Ensaios e crônicas em português ou inglês sobre artes, literatura, viagens, e o cotidiano na Nova Inglaterra. // Personal essays and crônicas in Portuguese or English about art, literature, travel & day-to-day in New England.
sábado, 19 de julho de 2008
Encantado
En-
can-
ta-
do
dborim@umassd.edu
[Cassamento de Carla e Leandro, 21/junho/08]
O título desta crônica resume meu estado de espírito diante do desenrolar das férias que me chegaram ao fim no segundo fim-de-semana de julho. Com Ian, filhote de 15 anos e 1,82 m. de altura, cheguei a Belo Horizonte sem muita impaciência (só um pouquinho) quatro horas antes que Brasil e Argentina jogassem no Mineirão pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de Futebol.
É verdade que nossa seleção poderia ter jogado bem melhor e vencido los hermanos del sur. Mas, passada a frustração momentânea, concordo com meu filho: a equipe do Dunga não jogou tão mal, o que fica comprovado pelos clipes dos melhores momentos da partida, já postados para o mundo ver numa popular página da internet, o http://www.youtube.com/. O que importava para nós dois era estarmos lá no estádio, carne e osso, diante da seleção brasileira em jogo tão importante. Foi mesmo uma noite inesquecível para pai e filho que moram no exterior, dois fanáticos por futebol, esporte este que nos aproxima e nos faz cúmplices das mesmas emoções.
A alegria de rever parentes e amigos também veio de imediato e, em poucos dias, muitos de nós presenciaríamos o belo e chiquérrimo casamento de uma sobrinha/prima. A cerimônia religiosa, na Basílica de Lourdes, incluiu um vasto e bem escolhido repertório musical, com direito a um show à parte de um renomado barítono, um afiado trompete de fazer vibrar a alma, e um comovente coral de música sacra que escapuliu do tradicional numa breve visita à sensibilidade popular de Erasmo e Roberto Carlos. A festa no Buffet Catharina embalou centenas de convidados em gastronomia de fino trato, ao som de uma banda a tocar valsas, boleros, sambas, e vários ritmos pop dos anos 60-90 por seis horas consecutivas. Esta mesma banda acompanhou o noivo (habilidoso ao piano e na guitarra), sua noiva híper-entusiasmada, e outros membros do clã. Ao delírio de novos fãs, a família unida subiu ao palco para protagonizar uma longa cantoria de velhos clássicos dos Beatles.
Nos dias seguintes minha festa particular continuou. Foram inúmeras as garrafas de vinho e cerveja com parentes e outros seres queridos cujas amizades já duram mais de 30 anos. Foram múltiplos os eventos especiais que, pela ocasião da minha presença, reuniriam dezenas de pessoas a quem estimo e admiro até o ponto de viver sonhando com nosso próximo encontro, amigos esses que tornaram a viagem ao Brasil um encanto geral. Para ser sincero, devo dizer que a realização de um desses eventos não teve a nada a ver com minha presença. A sorte simplesmente esteve ao meu lado. Por isso pude participar de uma divertidíssima reunião de amigos, turma que festejou muito enquanto freqüentava o segundo grau na primeira quinzena da década de 1970.
Mas para não dizer que só falei de gente chegada, resta-me compartilhar a alegria que tive ao vencer o preconceito e ir viver uma experiência inusitada: dançar samba no Parque Municipal de Belo Horizonte. Como é que é?, vocês que conhecem o local estarão se perguntando. É isso mesmo: deixei o descabido medo de roubos e assaltos de lado e, imaginem, para lá me dirigi, sozinho, em plena noite de domingo. E não me arrependi. Muito pelo contrário. Senti orgulho de não ter sucumbido aos meus próprios temores, agradecendo aos céus pela extraordinária oportunidade que tinha esse expatriado dançando ao som de quatro bandas de samba, ali rodeado de jovens e não-tão jovens que curtiam o ritmo maior do Brasil e o glorioso grand-finale de mais um Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte.
Nessa vida, mais encantados nos sentimos quando uma luz, aparentemente insossa, nos acorda do sono da complacência. É quando uma graça cai dos céus e não nos escondemos dela como se essa fosse relâmpago sob chuva de verão.
Carta de Clarice
Dário Borim Jr.
Em 1995 o jornal O Estado de São Paulo publicava a seguinte carta escrita em Berna, Suíça, a 2 de janeiro de 1947. Suspeita-se que tenha sido redigida pela grande romancista Clarice Lispector.
Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.
Querida,
Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.
On Tom Jobim
By Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.
As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).
Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).
Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.
The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."
dborim@umassd.edu
This year we celebrate 50 years of bossa nova, and there is, indeed, much to rejoice, because whether one likes or dislikes this type of music, no one can deny its historically decisive role in the development of Brazilian music (especially the genre known as MPB) and its major influence upon jazz and world music at large. When we think of bossa nova, we must necessarily remember Antonio Carlos (Tom) Jobim, who died almost 14 years ago in a New York City hospital. It is high time we learned more about a priceless poetic legacy to the music and music-lovers of the world. Poet and novelist Helena Jobim's book entitled Antônio Carlos Jobim: um homem iluminado makes his personal, intellectual, and professional history come alive in a compelling story for all readers. It is, likewise, an illuminating document for researchers in the fields of music, literature, art, philosophy, and popular culture.
As if it were not for the vast, intimate, and revealing set of photographs, the engaging elegance and unique structure of the prose, the resourceful catalog of recording data, or even the enlightening description of creative processes and partnerships of a true twentieth-century's genius, one single piece of writing added to Helena Jobim's endearing biography of her brother makes it all worth it. In 1970 Tom is interviewed by one of Brazil's perhaps most intelligent and controversial journalists of all times, Carlos Lacerda (151-163).
Some of Tom's greatest anguish (but not resentment) resulted from his own image in the Brazilian press: too often distorted and misunderstood. The harshest attacks on him arguably came from prejudiced critics who, rather unfairly and unwisely, regarded his music as imitation of foreign sounds. He once declared to his family: "Lacerda's article is the only serious piece that describes who I am" (151). Of course Helena Jobim's moving and enchanting book serves to fill in some of that void. Quoting Pablo Picasso (and Tom Jobim loved quoting artists and poets, such as Carlos Drummond, Fernando Pessoa and Guimarães Rosa), the carioca maestro once explained that out of that anguish, his own "cube of darkness," he was "born again" on a daily basis (163).
Jobim's exceptional talent as a songwriter follows a tradition in Brazilian music since Chiquinha Gonzaga 150 years ago: sometimes to bridge over and sometimes to do away with the illusive divide between erudite and popular culture, including music and poetry. Toward that goal (just naturally and smoothly being driven to it, rather than pursuing it) he was certainly lucky and clever enough to chose and to be chosen to work with giants of either end, such as Radamés Gnatalli and Dolores Duran, or other outstanding bards, like Chico Buarque de Hollanda and Vinicius de Moraes, whose art has also spanned all over that open field of borderless creation.
The author of "Waters of March" actually read, questioned, and recreated the world he lived in not only through mesmerizing melody, but also through down-to-earth poetry. Helena Jobim does justice to her brother's poetic voice in many dazzling instances. It all starts on a high note of low spirits by a singular composer whose ecological concerns made him a bit gloomier every day. It is indeed too sad that he had to leave us prematurely, at the peak of his career but before writing another 500 tunes of inexplicable grace. Tom could have added one more stanza to his own verses, the one that stands as an epigraph in Um homem iluminado: "Every time a tree is cut down here on Earth, I believe it will grow again somewhere else, in another world. So, when I die, it is to this place that I want to go, where forests live in peace."
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