Entre a Pera e a Maçã
Dário Borim Jr.
Em versos de uma divertida
e astuta canção de 1984, “Língua”, o eu lírico de Caetano Veloso diz que “a
poesia está para a prosa/ Assim como o amor está para a amizade/ E quem há de
negar que esta lhe é superior?” A poesia tem mesmo muito em comum com o amor
romântico. Nem sempre, é claro, mas tantas vezes a poesia faz-se expressão figurativa,
conotativa, e ambígua dos sentimentos em forma de desejos, sonhos, ilusões, ciúmes
e paixões. Ela brota do “eu” do escritor e o relaciona com o mundo externo,
onde vive, principalmente, a pessoa a quem ama. A ficção em prosa, por outro lado, tende a ser
menos simbólica, mais denotativa, e menos ambígua do que a poesia. É mais
voltada para a retratação das ações de várias personagens. A prosa brota da
necessidade de se contar uma história num mundo onde várias pessoas agem
segundo uma multiplicidade de interesses e imperativos, entre os pragmáticos e
os emocionais.
O
amor romântico geralmente existe por apenas um ser de cada vez, e a poesia brota
na voz de um só eu lírico a expor suas próprias emoções e reflexões. A amizade,
por outro lado, é o que nos une a várias pessoas queridas, da mesma forma que a
prosa (muitas vezes sem mesmo um único narrador a viver no mesmo mundo dos
personagens) perfila e dá voz a várias personagens através de diálogos.
Mas há
uma coisa em comum entre o amor romântico e a amizade. A compreensão e a
experiência de ambos são diferentes de cultura para cultura pelo mundo afora e
vêm-se modificando ao longo dos milênios. O amor romântico, especialmente o do tipo amor-paixão,
por exemplo, não foi praticado por muita gente antes da era do amor cortês, o
da poesia trovadoresca da Idade Média.
Outro dia,
o Ian, filho atualmente morando no Marrocos, dizia que a amizade lá e em outros
países árabes é quase como que um contrato social. Há muita lealdade e muita
expectativa entre amigos -- do mesmo modo, entre amigas, por outro. Estive no Egito e
pude constatar que muitos homens andam pelas ruas de braços dados com outros
homens, e mulheres passeiam de mãos dadas com outras mulheres. Entretanto,
naquela cultura não se pode externar o amor romântico em público. Não se pode
dar as mãos e nem se beijar no rosto do sexo oposto, nem mesmo entre pessoas
casadas, ou entre pais e filhos adultos.
As
diferenças também podem ser individuais. Ninguém tem um círculo de
amizades igual ao de outra pessoa, muito menos os mesmos sentimentos pelas
mesmas pessoas. Sei, porém, que valorizo intensamente minhas relações com
vários amigos e amigas, pessoas que carrego no lado esquerdo do peito há muito
ou há pouco tempo, sem que essa marca do tempo determine a intensidade daquelas
afeições.
Na minha
mais recente viagem ao Brasil vivi momentos preciosos na companhia de novos e de
velhos amigos. Aliás, essa é outra característica deles em conjunto: podem ser
5, 10, 20, ou até mesmo 30 anos mais velhos ou mais novos do que eu eu.
Lembro-me de Carlos Prado Campos, o Carlitos do Cine Íris. Nossa diferença de
idade era de pelo menos 30 anos, mas eu o considerava um amigo. Jogávamos
xadrez, tomávamos cerveja, falávamos de literatura e abríamos os corações. Aqui
nos Estados Unidos, um de meus melhores amigos é Rick Hogan, um professor de
filosofia aposentado, quinze anos mais velho que eu.
Então,
de passagem por Belo Horizonte, dois meses atrás, fui convidado pelo meu
queridíssimo amigo Geraldo Faraci para curtir um fim de semana na sua casa de
campo, localizada no charmoso condomínio Retiro do Chalé, perto de Belo
Horizonte. Para lá iria também outro amigo do peito, João Batista Vaz Xavier. Nós três
já vimos curtindo nossa amizade há nada menos que 35 anos! Também foram
convidados para o almoço de sábado naquele recanto edênico, entre as belas montanhas
de Minas, o meu mano, o Tatau, e sua esposa, Jac, a quem conheço e estimo como
irmã faz bem mais que 30 anos!
Para elevar
ainda mais o astral da ocasião – o reencontro de velhos amigos – tive a ideia
de convidar uma pessoa que pudesse levar para a festa o dom que mais aprecio,
desde que me entendo por gente: a música. Eu já tinha ouvido a jovem Marina Bueno
tocar violão e cantar uma vez, alguns anos atrás, numa festa de Natal na casa
de D. Walderez Mignacca. Achei fenomenal que uma adolescente conhecesse tantas
canções de múltiplas gerações e pudesse interpretar tão bem e tão despretensiosamente
diante de dezenas de amigos e parentes. Filha de Lígia e Vinícius Bueno, um
amigo dos tempos do Juvenato também apaixonado por música, a jovem Marina
encantou a todos naquela tarde em Paraguaçu.
Um dos
elementos que sustentam as amizades ao longo dos anos é o gosto pelas mesmas coisas,
e ali, no Retiro do Chalé, a música era um dos mais fortes elos. Na espera do
almoço, sob o comando e sob o delicioso atraso do grande mestre-cuca Batista, o
menu musical incluía canções de Tom Jobim, Jorge Benjor, Rita Lee, Raul Seixas,
Tim Maia, Cazuza e muito mais. Com sua voz afinada, Marina parecia não se
importar com os desafinados ao redor, cujo entusiasmo subia mais um pouco a cada golo da
verde (caipirinha) ou da amarela (cerveja). Ao longo de algumas horas de
cantoria, estava claro que todos viam ali se formando novos elos do coração.
Era óbvio que a química entre os velhos e novos amigos fazia coro do que há de
mais agradável na vida: a paz e a alegria entre as pessoas que se apreciam.
Na
cadência do samba ou do rock’n’roll, ouviu-se uma verdade tácita – mas extravasada
– no brilho dos olhos de cada um dos presentes. Não tenho dúvida: ao lado do
amor, a amizade se sustenta no topo das experiências humanas. Na casa de
Geraldo e Sônia Imanishi, Marina também foi capaz de ajudar esse casal a
reviver momentos que jamais deixarão de habitar o âmago dos seus seres. Os dois
compartilharam com a nova amiga as partituras das canções que sua filha Yumi
mais tocava e cantava.
Apesar
de breve, Yumi viveu uma intensa e fascinante vida de viagens, esportes e,
principalmente, música, que tocava muito bem ao violão e cantava em português, espanhol,
inglês ou japonês. Ela faleceu tragicamente em Ilha Grande quatro anos atrás,
quase à mesma idade que Marina tem hoje. A magia de ver Marina percorrer,
comentar e interpretar as cifras de Yumi não teve par. Seu talento, sensibilidade
e carinho fizeram com que pais e amigos presentes sentissem que Yumi ali estava
também. E quem poderia dizer que ela não estava?
As
analogias podem ser verdadeiras, mas jamais esqueci uma advertência que ouvi de
Ronald Souza, o professor luso-americano que me orientou num dos dois mestrados
que fiz na Universidade de Minnesota: “cuidado, as analogias podem ser
perigosas e enganosas”. Gosto e concordo com o que dizem os dois primeiros dos versos
citados acima. Já sobre o terceiro, tenho dúvidas. Como posso afirmar que a pera
é “superior” ou “inferior” à maçã? Nem uma coisa nem outra, são como amizade e
o amor, que têm mais uma característica em comum: operam milagres nos corações
daqueles que amam e/ou cultivam as formas mais sinceras e profundas de amizade.
Essas, para mim, constituem-se no prazer maior de viver.