domingo, 27 de fevereiro de 2022

Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo

 




Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo


Dário Borim Jr. 

dborim@umassd.edu 


Eram oito minutos para a meia-noite, quando meu filho mais velho, Ian, escreveu-me uma mensagem via Messenger, do Facebook. Eu já dormia há pelo menos uma hora, sem sequer lembrar, na cama, que era noite de Carnaval. Fora impensável que algum dia antes da velhice aguda ou de qualquer caduquice precoce eu pudesse passar uma noite dessas em branco, sem uma caipirinha ou um velho samba qualquer. Mas os nossos tempos andam um tanto lúgubres, e isso, o tal lapso, de fato me aconteceu sem choro e sem vela, pelo menos por enquanto. Neste momento, entretanto, a melancolia e um profundo desapontamento com a raça humana são os sentimentos que me fazem chorar por dentro, temer pelo futuro desse mundo besta, dominado por ganância material, poder e egocentrismo. Pelas 10 horas, um tanto antes de ir para cama (para mim algo tão ridiculamente cedo num sábado de Carnaval), eu pedira a Ann, minha esposa, uma pausa ao assistirmos um belo e maluco filme de Wes Anderson, The French Dispatcher, com o qual tentávamos pôr de lado as notícias tão tristes que chegavam dos milhares de refugiados e das bombas e mísseis russos caindo sobre Kiev e outras cidades da Ucrânia.

Não respondi, assim que li, àquela perguntinha rápida, que veio em português, “Alô pai, tudo bem?”, porque eram quatro e pouco da manhã quando a vi, e o remetente deveria estar dormindo. Acabou que a mensagem dele me inspirou a assentar agora, às 5h26 da manhã, para me desabafar um pouco por essas mal traçadas linhas eletrônicas de um documento em Word. Diga-se de passagem, é muito bom ter um filho que de vez em quando me pergunta: “Quando vai sair a próxima crônica?” Foi mesmo assim que surgiu a anterior, “Tudo positivo”, de mês e meio atrás, sobre nós, uma família de três pessoas, mais três cuidadoras e um enfermeiro, vivendo sob o mesmo teto em quarentena por conta do coronavírus.

Desta feita, não tenho muito motivo para alegria ou muita inspiração para o humor com o qual tratei daquele tema sócio-sanitário. Bem, talvez. Como cronista, raramente me retrato carente de umas pitadas irônicas ou pelo menos agridoces.

Então, como estão vocês, que gostam da farra desregrada e da graça infantil que marcam a Festa de Momo no Brasil? Eu gostaria de escrever aqui sobre muitas e memoráveis ocasiões de total imersão nesse mundo da fantasia, em que as pessoas dançam, bebem, comem e sorriem muito, deixando de lado por uns dias, ou pelo menos por umas horas, as metafóricas pequenas dores de dente do dia-a-dia, ou mesmo os desafios muito maiores, e nada poéticos, como os de minha realidade atual, quando nos assolam alguns casos de câncer na família, ou a solidão deprimente e a gradativa demência de nossos idosos.

Eu não queria dedicar muito espaço nesta crônica às lembranças daqueles dias de quase êxtase ao longo das décadas – mas quem sabe mais tarde algumas cenas de conversas bem-humoradas e de festas e blocos de fantasias com os amigos poderão me visitar o espírito. Nesta noite em Dartmouth, Massachusetts, o intenso frio, o gelo e a neve ali do lado de fora, por exemplo, poderiam me levar a relembrar as fantásticas noites de Carnaval que passei aqui mesmo em casa alguns anos atrás. Bem, aqui vai o filme – não resisti. A lista de convidados tinha mais de 30 pessoas, mas só quatro tiveram a coragem de vir comemorar comigo essa tradição brasileira que tanto amo. É que naquele sábado de Carnaval de repente caiu uma enorme tempestade de neve. Se quase trinta pessoas não vieram, outras quatro que se aventuraram a dirigir para cá ficaram presas, ilhadas na alegria por três dias, até que as ruas fossem desbloqueadas e o mundo das dores de dente pudesse levá-los de volta para suas vidas normais, sem batucada e sem fantasia.

Infelizmente, vivo o que muita gente pode estar vivendo neste Carnaval 2022: uma angustiosa mistura de pessimismo e medo, empatia e dor, diante do ocorrido no mundo nos últimos dois anos, com a morte de pelo menos seis milhões de vidas, e diante das cenas deploráveis do momento na Europa, onde um governo engana uma nação de dimensões continentais e, assim, justifica, através de sofisticada produção de fake news e outras técnicas de propaganda em massa, uma guerra sangrenta e sem sentido numa invasão brutal sobre as terras de um país vizinho com o qual compartilha muita história, afeto e DNA. 

Nesses mesmos tempos de guerra e sofrimento na Ucrânia, entretanto, é alientador ver a ajuda que milhares de refugiados estão recebendo na Polônia. Pessoas na estação de trem expõem placas com os nomes de cidades poloneses maiores, aquelas que têm como oferecer melhor infraestrutura de apoio, e para onde  eles oferecem caronas. Também é incrível que pessoas que estão indo para a Ucrânia nos mesmos trens que trazem os refugiados. Muitos vão de volta para o seu país para lutar, como voluntários. Vi que uma senhora com mais de 50 anos, e que mora em Londres, tinha cruzado a Europa e estava a caminho de Kiev para cuidar da mãe de 90 anos. Vi ainda mulheres e suas filhas fazendo coquetel molotov nas ruas de Kiev: para resistir aos ataques, vale a pena! São momentos que nos trazem um pouco de esperança e nos fazem um pouco menos envergonhados de sermos seres humanos, da mesma espécie de tipos como Putin e outros líderes idiotas egocêntricos.

Resta-nos recordar que esses tempos passarão, que há novos protestos surgindo contra os russos por todo o mundo, até na Rússia. Que um dia a verdade e a maldade sempre são descobertas. E que uma característica que nos destaca, enquanto brasileiros, é a esperança e a capacidade de sorrir e fazer festa mesmo que com pouco, mesmo que incialmente acanhados, frustrados ou desconfiados, para depois, como dizia Sérgio Sampaio em outros anos de chumbo, de muita violência política e manipulação oficial, nos anos de chumbo da diatura militar, “eu quero é botar, meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer... gingar, pra dar e vender”.

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