Terras
estrangeiras
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Segundo o crítico Fernão Pessoa Ramos, há uma forte tendência no cinema brasileiro dos últimos treze anos: um tipo de acusação direcionada à nação como um todo, o grande vilão. Essa seria uma nação que se afoga num imundo mar de incompetência. Nossos cineastas contemporâneos, por seu turno, seriam navegadores cujo grande deleite é lavar nossa roupa suja diante de viajantes estrangeiros, principalmente aqueles trans-vestidos, na própria tela de cinema, com alguma indumentária e sobriedade a lhes outorgar autoridade moral (ou outro senso de superioridade) diante de sórdidos e ignóbeis terceiro-mundistas.
Ramos chama de “narcisismo às avessas” o conceito que toma emprestado do grande dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues. Nos dias em que a seleção nacional de futebol não jogava bem, Rodrigues podia perceber que as vaias no Maracanã revelavam nossas “humilhações hereditárias”. Depois de muitas gerações sofrendo das mesmas frustrações e ansiedades, o ser brasileiro, escreve Rodrigues, “virou o seu narcisismo pelo avesso”, passando a cuspir “na sua própria imagem”.
O efeito daquele tipo de cinema a expor tão exaustiva e implacavelmente os podres poderes e fatais inaptidões de uma nação seria uma espécie de catarse, como os gritos no estádio de futebol. Através dessa catarse, no escurinho do cinema, o espectador podia se sentir melhor: ficava com pena, mas se afastava daquela repugnante realidade retratada pelo cineasta.
Com o filme Terra estrangeira, de 1995, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas dão tremendo fôlego à recuperação do cinema nacional depois de cinco anos de um marasmo quase completo, herança nefasta do governo Fernando Colllor. Entretanto, além da crise política e econômica brasileira dos anos 80 e início dos 90, inevitáveis descaminhos no mundo do crime em Portugal compelem a protagonista de 28 anos, Alex, a refletir sobre a sua profunda decepção com a vida no “eterno país do futuro”. Tal sentimento, discute o crítico José Carlos Avellar, era compartilhado por milhares de jovens da classe média brasileira no início dos anos 90: “a sensação de se fazer parte de um país que não presta, de não se ter raiz nem identidade, de se viver em sua própria terra como se essa fosse uma terra estrangeira”.
Terra estrangeira, porém, deve permanecer excluído à síntese que Ramos aplica à produção cinematográfica do período de “retomada” do cinema nacional. Primeiro, vemos que a crítica social ao Brasil não é extensiva, impiedosa ou recalcitrante. Em seguida, constata-se que a imagem de Brasil terra-mãe-não-gentil é ali diluída pelas imagens muito mais problemáticas de outro país: um Portugal velho e inóspito, incapaz e indisposto a absorver os imigrantes vindos de países dos quais Lisboa tanto sugou recursos naturais e divisas comerciais enquanto metrópole imperial, e para os quais mandou, até 50 anos atrás, milhões de emigrantes. Numa terceira reflexão, aponta-se a ausência daquela típica personagem que representasse a autoridade estrangeira, emoldurando e ratificando a incompetência brasileira. Finalmente, a sensação que se tem ao assistir Terra estrangeira é a de que os realizadores da obra (nesse sentido, produtores, diretores e artistas) não objetivam o distanciamento entre a platéia e o universo dramatizado na tela.
Portanto, Salles e Thomas não configuram o tal narcisismo às avessas, cujo objetivo seria fazer com que o povo brasileiro despedaçasse sua auto-imagem para então se sentir mais distante do seu país de origem, ainda que lá mesmo continuasse residindo. O que temos neste belo filme, tão rico em simbolismos imagéticos quanto poético e pungente nos seus diálogos é, em particular, um drama sobre a imigração e a emigração entre o Brasil, Portugal, e Espanha (para onde fogem os protagonistas). Em um sentido mais amplo, vislumbra-se um estudo das inusitadas contingências e das típicas maledicências da vida no exterior. Discutem-se, pois, com o devido respeito, a imigração penosa e a complexidade quase sem fim da vida em terras estrangeiras, essas terras-mães nem sempre gentis para com seus filhos legítimos e ilegítimos que, por ora ou por gerações, se encontram destituídos de emprego, esperança e auto-estima.