terça-feira, 20 de março de 2012

Nos tempos do Cine Íris


Nos tempos do Cine Íris

Dário Borim Jr.



A praça Oswaldo Costa é do povo, assim como o céu é do avião. Caetano Veloso que me empreste seu delicioso verso em "Frevo novo", sobre a lendária praça Castro Alves em Salvador, para eu iniciar essa "crônica nova" em viagem, no céu da memória e da imaginação, até minha querida Paraguaçu. Convenhamos, poucas cidades pequenas têm uma praça tão charmosa como a nossa, e pouquíssimas têm na sua história um cine-teatro como o Cine Íris. Como falar, no curto espaço de uma crônica, desse enorme palco de recordações? Por onde começar e onde terminar? Acredito que será necessário escrevê-la em duas partes para resgatar apenas algumas das histórias que ainda estão por serem registradas. Então, se chegarem ao fim dessas mal traçadas linhasbrincadeira, né, pois elas estão certinhas por culpa do computador—e se quiserem mais, podem esperar porque virá uma segunda crônica incluindo mais "causos" daquela inesquecível era de cinema em nossa cidade.
Nos anos 1960 e 70 o Cine Íris era mesmo a alma e o coração daquela praça, e ela, por seu turno, era um microcosmo de toda a nossa Paraguaçu. Os autofalantes tocariam centenas de vezes umas dezenas de versos, como "Dio, como ti amo, non e possible/ Avere tra le braccia, tanta felicita" na voz da italianíssima Gigliola Cinquetti. Eu particularmente me emocionava quando o antigo laguinho e todos os bancos da praça ouviam comigo o Roberto Carlos cantar "Como é grande o meu amor por você". E lá vinham sucessos estrondosos de Wanderléia, Os Incríveis, Jerry Adriani e Rita Pavoni. Na verdade havia música para gente de toda idade e gosto, inclusive melodramas de Agnaldo Rayol, Nelson Ned e Nelson Gonçalves. O fato é que desde o fim da tarde até as primeiras horas da noite, podia-se andar de bicicleta ou fazer o footing na praça deliciando-se ao som que saía das duas ou três poderosas gargantas de ferro do Cine Íris. Quantos namorados sonhavam juntos e quantos casais se casariam depois de um flerte por ali, onde o romance também se nutria dos aromas das flores de um jardim tão belo e bem cuidado.
 De fato, o cinema se fazia presente por todos os cantos da cidade não só por conta daqueles poderosos autofalantes fixos, mas também por conta do autofalante móvel que circulava pra baixo e pra cima nas mãos do competente cantor e animador de shows chamado Airton, aquele fanático torcedor do Palmeiras que tantas vezes passou pela Casa Dois Irmãos só para gritar bem perto das orelhas do meu tio Delmo: "Cê viu? O Parmeira meteu o fumo no Corintia". Quando Airton não se vangloriava do time dos periquitos, ele cantava a todo vapor e vendia broas de fubá ao anunciar as atrações do cinema pelas ruas da cidade. A pronúncia que ele tinha dos nomes das estrelas de Hollywood era especial: "Não perca. É hoje, no Cine Íris: Ben Hur, com Xarton Reston. Amanhã tem mais, o sensacional O dólar furado, com Giuliano Gemma!"
Aquele era o tempo das balas Chitas compradas no cinema (um pouco mais caras) ou no bar mais famoso da época, o Shangrilá. Época dos beijinhos escondidos e prazeres atrevidos da mão boba, dos tagarelas que não calavam a boca por nada desse mundo. Muitos já sabiam os diálogos (depois de ver o mesmo filme meia dúzia de vezes) e falavam alto antes dos atores na tela. Mais comuns ainda eram as guerras de pipoca, e mais temida era a figura do "lanterninha", que tentava apaziguar os ânimos da rapaziada excessivamente namoradeira ou bagunceira. Difícil manter a ordem, claro, se o filme arrebentava muitas vezes ou se o maquinista levava muito tempo para emendar as pontas da película e reiniciar o filme. A vaia era de deixar a gente surda. Dependendo da gravidade da zorra, era hora do famoso e saudoso Carlito (Carlos Prado Campos), dono do cinema, descer e subir o corredor central com um olhar de fera e uma voz impaciente (coitado), às vezes ameaçando de chamar a polícia e expulsar os mais exaltados.
A magia dos filmes vinha de nossos maiores ídolos, um Alain Delon, uma Brigitte Bardot, un Rin-Tin-Tin, uma Sophia Loren, um Zé do Caixão e, também, um Mazzaropi, que um dia visitou nossa cidade. Eu estava lá e mal acreditei: o quê, nosso grande herói caipira em Paraguaçu?
Pois é, nossa cidade não era nada "típica" não. Havia algo de muito especial no ar, na água, sei lá. Alguma coisa metafísica que dava um gosto tão especial àquilo tudo. As escolas tinham campeonatos de futebol. O Fabril tinha um nome a zelar. Vários circos nos visitavam. A cidade tinha duas ou três boates, por exemplo. Lembro-me da Super Plá e da Tesão. O bar do Vatinho era um ímã para todos nós que ali passávamos tardes e noites regadas a muita Antárctica. Havia animadíssimos bailes nos três clubes, o Democrata, o Ideal e a Liga Operária. Tínhamos também um dinamismo cultural impressionante, com festivais de música semanais e com peças de teatros apresentadas por crianças sob a direção da (tia) Selma Sólia Nasser. Lembro-me de um musical que fizemos, com os personagens de Walt Disney. Que festa!
E que festas animadas tinha a própria igreja. Os leilões de prendas e comestíveis eram disputadíssimos. Nós pirralhos sonhávamos com um frango assado embalado em papel celofane. Aquelas festas tinham até partidas de futebol de garotinhos de cinco anos organizadas pelo Múcio Prado Campos e Cícero Viana, jogadas ali mesmo no adro da matriz.
Em poucas palavras: éramos felizes e sabíamos!

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