sábado, 7 de junho de 2008

Sambas dos animais


Sambas dos Animais

Dário Borim Jr.
[Sampson, um golden retriever nascido em Minnesota em setembro, 2003]

“O homem antigamente falava / Com a cobra, o jabuti e o leão”. Assim tem início umas das canções mais interessantes de um compositor-filósofo: o inigualável ícone da contracultura brasileira, Jorge Mautner (um carioca filho de judeu austríaco). O assunto é sério em “O mundo dos animais”, faixa interpretada pela jovem cantora brasiliense Adriana Maciel e incluído numa bela coletânea de música infantil brasileira (que agrada a adultos também). O disco foi lançado pelo selo norte-americano Putumayo em setembro de 2007 com o título Brazilian Playground.

O tratamento do tema é leve, em ritmo de samba mais lento que o tradicional, quase o de um samba-canção, apesar de revelar um inequívoco desencanto com os rumos tomados pelos seres humanos. Por um lado vem a brincadeira que nos alerta: “Olha o macaco na selva / Não á macaco, baby / É o meu irmão”. As transformações por nós realizadas deram fim àquele tempo de paz em que a gente “falava com os animais”. Infelizmente, a era de comunicação e integração entre as pessoas e os bichos não volta mais: “Pois o homem rei do planeta / Logo fez uma careta / E começou a sua civilização”.

Não consigo pensar no assunto dessa canção sem relacioná-lo a um conto da grande escritora brasileira Clarice Lispector (também de origem judaica). Em “O búfalo”, que integra o volume Laços de família, publicado em 1960 (e reeditado pela Rocco em 1998), a narrativa nos leva a um zoológico. Seguimos os passos, os olhares e as emoções de uma mulher que de tão frustrada no amor quer exprimir (e talvez expelir) todo o seu ódio num encontro com qualquer animal selvagem que se apresente diante dela com os mesmos sentimentos hostis. Incapaz de conversar com eles, condição esta imposta por nós mesmos, segundo Jorge Mautner, a mulher na verdade se surpreende com a paz, dignidade, harmonia, e até carinho, entre os bichos.

Naquela ocasião, por exemplo, um leão lambia a testa da leoa. Depois ele passeou “enjubado e tranqüilo, e a leoa lentamente reconstituiu sobre as patas estendidas a cabeça de uma esfinge” (126). A mulher vestindo um casaco marrom (sem nome, no conto) revoltou-se diante do amor entre os dois animais, do seu romance em plena primavera. Mais tarde ela vai adquirir uma imensa vontade de matar “aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com o olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar” (127).

Um charmoso, inocente e brincalhão quati (animal que eu vim a conhecer solto e contente diante das Cataratas do Iguaçu) também desconserta aquele ser humano solitário e sem paz interior. “De dentro da jaula o quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada” (130). O animal, porém, parecia fazer-lhe uma pergunta, o que a perturbava. “A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava” (130). De tanto provocá-lo, a mulher finalmente consegue vislumbrar ódio em um animal do zoológico, um búfalo, mas prefiro deixar aqui, em suspense, o desfecho da trama.

Por ter sido extremamente influenciada pelos filósofos existencialistas, Lispector se ocupou de analisar, na sua obra, as fascinantes diferenças e semelhanças entre os humanos e os animais, preocupação esta que aparece em outros contos de Laços de família. Naturalmente o tema é complexo e não há espaço nesta crônica para maiores digressões. Vale dizer que para Lispector muitos humanos agem como se os animais não tivessem, também, muitos de nossos sentimentos, como a tristeza, o medo, a saudade, o ódio, a alegria, a ternura e o amor. Algumas das cruciais diferenças, entretanto, são que, por um lado, eles não sofrem com o conflito de emoções em torno de uma mesma situação de vida; por outro lado, não sonham com auto-superação e acumulação de posses através das guerras ou das glórias da ciência com que se transforma o ambiente onde somos criados.

Já que os tempos de conversa aberta entre humanos e animais já se exauriu, como sugere Jorge Mautner, ou que nunca existiu, com a necessária transparência, até mesmo entre os humanos, como implica Lispector, é hora de amarmos mais uns aos outros, humanos, e também os animais. Sem mesmo contarmos com as benesses de uma linguagem humana precisa, sem erros e rodeios, talvez seja hora de tentar aprender algo: como deixar de lado a soberba e a auto-promoção em detrimento do bem alheio, e abraçar os sambas dos animais, brincando e harmonizando-nos como muitas crianças da nossa espécie ainda conseguem.

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