O espírito americano
Países extensos como os nossos, Brasil e Estados Unidos, oferecem-nos o mito dos campos abertos, das matas sem fim, e das estradas que não acabam mais. Parece que fica mais fácil sonhar com longas viagens em que veremos o desconhecido por infindáveis dias, semanas, ou até meses. Sonhar é uma coisa. Pegar no volante ou colar o traseiro num banco de passageiro por muitas horas, dia após dia, é outra. Chamo isto de espírito americano porque vejo mais desse fenômeno por aqui, ao norte do equador, do que aí, do Oiapoque ao Arroio Chuí.
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Países extensos como os nossos, Brasil e Estados Unidos, oferecem-nos o mito dos campos abertos, das matas sem fim, e das estradas que não acabam mais. Parece que fica mais fácil sonhar com longas viagens em que veremos o desconhecido por infindáveis dias, semanas, ou até meses. Sonhar é uma coisa. Pegar no volante ou colar o traseiro num banco de passageiro por muitas horas, dia após dia, é outra. Chamo isto de espírito americano porque vejo mais desse fenômeno por aqui, ao norte do equador, do que aí, do Oiapoque ao Arroio Chuí.
Engraçado: será que o fenômeno é genético ou cultural? É que mês e meio atrás meu filho mais velho pôs em prática aquele espírito americano. Sei que Ian é filho de gente que gosta de estrada, gente que já mudou de casa, cidade, estado e país muitas vezes (sete vezes entre 1995 e 2001, por exemplo). Mas sendo ele filho de homem brasileiro e mulher americana, e tendo ele vivido tanto na América do Sul quanto na América do Norte, torna-se difícil atribuir a origem de tal espírito exclusivamente aos seus genes ou aos seus diferentes ambientes de criação.
O fato é que o rapaz convidou-me para acompanhá-lo numa longa viagem de carro até Manchester, uma cidade no estado do Tennessee, situada a 1.700 quilômetros de onde moramos, Dartmouth, Massachusetts. Haveria o famoso Bonnaroo Festival. Eu estava bem disposto a fazer-lhe companhia e desfrutar de um belo festival de música pop de quatro dias e quatro noites. Muita gente boa subiria ao palco, inclusive o canadense Neil Young. Por conta de um inevitável compromisso junto à universidade naqueles dias, não pude aceitar o convite. Ele não se intimidou,
“Problema não, pai. Vou sozinho.”
Com certeza não havia nem como tentar despersuadi-lo. Ele mesmo já tinha comprado ingressos que não eram nada baratos. Sobretudo, sabíamos muito bem como sua personalidade é muito forte e sua determinação (pra não dizer teimosia) era conhecida desde os tempos em que ele nem sabia falar direito o inglês ou o português. Naquela época em que ele e eu passeávamos de mãos dadas pelas ruas de Minneapolis, o danadinho já queria me mostrar em que ruas e em que direção nós deveríamos seguir. Sem exagero, aos dois anos e meio de idade o rapazinho já queria decidir o que seus pais deveriam comer quando íamos os três a um McDonald’s.
Então o que podíamos fazer, fizemos. Dono de um belo, mas velho carro, um Volvo verde 1999, Ian estaria mais seguro se viajasse na nossa van, a Entourage, da Hyundai, feita para sete passageiros. Com os bancos de trás embutidos, ele poderia dormir cinco noites muito bem utilizando um sleeping bag. O jovem prometeu que nos mandaria pelo menos dois torpedos diários. Assim o fez, e deu tudo certo. Seis dias depois de partir, cá estava de volta à casa. Aliviados e orgulhosos de sua bravura e sucesso, nós o recebemos repleto de sorrisos e de histórias.
Pais de filho-peixe, peixes também os são, não é? Chegou a nossa hora: Ann e eu, mais o nosso cão gigante, Sam, faríamos uma viagem de carro até Duluth, no estado de Minnesota, que fica a pouco mais de 2.200 quilômetros daqui de Dartmouth. Lá veio de novo o espírito americano. Ann decidiu que dava para fazer direto, dirigir sem parar a não ser para comer e usar o toalete. Sendo eu apenas um ex-rapaz de Paraguaçu, achei aquilo muito estranho, mas topei, porque afinal de contas também adoro estrada, e parece que nasci com sede de aventura. E não é que foi uma ótima opção? Quando um conduzia, o outro dormia. Sam, o constante vigilante rodoviário, de vez em quando roçava o focinho frio nos braços do motorista de plantão e assim prevenia o sono fatal. Ele mesmo não comeu nem dormiu um minuto sequer durante todo o trajeto.
Tínhamos saído sexta-feira, dia 15 de julho, pelas seis horas da tarde na direção noroeste, rumo ao Canadá. Atravessamos a fronteira logo após a cidade de Búfalo, no estado de Nova Iorque, pelas duas da madrugada, depois de um desnecessário misto de susto, desconforto e perplexidade. O oficial de fronteira canadense nos recebeu como se fôssemos dois possíveis criminosos. Sisudo, rude e desconfiado desde o primeiro instante, o baixinho de farda e colete à prova de balas deu vazão a sua estupidez com essa pergunta:
“Vocês estão carregando um daqueles sprays de pimenta?”
Quando, espantados, dissemos que não, ele não se contentou, e soltou mais essa pergunta estapafúrdia:
“Vocês têm alguma coisa contra sprays de pimenta?”
Caramba, de onde é que lhe veio essa idéia de que poderíamos estar carregando esse tipo de pistola para auto-segurança? O homem era muito estranho. Parecia cuspir ódio pelos olhos. Deixou-nos entrar no seu belo país, mas antes nos atirou mais essas duas perguntas:
“Vocês estão carregando armas? Vocês têm armas em casa?”
Na noite de sábado, vinte e seis horas depois da partida, nós chegávamos à aconchegante Duluth, cidade que, entre todas, mundo afora, possui o cais comercial mais distante da costa. A cerca de 2.000 quilômetros, seu cais recebe navios transatlânticos. No Canadá eles descem o Canal do Rio São Lourenço, atravessam os cinco Grandes Lagos, e assim transportam minério de ferro e grãos para o resto do planeta. Com certeza Duluth também recebe outros viajantes que vêm de muito longe, como nós, que vimos nove veados mortos à beira do asfalto. Por ali também encontramos dois lindos ursos negros— livres, alegres e aventureiros filhotes a salpicar sob um escaldante sol de verão pelas estradas da vida.