“Tem dias que a gente se sente
como quem partiu ou morreu”, diz Chico Buarque de Holanda em “Roda-viva”.
Cruz-credo – ainda não cheguei lá não, mas confesso: tem dias que eu me sinto
feito peixe for a d’água, isso sim. É o que me acontece aqui onde moro de vez
em quando, apesar de eu já ter passado nos Estados Unidos 21 dos meus 51 anos
de vida. O engraçado é que em certos momentos minha condição de brasileiro não
é bem o que me traz conflito diante da minha própria família com três
americanos (fora o gigante peludo Sam, nosso adorável golden-retriever). É
outra, então, a origem da minha sensação de gauche
em Massachusetts. Aliás, era esse, gauche, o termo que Carlos Drummond de
Andrade, um filho de Itabira instalado num prédio de apartamentos no Rio de
Janeiro, aplicou a si mesmo: era um gauche
enquanto “fazendeiro do ar”.
Na verdade, papo de migrante
ou imigrante não assumido não é meu assunto hoje. Quero falar de um peixe de
verdade, que fora d’água foi cair nas mãos da única pessoa que gosta de peixe
na minha casa: o autor dessas mal traçadas linhas. Antes de pôr a mão na massa
e contar a história de um real peixe vivo que não conseguiu viver fora d’água
fria (viva Jucelino Kubitscheck), preciso fazer justiça a minha admiração pela
cidade onde moro. Em função da natureza viva e embreada no meio e nas margens
de South Dartmouth, digo que esta é a cidade mais linda em que já morei. As
suas enormes e frondosas árvores de verde pomposo no verão e multicoloridas a
cada outono, os seus jardins bem cuidados e aromatizantes até a alma – e,
principalmente, as águas transparentes do mar e da belíssima baía repleta de
barcos a vela a apenas quatro quadras desta casa – não dão chances às inúmeras
concorrentes, cidades em que morei no Brasil ou nos Estados Unidos.
Naquele sentido, sou peixe muito bem ajustado a sua água, pois de sobra tenho ainda as estrelas como companheiras de vida. É que por causa da crise financeira de 2008 a prefeitura desligou muitos dos holofotes públicos. Há anos nossas ruas se vestem de um mesmo breu que a todos nos envolve, oferecendo-nos as estrelas e a lua de plantão mensal como excelentes alternativas à claridade cara e artificial que antes vinha dos postes de madeira.
Naquele sentido, sou peixe muito bem ajustado a sua água, pois de sobra tenho ainda as estrelas como companheiras de vida. É que por causa da crise financeira de 2008 a prefeitura desligou muitos dos holofotes públicos. Há anos nossas ruas se vestem de um mesmo breu que a todos nos envolve, oferecendo-nos as estrelas e a lua de plantão mensal como excelentes alternativas à claridade cara e artificial que antes vinha dos postes de madeira.
Há quase dois anos,
quando resolvi encerrar um longo período de negligência para com minha saúde e
aparência, tornei-me um andarilho urbano.Essa formosura de cidade à beira-mar
muito contribuiu para que eu adquirisse o hábito de fazer diariamente longas
caminhadas por suas ruas e por sua orla marítima. Numa dessas “viagens”
noturnas, ao embalo da melhor MPB que possuo, eu passava pela nossa ponte
giratória sobre a baía, quando um dos pescadores me abordou. Pensei que queria
brincar ou fazer carinho no Sam, minha companhia assídua. Não. O tal rapaz, de
forte sotaque hispano, muito generosamente me perguntou se eu gostava de peixe.
Logo me ofereceu um blue fish de um quilo e meio que ainda se mexia sobre o passeio
de concreto, aos seus pés:
— É seu então. Só
precisa de um saquinho para levá-lo.
Olhei para os lados e vi
um saquinho plástico sendo tocado pelo vento sobre a pista de rodagem. Corri e
o apanhei. Agradeci ao jovem pescador porto-riquenho (Juan é seu nome, disse-me
ele), e passei a matutar: o que fazer com esse peixe numa casa onde todos os
seres (menos o Sam) detestam peixe? Pior, eles nem toleram cheiro de peixe!
O jeitinho brasileiro
tinha que funcionar. Logo pensei nos três sacos de gelo que havia no
congelador. Tinham sido comprados em preparação aos possíveis apuros de um
furacão que nos ameaçou, mas se esquivou, dois meses atrás. Eu deixaria o peixe
do lado de fora da casa. Eu entraria na cozinha em silêncio e pegaria os sacos
de gelo e uma caixa plástica. O peixe e o olfato dos ultra-sensíveis co-habitantes
estariam protegidos até a manhã seguinte, quando os gringos da casa estariam na
escola e o mestre-cuca mineiro transformaria aquele blue fish em belo risoto
para um solitário almoço. Diga-se de passagem que Ann, Ian e Zach não almoçam
em casa. Eu teria tempo para grelhar e comer meu peixe sem deixar o ar da
cozinha impregnado daqueles cheiros deliciosos que só a mim me apetecem nesse
lar bi-cultural.
Deu tudo certo, pensei.
Desfrutei do sabor extra especial de um peixe retirado daquelas águas azuis
pelas quais passeio todos os dias. Que luxo! Tive uma sensação de plenitude, de
interação completa ao meu meio-ambiente, como um bom peixe em águas cristalinas.
Qual foi minha surpresa e decepção, entretanto, ao voltar para casa à hora do
jantar! Fui logo lavar umas panelas e ouvi de Ann, que estava em pé logo atrás
de mim, a pergunta que denunciou o fracasso parcial da minha missão:
— Você comeu peixe hoje?
Ra-ra-ra’, diria o
colunista da Folha, José Simão. Eu ri, meio sem jeito, mas ri sim.
Só pude perguntar a ela se foi o cheiro da panela já lavada há muitas horas que
de alguma estranha forma... “me entregou”. Ela riu também, disse um “talvez”
amarelo, mas não reclamou.
Algumas pessoas para
quem já contei esse “causo” me disseram:
— E por que você não
manda esse pessoal às favas?
Sou mineiro, uai, e bem
diplomático. Prefiro continuar cozinhando em surdina e reservar as favas para
quando eu não puder mesmo comer meu peixe, ou para quando eu me sentir, mais
dolentemente, um peixe fora d’água.