domingo, 7 de abril de 2024

A Pérola Negra e outros imprevistos

         

 Pérola Negra e outros imprevistos




Vejo-me numa encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já vem nascendo neste exato momento, sem plano, sem rumo, e sem guião. Já faz tanto tempo que não escrevo uma crônica. De repente sinto essa forte necessidade de compartilhar um arrastão de ideias, causos e sentimentos nesta noite de sexta-feira, aqui em San Diego, ao extremo sul da Califórnia. Por conta de um congresso da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros) na Universidade Estadual de São Diego, estou hospedado há três dias num hostel bem arrumadinho – um albergue da juventude, como se diz no Brasil. Com o sugestivo nome de Stay Classy (Fique com Classe), ele se encontra localizado na Market Street, dentro do histórico bairro Gaslamp Quarter (Distrito do Lampião de Gás), a umas quinze pequenas quadras do principal porto pesqueiro da cidade, uma área de inúmeras atrações turísticas, como o Seaside Village e as vizinhas embarcações-museus, de antigos e charmosos barcos a vela, como a Star of Índia (Estrela da Índia, de 1863), a gigantes navios da Segunda Guerra Mundial, como o porta-aviões USS Midway (Meio Caminho, 1945).

No fundo, eu estava resistindo ao impulso de escrever, sem saber exatamente o porquê dessa repressão. Mas aí veio uma tentação mais poderosa. Quando meia-hora atrás desci até a cozinha no primeiro andar do Stay Classy, para encher minha garrafinha de água potável, lá estava uma mulher à porta, no meu caminho. Então pude ouvir o que ela dizia a um rapaz preparando seu jantar:

“Meu marido e eu estamos aqui neste hostel por alguns dias enquanto terminamos uma obra no nosso apartamento.”

Percebendo que alguém se dirigia à cozinha, ela se afastou um pouquinho da porta, me abrindo espaço para prosseguir. Foi quando me reconheceu e imediatamente mudou de assunto. Com incontidas risadas, disse ela ao rapaz, referindo-se a mim:

“Aqui está um homem abençoado. Muito abençoado. Depois te explico” 

Eu sabia do quê ela estava falando, claro. Tinha sido com esses termos que ela reagira ontem, quando, assustada, viu que eu abria a porta de um banheiro designado gender neutral (de gênero indeterminado). Nesse instante me dava de cara com uma mulher em pé, em frente a um espelho bem junto à porta. A mulher, provavelmente de 30 e tal anos, tinha deixado a porta destrancada, com o sinal verde do lado de fora indicando vacant (isto é, vazio), mas o real problema era que ali ela se encontrava completamente nua. Por reflexo, por autodefesa, por talvez querer me deixar menos embaraçado, ou, sei lá, por outro impulso qualquer, ela gritou:

Blessed, blessed, you’re very blessed, for having seen this black pearl,” o que quer dizer, “abençoado, abençoado, você é muito abençoado por ter visto esta pérola negra.”

Posso dizer que sou um sujeito viajado, pois já visitei 30 países até hoje – entre eles, 16 onde fiz palestras acadêmicas. Not too shabby, ou em bom mineirês, tá ruim não. O problema é que, no fundo, eu sou apenas o resquício de um menino do interior, que depois de completar 64 anos ainda se surpreende com as coincidências e interconexões do acaso e, principalmente, com o imprevisto e o insólito do comportamento humano. Em San Diego tem sido assim: uma viagem de muitas (e boas) surpresas, muito além da anormal “benção” que recebi de uma risonha e ruidosa Pérola Negra.

A Califórnia, um dos berços da contracultura nos Estados Unidos, também tem, se não me engano, uma certa fama de acolher ou mesmo gerar tipos humanos um tanto anti-convencionais, seja pro bem, seja pro mal. Por quase um ano morei em Los Angeles e lá pude constatar um certo grau de verdade nesse estereótipo. Que espécie de “bem-vindo à Califórnia” foi aquele que recebi de uns rapazes levianos e, talvez, de mau-caráter, quando, pelas duas da madrugada, eu descarregava o caminhão que eu dirigira por cinco dias seguidos desde Minnesota, com nossa mudança? Passaram de carro uns três ou quatro gaiatos, que, aos gritos de não sei o quê, atiraram ovos na minha direção. Por pouco não me atingiram a cabeça. O carinho e a ajuda que minha família recebeu posteriormente dos novos amigos, que fizemos em Los Angeles, inclusive os queridos Randal e Aparecida Johnson, com certeza me fizeram esquecer aquele groceiro incidente na noite de chegada.

Por aquela ocasião, quase 28 anos atrás, eu já ensinava Português e Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia Los Angeles. Alguns meses depois, num fim de semana tipicamente ensolarado, minha esposa, Ann, e eu viemos conhecer o extremo sul do estado. Queríamos conhecer e mostrar o famoso San Diego Zoo às nossas crianças, Ian e Zach, que tinham então três anos e seis meses, respectivamente. Não vimos quase nada da cidade, além daquele famoso hotel/cárcere de animais. Desta vez, entretanto, tenho tido a chance de visitar múltiplos pontos de meu interesse na cidade, inclusive o World Beat Center (Centro de Ritmos Internacionais) e Centro Cultural de la Raza situados no Parque Balboa. Posso, pois, hoje testemunhar o meu apreço por essa bela, multicultural, limpa e ensolarada cidade situada a quase 3.000 milhas (4.800 quilômetros) de Dartmouth, Massachusetts, onde hoje moro há 24 anos.

As surpresas e oportunidades desta segunda visita a San Diego têm sido rememoráveis. Não que eu precisasse de quaisquer insumos químicos or orgânicos, mas na Market Street mesma, a cem metros de distância da entrada deste albergue, encontrei uma pequena loja de produtos para fumantes de tabaco e usuários de substâncias menos convencionais, principalmente aquelas de lazer individual assegurado por lei, como aqui na Califórnia e em Massachusetts, mas ainda ilegais em outros estados mais conservadores deste país.

E por falar em vícios, ou semi-vícios, nem acreditei no que vi em um supermercado na mesma rua: vinhos argentinos, chilenos e californianos por menos de cinco dólares a garrafa. Como assim? Vinhos mais baratos que um galão de gasolina neste estado? Dali eu saí para outro mercado, bem menor, onde eu planejava comprar algo quentinho para comer num solitário jantar aqui no Stay Classy. Gostei de uma meia-pizza exposta que lá encontrei. Pedi a um rapaz que a embrulhasse. Ele então me disse que não recomendava que eu a comprasse. Já estava muito velha, disse. Insisti em levá-la, pois me parecia ainda bastante boa. Me surpreendi quando o vendedor me respondeu assim,

“Ah... então pode levar, de graça.” Não recusei.

Mais uma novidade veio logo. A poucos metros do mercado da pizza gratuita, a caminho do albergue, notei a presença de alguns carros de polícia piscantes e a veloz e a retumbante chegada de um caminhão de bombeiro. Então me dei conta de que um carro parado na esquina estava bem amassado. Perguntei a um estranho por perto o que tinha ocorrido. Disse que, aparentemente, o motorista do carro não viu que estava dirigindo sobre os trilhos do trolley elétrico, e contra um deles se chocou. Caramba!

Por aquela mesma esquina, anteontem, eu tinha visto passar uma estranha espécie de bonde do prazer. Nele, um veículo todo aberto, umas 22 mocinhas assentavam em bancos de madeira individuais rodeando duas torneiras de chopp. Ao mesmo tempo, aquelas jovens (provavelmente universitárias) bebiam cerveja, sorriam, cantavam e gritavam saudando os transeuntes. Cada uma delas também contribuía para erradicação das crises climáticas, pedalando para dar impulso àquele alegre e inebriante meio de transporte de urbano.

As ironias do cotidiano continuaram em San Diego. Pela manhã seguinte eu soube de um terremoto com epicentro em Nova Jersey, junto a Nova York. Foi sentido também em Massachusetts e um tanto além, na Nova Inglaterra. Como é que é? Então eu venho para a região dos Estados Unidos mais susceptível a tremores de terra bem quando eles resolvem visitar a minha sismicamente calma região tão distante daqui? Realmente tem sido uma ótima semana para se estar fora do Nordeste dos Estados Unidos, concluí. Além desse terremoto, ao mesmo tempo, também houve por lá uma tempestade de volumosas chuvas e ventos que deram muito medo a Minnie, a nossa adorável golden-retriever.

Enquanto isso, continuei aqui a cruzar meu caminho com muitos tipos humanos de aparências que também me inspiraram a escrever esta crônica. Para não prolongar muito, cito apenas dois. Um senhor idoso, talvez de setenta e tal, bem alto e grisalho, vestia bermudas que expunham suas pernas tatuadas. Ele caminhava a passos largos com um tal montante de aparelhos eletrônicos conectados aos quadris, olhos, ombros e ouvidos, que eu mal entendia do que se tratavam. Outra pessoa que me chamou bastante a atenção foi uma senhora loira um pouco mais nova, de uns sessenta anos, mas já sem alguns dentes. Passou por mim às pressas, ouvindo e cantarolando um hip-hop em volume tão alto que mesmo eu, meio surdo, não podia entender para quê tanta fanfarrice.

Nem só diante de estranhos eu me deparei com mais motivos para compor esta crônica. Sem conhecimento a priori de sua presença na cidade, pude rever grandes e velhos amigos, como os professores Vivaldo Santos, mineiro da gema que escreve livros infantis e professor da Universidade de Georgetown, em Washington, e José Luiz Passos, romancista premiado de Pernambuco e professor da Universidade da Califórnia Los Angeles, a mesma onde lecionei entre 1995 e 1996. Através deles, ontem conheci e fiz um novo amigo, Francisco Rogido, um tradutor e contista carioca, quando fomos os quatro nos descontrair num restaurante de comida indiana e nepalense, o Bhojan Grilha, situado em outro bairro pitoresco de San Diego, a Cidade Velha.

Com essa gente simpática, tomei uma deliciosa cerveja local, a Stone IPA. Antes de falarmos bem e mal da vida acadêmica e lembrarmos nostalgicamente dos velhos bons tempos, como os de outras conferências país afora, pudemos dramatizar alguns termos de nossa fase de vida. Em vez de falarmos de literatura, amores ou futebol, trocamos confidências e conselhos para com os desafios da idade, como insônia, dores no corpo, diabetes, pressão alta, e, sim, infelizmente, alguns casos doenças mais graves, além de outras assuntos de quase-velhos, ou quase-quase-velhos.

Desse filme compacto de emoções, fortaleceu-se a minha certeza de que viajar, conhecer nova gente e novos lugares, e, principalmente, reencontrar depois de muitos anos alguns de nossos velhos amigos, continua valendo a pena, apesar da idade. É a chance de sairmos da nossa área de conforto e mesmice para aproveitar a vida com mais sabor, antes que seja tarde demais, ainda que (e talvez porque) sejamos expostos ao imprevisível e ao inusitado. Amém!


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