanas atrás, Sam e eu caminhávamos como de
costume. Eu havia notado que nos últimos dias ele parecia cheirar o chão mais
amiúde do que antes. Ele devia estar mais dependente do que nunca daquele
sentido, o olfato, para se locomover. Eu não sabia que ele estava ficando cego
rapidamente. Naquela tarde ele não viu uma caminhonete estacionada a sua frente
e bateu com a cabeça no pára-choque. Achei aquilo um pouco estranho. Sam era
como eu, muito avoado, distraído, mas não era para tanto.
No dia seguinte, uma quarta-feira (seis de novembro), ele deu
outros sinais de que algo estava errado com ele. Na quinta-feira o levei à
clínica veterinária. Fizeram alguns exames. A médica disse-me que infelizmente
não gostava nada do seu comportamento. Parecia algo muito sério, pois Sam já era
outro: tinha uma perna dura, se afastava de todas as pessoas, inclusive de mim,
chorava um pouco, e ficava caminhando com dificuldade, em círculo -- às vezes
até de marcha ré! Certamente era caso sério para um cirurgião neurologista, provavelmente
um tumor cerebral.
A tristeza que foi vê-lo sofrer de dor e desorientação nos dias
seguintes não vale a pena descrever aqui. Prefiro relembrar o enorme contentamento
que ele nos trouxe por quase dez anos e registrar o prazer que foi poder tê-lo
comigo por ainda mais duas noites. Dormimos, meu amigo e eu, lado a lado, em um
colchonete posto ao chão. Em alguns momentos, ficamos de rostos quase colados.
Apesar das suas intensas aflições físicas, Sam conseguiu adormecer em paz por
várias horas, num silêncio e numa paz que jamais esquecerei. Jamais esquecerei,
tampouco, a ternura do seu olhar, a maciez do pelo nas suas orelhas, ou o calor
da sua pata ao nos cumprimentar como se fosse gente. No sábado, dia nove de
novembro, Sam partiu, mas jamais será esquecido por qualquer um a quem tocou
fundo no coração. E foram muitos de nós.