Essa tal de felicidade
Dário Borim Jr.
“Brasileiros desistindo do sonho americano” -- esta é manchete de uma reportagem publicada por Nina Bernstein e Elizabeth Dwoskin no New York Times desta última terça-feira, dia 4 de dezembro. Sim, são brasileiros, aos milhares a cada dia, comprando passagens aéreas só de ida para nossa terra.
Lembro-me de que nos anos 80 eu pensava nesse tal de “sonho americano” com uma boa dose de suspeita. Nas aulas que dava em Belo Horizonte, debatíamos essas possibilidades de prosperidade e liberdade. Discutíamos se o prazer de comprar e possuir garantia a tal da felicidade. Não havia consenso.
Atualmente vivemos num mundo de milhões de imigrantes e retirantes. As estatísticas são assombrosas: centenas de milhões. Estariam tantas partes do mundo em apuros? A vida no chamado primeiro mundo seria muito melhor? Seria São Paulo ou Moscou um paraíso para onde deveriam mudar os destituídos e outros carentes?
Clarice Lispector — escritora de pais russos, que nasceu na Ucrânia quando sua família emigrava para o Brasil — criou uma das histórias mais pungentes sobre os nordestinos no sul do Brasil. O narrador (masculino) desse romance, intitulado A hora da estrela, se pergunta se a felicidade por acaso não passaria de uma ilusão do tipo daquelas que manipulam tantas almas nordestinas, como a de Macabéa, a protagonista. O mesmo poderíamos questionar a respeito do “sonho americano”. Não seria isso apenas uma ilusão de muitos sujeitos terceiro-mundistas?
Acho que não. E nem acho que o narrador de Lispector tivesse razão. Quando se trata de sonhos, ambições, sacrifícios, coragem para deixar a família e os amigos, a língua e a terra natal, a iniciativa e seu valor são sempre mais complexos que a ilusão inocente, descabida. Não há paraíso na terra, convenhamos, porque a vida de qualquer pessoa é uma sucessão de provas e demandas, diante das quais são necessárias abdicação e paciência nas horas de ceder e obter conveniências, mas sempre vale lutar por melhores condições para enfrentarmos os desafios.
Então se hoje é, para muitos brasileiros, hora de voltar para o Brasil, com certeza é um momento triste, porque muitos foram pegos em pleno gozo do sonho ou realização da prosperidade. Mas a verdade é que o mar não está pra peixe há algum tempo. Os nossos conterrâneos que têm que pagar um preço muito alto para permanecer neste país — tal como a tensão diária no trânsito, pois uma falha poderá resultar em prisão e deportação imediatas — têm mesmo que reavaliar sua relação com a felicidade e buscá-la em outras praias, de outras formas. Mas isso também é muito complicado, pois às vezes um dos filhos já é crescido, é cidadão americano, e nem conhece o país que terá que adotar, se seguir os passos dos pais.
As leis de imigração de qualquer país, alteradas de tempos em tempos conforme as necessidades, nunca são leis que buscam assegurar a justiça. São na verdade regulamentos que visam preservar os interesses daqueles que têm mais poder no país e conseguem argumentar que estão a defender o bem comum, o bem do povo. Mas como toda nação é composta de uma população heterogênea, os grupos no poder também se diferem entre si nos seus interesses e nos modos de como querem/dizem querer defender o seu país.
Conseqüentemente, há tremendas contradições em tais regulamentos, pois refletem um jogo de esconde-esconde, de intenções não reveladas, de (falsas) imagens que protegem o interesse desse ou daquele grupo. Há, desse modo, um jogo de braço entre os donos do poder, e o indivíduo oprimido sob múltiplos riscos quase nada pode fazer diante desses interesses “oficiais”. Ainda bem que em uma sociedade plural há também compaixão e luta por direitos humanos. Estas, somente às vezes merecem a atenção dos legisladores e dos políticos que vêem além dos ganhos eleitorais imediatos e reservam um espaço na consciência em prol do próximo — seja ele portador de documentos deste país ou de outra nação, o que, aliás, não reduz em nada o seu direito à dignidade e à oportunidade de buscar a sua própria felicidade.