Uma Borinzada a
Zero Grau
“Help!
I need somebody, help” – eu gritava da varanda da nossa casa! Não queria
parecer estúpido para ninguém, ali sozinho, a zero grau. Mas como não? Eu não
tinha escolha! O jeito foi apelar para os versos de uma famosíssima canção
existencial dos Beatles, de 1965. A persona criada por John Lennon e Paul McCartney
está se sentindo só e insegura, então pede ajuda! Diz ela que passada a
juventude, veio o bode. Agora o eu-lírico se encontra muito mal, mas resolveu
abrir as portas da mente e procurar uma saída ̶ para
pôr de novo os pés no chão e tocar a vida. Abrir as portas literalmente e pôr o
pé no chão do primeiro andar era o que eu precisava agora. Do segundo andar eu
gritava, e gritava, em inglês, como os Beatles, com pequenas variações ao tema
principal:
̶ Socorro,
por favor! Sou Dário Borim Jr., seu vizinho da rua Anthony! Estou trancado na
varanda da minha casa! Tá frio aqui! Um telefonema é só o que eu peço. Por
favor!
Essa mensagem eu cortei, recortei, embaralhei e
repeti umas cem vezes, durante mais ou menos uma hora e quinze minutos, entre
10h30 e 11h45 da manhã de ontem. Enquanto isso, eu dançava com marchinhas e
sambas na cabeça, daqueles clássicos que toquei no meu programa de rádio, ontem.
Ou, para variar um pouco, eu mexia as pernas e os pés como se estivesse me aquecendo
e me aprontando para um jogo de handball das Olimpíadas de Paraguaçu! Às vezes eu
resolvia me distrair, cantando em voz alta:
̶
“Bandeira branca, amor, não posso mais. Pela saudade que me invade eu
peço paz…”
Tudo começou quando eu acabava de preparar a
casa para receber as faxineiras açorianas, Mônica e Maria. Não sei se são
lésbicas, mas parecem. Não é da minha conta, mas se são, dou crédito especial a
elas. O mundo precisa ficar cada vez mais aberto para as várias possibilidades
do amor e da vida a dois ̶ ou a duas! Saravá!
O fato é que a chegada delas, as açorianas, marcada
para 11h30, seria a minha redenção. O frio de zero grau já começava a me incomodar. Um conjunto de
moletom fininho (calça e blusa) não seria suficiente para me garantir o mínimo
conforto, ali em pé, durante horas, principalmente quando o vento soprava e a
sensação térmica devia cair para uns cinco graus negativos!
Bom, eu dizia que a preparação para a faxina
estava pronta. Isso acontece porque Ann, minha esposa, e eu não somos de deixar
a casa bonitinha o tempo todo. Muita gente criativa acha que é meio perda de
tempo passar a vida organizando a vida. Então, em dia de faxina, os donos da
casa fazem um exercício preparatório que inclui a retirada de alguns items do
chão, das mesas, do balcão e das pias da cozinha, por exemplo, para que a Monica
e a Maria não percam tempo com essas atividades e saiam daqui de casa o mais
cedo possível, depois de no máximo umas duas horas de limpeza pesada apressada.
Então, como última ação coercitiva pré-faxina,
eu pus a cesta de roupa suja no piso de madeira da nossa varandinha, um espaço
de uma única parede de madeira e o resto de tela, onde eu me encontrava. É uma
área de aproximadamente 3 x 2 metros adjacente ao nosso quarto de dormir. Ali fora,
sem saber do mal que iria me causar, fechei a porta entre a varandinha e o
quarto, enquanto posicionava a cesta para fora do alcance da chuva. Ela anda
caindo por aqui nesses dias de “veranico” em pleno inverno ̶ quando,
por exemplo, o termômetro sai da casa dos 10 graus negativos e sobe até os
cinco graus positivos. Ontem rondávamos a marca do zero grau, como disse. Ainda
bem que foi dia de veranico, porque se meu descuido tivesse acontecido duas
semanas atrás, eu teria corrido risco muito maior, sob um frio capaz de matar ou
alejar um ser humano em menos de uma hora!
Se para você, que lê essa crônica, nada do que eu
disse lhe foi útil, aqui vai uma mensagem de alerta: cuidado, mas muito cuidado
mesmo, com um tipo muito comum de tranca aqui nos Estados Unidos. Foi esse tipo
que quase me jogou no abismo. Ela funciona assim: quando você deixa a porta
trancada (não apenas fechada), essa porta pode ser aberta a qualquer hora, sem
problema, pelo lado de dentro. Mas cuidado: quando você abre a porta desse
modo, pelo lado de dentro, a tranca não destranca! Imagina que coisa louca, para
muitos de nós brasileiros. Repito: mesmo com a porta aberta, a tranca continua trancada.
Se você quiser, pode destrancar a porta por dentro, sem qualquer chave. Mas se antes
de sair você se esquecer de fazer essa ação coercitiva (está na moda essa
expressão no Brasil, por isso a repito), você fechar a porta e ficar trancado
do lado de fora!
Foi exatamente aquilo o que aconteceu comigo naquela
manhã de grau zero, e sem saída! Eu tinha por acaso verificado a previsão do
tempo antes. Aqui no norte dos Estados Unidos levam-se muito a sério essas
coisas, por causa dos riscos cridos pelo frio assassino, pelos furacões, etc.
Por isso eu sabia que o frio não ia piorar nas próximas horas, e algumas horas
exposto a zero grau eu não ia morrer, ou perder pés e mãos queimados pelo frio,
como pode ser o caso de hipotermia nessa parte do mundo. Mas eu não queria
ficar feito bobo, sem telefone, sem o que fazer, enquanto congelava o meu
rabinho na varanda da minha casa!
Então pensei em minha mãe. Várias vezes ela me
disse que meu Anjo da Guarda era forte! Sem dúvida! Já foram tantos os meus
percalços e aproximações à morte! Por exemplo, aos sete anos, no antigo Cine
Íris, caí de uma escada e fraturei um osso do crânio, o que me obrigou a tomar
choques elétricos na face ao longo de seis meses, para consertar a minha boca
torta e reverter uma terrível paralisia no lado direito da face. O anjo
trabalhou muito, e fiquei bom, ou quase bom, exceto pela surdez parcial e pela
loucura discreta. (Essa última parte é brincadeira, viu?)
De moto em Belo Horizonte, aos 20 anos de
idade, eu bati em dois carros de uma vez: o meu joelho num deles, e a minha Honda
(a Magrela) no outro. Voei um pouco, só por uns quatro ou cinco metros. Mas
como estava de capacete, o único estrago foi uma fratura no joelho. Aquilo só
deu em quarenta e cinco dias de gesso, do calcanhar à virilha, mas nada muito
sério.
Por último, isto é, só para limitar essa
ladainha de acidentes a apenas três eventos das múltiplas ações coercitivas (de
novo?) do meu Anjo da Guarda, vale lembrar o dia em que eu jogava tênis em
parceria com meu irmão, José Carlos, também conhecido como Tatau, ano e meio
atrás. Nós apanhámos terrivelmente de seu filho, Daniel. Naqueles que teriam sido
provavelmente os últimos segundos da partida (da coça), ainda que uma
quase-tragédia não tivesse acontecido, corri de costas para o fundo da quadra
na tentativa de rebater uma bola para lá forçada. Em velocidade, tropecei e fui
caindo para trás a todo o vapor. Infelizmente uma parede de alvenaria estava no
meu caminho. Cheguei a ela quando meu corpo já estava na vertical. A pancada
foi forte. Levei 12 pontos no coro que antes já fora cabeludo. Perdi a consciência
por uns cinco segundos. Assim disse meu irmão, que é engenheiro e sabe dos
números. Ele e Daniel correram comigo para o hospital, depois de um balde d’água
para sair do perigoso sono. Foram constatadas três fraturas no meu braço esquerdo.
Nada pior, graças a meu Anjo da Guarda, claro.
Naquela varanda, o Anjo da Guarda também
trabalhou para o meu bem. Havia ali a cesta de roupa suja. Fui verificar os ingredientes
e, para minha imediata satisfação, achei uma camisa e uma blusa de moletom, além
de dois pares de meia. Vesti os quarto itens rapidinho, para diminuir o
incômodo do frio. Tinha até uma calça jeans, que tentei vestir. Mas não deu.
Era do tipo apertadinho, estilososo, e a calça jeans que eu usava era do tipo
soltadão, folgado. Teria que tirar uma calça para pôr a outra e depois repor a
primeira. Muito trabalho, além de que a segunda calça já estava é muito fria
pro meu gosto!
Ah, na verdade eu estava é muito bem,
tranquilo, porque literalmente não morreria de frio, e a minha fuga aconteceria mais cedo ou mais tarde. Mônica e Maria
poderiam atrasar, poderiam até não vir por motivos de força maior, como doença,
mas eu pensava positivo. Seria uma hora ou pouco mais de espera. Mole para nós!
Mesmo assim resolvi pesquisar as minhas chances de quebrar a porta ou rasgar a
tela e “fugir” para o telhado da casa. Essas alternativas não eram muito boas.
A porta é do tipo francês, com vidro temperado. Uma nova ia custar uma boa
nota. Do telhado do segundo andar para o chão era uma altura razoável. Ia
quebrar as minhas pernas já meio frágeis de homem se aproximando dos 60 anos.
Por isso tudo era melhor eu gritar “help me,
please” sem parar, na esperança de que algum dos vizinhos saísse de sua casa e
me ouvisse e chamasse Ann para me salvar! Mas nada! Eu só conseguia assustar a
Minnie, coitadinha, nossa cachorra da raça golden retriever presa na frente da
casa há quase duas horas. Ela me ouvia mas não via, muito menos me entendia o
drama!
Com as janelas hermeticamente fechadas por
conta do inverno, ninguém me ouviu. Ninguém passou com seu cachorro em frente à
nossa casa, tampouco. Lá do outro lado, naquela varandinha, eu poderia ver se
alguma alma por caminhasse pela rua. Carregando um celular, a pessoa me daria a
liberdade de volta com uma simples chamada. Tinha certeza que Ann teria piedade
de mim e deixaria a sala de aula para vir rapidinho aliviar o seu marido
avoado.
Enquanto eu dançava para esquentar e gritava
para sair da jaula, as faxineiras chegaram! Que maravilha! Assim que ouviram
meus gritos correram para o fundo do quintal para me achar vivo e saber como poderiam
me salvar! Sorri um sorriso bem aberto, claro, bem iluminado! Eu mal consegui esconder
minha emoção! Nunca o fim de algum samba ou marchinha me deu tanta alegria!
Mas espera aí, pensei! Havia mais um momento de
tensão a me desafiar. Mônica e Maria não têm nenhuma chave da casa! E eu não
sabia se pelo menos uma das duas portas, a da frente ou a do fundo, estava
destrancada! Caso ambas as portas estivessem lacradas, Ann teria que vir da
escola, para que as senhoras trabalhassem e o marido dela voltasse à sua típica
alegria de viver!
E não é que o Anjo da Guarda me deu mais uma
força? A porta dos fundos estava destrancada, e logo me vi “bem quentinho”
dentro da minha casa, sob o calor do providencial aquecimento central a gás e
das quatro roupas esquentando o peito, além dos três pares de meia (um de lã,
viva!) e um boné preto, que desde o nascer do sol protegia a minha careca das
perigosas intempéries do norte do Hemisfério Norte. Aleluia, meu Anjo da Guarda!
Mais uma vez lhe agradeço a ajuda! E mais uma vez espero não precisar mais dela
no futuro, aos dissabores de mais uma perigosa mancada, descuido típico de
nossa família que há muitos anos simplesmente chamamos de “borinzada”!