quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Estereótipos e outros retratos do Brasil nos Estados Unidos




Estereótipos e outros retratos do Brasil nos Estados Unidos:
Literatura, música e cinema

PALESTRA DE DÁRIO BORIM JR.
NO CONEXÕES ITAÚ CULTURAL 2017

Quarta 8 de novembro de 2017 | 18h

Literatura e outras artes: ensino e pesquisa em chave comparada

Propostas para debate:
1) Apesar da variedade da produção nacional, fora do país o cinema, a música e a literatura brasileiros tem um público inicial que busca estereótipos do Brasil.
2) Existe espaço para obras que vão além, mantendo-se propriamente brasileiras, mas alcançando dimensão universal?
3) Como essa problemática aparece no ensino e na pesquisa sobre as artes do país?

Com: Dário Borim Jr., Saulo Neiva ​e Lidia V. Santos
Mediação: Fernanda Guimarães

Inicialmente, o meu muito obrigado a todos os responsáveis por esse belo evento – em particular a Claudiney Ferreira, João Cezar de Castro Rocha e Felipe Lindoso, que me fizeram o convite, e a Jahitza Balaniuk, que coordenou múltiplas logísticas.
A temática proposta para esta mesa tem três partes – pela ordem disposta, há uma asserção que relaciona duas ideias, seguidas de duas perguntas que se entrelaçam. Vou dialogar com a proposta seguindo essa mesma ordem.
Concordo plenamente com a primeira ideia: a produção cultural nacional é muito variada. Dos pampas temperados até o norte equatorial da Amazônia – das mãos de indígenas que pintam os próprios corpos no Pará até os pés agitados que dançam um partido alto no Rio de Janeiro – é vasta e cativante a nossa expressão artística nacional.
A segunda ideia da primeira afirmativa é muito mais controversa do que a primeira: a noção de que o cinema, a música e a literatura produzidos neste país tenham um público inicial que busca estereótipos do nosso país fora do Brasil.
Muito mais que nas obras de brasileiros traduzidas ou mesmo veiculadas em português no estrangeiro, desde que se publicaram os poemas de Gregório de Matos em Lisboa, até os nossos tempos de ensaios e narrativas de Lya Luft em inglês e outros idiomas, os estereótipos do Brasil aparecem muito mais frequentes nas obras literárias, autobiográficas ou etnográficas de estrangeiros que escrevem sobre o Brasil. Isso, desde maio de 1500, com a "Carta de Pero Vaz de Caminha", até os dias de hoje, em tantos filmes de Hollywood. O documentário Olhar estrangeiro (2016), da carioca Lúcia Murat, por exemplo, discute o Brasil retratado nas películas norte-americanas e europeias. O louvável trabalho de Murat é uma imperdível fonte de humor negro e perplexidade!
Dos escritores brasileiros com alguma repercussão crítica ou grande sucesso comercial no mercado norte-americano, somente me recordo de Jorge Amado como exportador de algo que se poderia entender por apelo do exótico. Porém, não sei se esse apelo, mesmo na obra do baiano, é mais forte do que aqueles outros, os da sensualidade e do erótico voyeur de uma Gabriela, cravo e canela, ou de uma Dona Flor e seus dois maridos.
Por outro lado, na esfera da repercussão acadêmica, estuda-se muito a obra de Machado de Assis e de outros autores canônicos do século XIX, os versos modernistas das três fases, o neo-realismo de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós, e a diversidade contemporânea de Silviano Santiago e Ana Maria Miranda, sem destaque para o exótico, apesar do inusitado novo mundo que esses escritos possam configurar para o leitor nacional ou estrangeiro.
Sucesso brasileiro estrondoso, na sala de aula e nos periódicos e livros acadêmicos, é de fato a técnica narrativa diferenciada, o existencialismo preponderante, e o feminismo sutil nas obras da instigante e apaixonante Clarice Lispector. Sem dúvida, seu descobrimento pela crítica feminista, principalmente a francesa e a norte-americana, se fez instrumental para tal sucesso. Quando era estudante de doutorado na Universidade Minnesota-Twin Cities, certa vez trabalhei como assistente de pesquisa bibliográfica para o professor e tradutor Ronald Sousa. Em 1993, ainda no início da febre lispectoriana, encontrei mais de 900 artigos e livros que a discutiam!
Também tenho tido outras formas de aproximação e intervenção na cultura brasileira pelo contato direto ou indireto com as comunidades dentro e fora das universidades. Durante alguns anos escrevi e publiquei crônicas para O Jornal, periódico semanal dos lusofalantes da região de Fall River e New Bedford, no sul de Massachusetts. A crônica brasileira é um tipo de criação literária muito presente na minha carreira acadêmica, e por isso tenho trabalhado nos últimos oito anos como editor-contribuinte de uma seção do periódico Handbook of Latin American Studies da Biblioteca do Congresso em Washington. Esse contato com o leitor transcorreu paralelo ao nosso convívio através de múltiplos concertos musicais que produzi ao longo de mais de dez anos. Para o campus da UMass Dartmouth, ou para seu entreposto no centro histórico de New Bedford, levei a arte ao vivo de músicos lusofalantes residentes, por exemplo, no Brasil, Cabo Verde, Canadá, França, Israel, Portugal e Moçambique, entre outros. A comunidade sempre prestigiou tais eventos, e neles pudemos nos conhecer melhor e juntos apreciar um pouco do melhor que o mundo lusófono pode oferecer.
Fundos para esses eventos partiram da administração da Universidade, ao nível da Reitoria e do colegiado, e, principalmente, do Centro de Estudos e Cultura Portugueses, que permanece extremamente ativo desde sua fundação, quatro anos antes de minha chegada a Massachusetts em agosto de 2000. Além de patrocinar e organizar congressos e colóquios internacionais, o Centro administra uma cátedra que anualmente contrata professores visitantes de grande renome no mundo acadêmico e literário para trabalhar conosco por um semester, entre eles a antropóloga brasileira Bela Feldman e o escritor angolano Ondjaki.
O Centro tem mantido, através da sua própria editora, a Tagus Press, uma prolífica agenda e um alto calibre de publicações reconhecidas internacionalmente, inclusive uma série de Literatura Brasileira em Tradução, onde já saíram em inglês, por exemplo, Agosto, de Rubem Fonseca, e O eterno filho, de Cristovão Tezza. De fato, nos últimos 21 anos, pela editora do Centro já saíram mais de 70 volumes de obras literárias ou teórico-críticas, cujos lançamentos levaram ao campus figuras distintas, como José Saramago, Lídia Jorge, Silviano Santiago, e muitos outros grandes nomes da cultura lusófona.
O Centro também desenvolve e mantém atividades em parceria com os modernos Arquivos Lusos-Americanos Ferreira-Mendes, outra distinta organização da UMass Dartmouth voltada para os estudos lusófonos, que acolhe e serve a pesquisadores vindos de diversas partes do mundo. Também atrai tais investigadores uma outra instituição local, o belíssimo Museu da Baleia, de New Bedford. Como se sabe, foi muito significativa contribuição açoriana e cabo-verdiana à indústria da caça à baleia, história na qual se destaca a cidade de New Bedford como seu principal porto.
No tocante à música, em particular, a primeira assertiva da proposta para debate nesta sessão me parece ainda menos certeira. Talvez a grande exceção seja a da forma como a sambista de rádio e depois atriz carnavalizada Carmen Miranda representou o Brasil nos teatros de Nova York e nos estúdios de Hollywood. Sua representação caricatural, híper-estereotipada, entretanto, é muito mais caracterizada pela tipo de dança, vestimenta e trejeitos do que pelo que se poderia postular de exótico nas letras dos sambas que ela cantava em português — letras, claro, que quase nenhum norte-americano entendia. Vale destacar um belo e seminal estudo da imagem icônica de Carmen Miranda é a de Kathryn Bishop-Sanchez, publicada um ano atrás: Creating Carmen Miranda.
Em geral, a música composta por brasileiros – e interpretadas ou não por brasileiros, nos Estados Unidos – é de alta qualidade e grande variedade. A história registra a participação de brasileiros em festivais de jazz já no início do século XX, como no famoso evento de Newport, Rhode Island, a 40 minutos da nossa instituição, a UMass Dartmouth. Tocava-se o tal de “tango brasileiro”, o nome que muitos ainda davam ao que mais tarde se definiria como choro ou chorinho.
Na própria Califórnia dos tempos de Carmen Miranda, isto é, nos anos 40 e meados dos anos 50, nada menos que um gênio nascido no interior de São Paulo, chamado Laurindo Almeida, encantava com seu violão as platéias que dele ouviam música clássica, de um Bach ou Ravel, por exemplo – porém, ao ritmo do samba, bumba meu boi e maracatu. Também ouviam do próprio Laurindo Almeida a música brasileiríssima de fino trato nascida da imaginação de outro gênio da nossa história, Heitor Villa-Lobos.
Para os que não sabem, tem mais: Laurindo Almeida se tornou um exímio compositor e intérprete do jazz, ao ponto de receber não apenas quatro expressivos prêmios Grammy em música clássica, mas também vencer a Miles Davis, Henri Mancini e outros bambas do ofício – obtendo, ele, um filho da pequena cidade paulista de Prainha, em 1964, um Grammy, esse na categoria Best Instrumental Jazz Performance.
A partir do bagunçado, atropelado – e, mesmo assim, fascinante e memorável – concerto no Carnegie Hall, no sul de Manhattan, em 1962, a história da bossa nova nos Estados Unidos é razoavelmente conhecida no Brasil. É uma jornada brilhante e marca indelével de uma prata fina da fornalha cultural brasileira, que encantou e seduziu não só os norte-americanos, mas também os japoneses, os turcos e os europeus, desde a Espanha cigana à Suécia viking.
Nem se precisa dizer, eu acho, que a bossa nova que se imortalizou no canto de João Gilberto e nas harmonias de Tom Jobim não tem nada de exótico, fácil ou repetitivo. Diz-se entre artistas e historiadores da música nos Estados Unidos que não há astro do jazz norte-americano que nunca tenha gravado ou interpretado Jobim. Por outro lado, já ouvi de uma conhecida, que, no Japão, João Gilberto certa vez recebeu um aplauso de 42 minutos ao final de um concerto. Muitas lendas marcam sua biografia. Essa pode ser mais uma, ou não.
Após a chegada dos influentes percussionistas e multi-instrumentistas do naipe de Naná Vasconcelos, Airto Moreira, Thiago de Mello e Hermeto Pascoal, nos anos 70, chega a vez da MPB aterrissar na Terra do Tio Sam na década de 1980, com uma ajudazinha de David Byrne, do lendário grupo Talking Heads. Certa vez, entrei num cinema de Uptown, em Minneapolis, e o que ouvi pelos alto-falantes antes do filme foi puro mel: a arte de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Clara Nunes e Marisa Monte. A MPB estava mais forte do que nunca nos Estados Unidos. Brasileiros a partir de então receberiam vários prêmios Grammy na competitiva categoria world music.
Uma década depois, isto é, no fim dos anos 90, era a hora dos Mutantes, do Tom Zé e de outros sons tropicalista – os norte-americanos finalmente descobriam a Tropicália, mais de 20 após o movimento agitar o nosso chão e cruzar os nossos céus ao sul do Equador. A partir de então, naquele fim do século XX, fora do Brasil os tropicalistas passavam a exercer forte influência sobre a música internacional lá rotulada de “world music”. Os artigos do editor de música do New York Times, Jon Pareles, retratam muito bem esse, digamos, Renascimento daqueles vanguardistas baianos e paulistas.
Hoje em dia, a presença da música brasileira no mundo é distinta referência. Uma escola de música como a Berklee, de Boston, considerada a melhor do mundo em jazz e world music, envia agentes ao Brasil anualmente. São caçadores de jovens talentos, para quem a escola oferece bolsas de estudos integrais, com direito a razoáveis subsídios para moradia e alimentação. São cantoras, percussionistas, violonistas, pianistas, etc., que nos representam muito bem lá fora. Resta dizer que a mesma Berklee School of Music já ofereceu o título de Doutor Honoris Causa a pelo menos dois de nossos músicos, Milton Nascimento e Rosa Passos.
Ademais, a paixão pela música brasileira entre as pessoas que moram nos Estados Unidos, Itália, Espanha e Portugal, entre outros países, sustenta inúmeras turnês tanto de um fantástico conjunto de choro, como o das irmãs Ferreira, o Choro das Três, quanto da arte sem rótulo de uma Céu, de uma Luíza Maita, ou mesmo de um Seu Jorge – quem recebeu, no ano passado, um registro para a posteridade: o Dia de Seu Jorge, no calendário oficial da cidade de Boston. A honraria não é pra muitos santos.
Em relação ao cinema, sustento a mesma posição, a de que, pelo menos no mundo de hoje, o cinema brasileiro não depende de estereótipos ou exotismo para atrair público no exterior. A dinâmica que me parece estar dando algum resultado é o múltiplo patrocínio de agentes públicos e privados do Brasil em complementar parceria com produtores estrangeiros.
Quanto à pergunta sobre a existência ou não do espaço para obras que vão além do exotismo e do estereótipo, mantendo-se propriamente brasileiras, mas alcançando dimensão universal, penso que sim, que há tal espaço, dentro de vários limites e oportunidades criados por diversos parâmetros.
No caso da literatura, gosto muito das conclusões a que chega Carlos Minchillo em sua tese de doutorado defendida na USP e publicada pela EDUSP em 2015 sob o título de Erico Verissimo, escritor do mundo. O pesquisador paulista explora magistralmente os impasses e entraves que escritores vivem num tempo de massificação do consumo de tudo, e por que não, de bens culturais. A inserção do livro brasileiro num cenário transnacional, em plena era deste mercado globalizado, enfrenta o que Minchillo chama de “fatores intra e extratextuais que interferem no trânsito de obras pelos mercados editoriais” (21). Nesses mercados ocorrem a aceitação, rejeição ou indiferença por toda uma “cadeia de atores sociais e profissionais – editores, agentes literários, pareceristas, marqueteiros, capistas, resenhistas, críticos, acadêmicos etc – que atuam na avaliação e triagem de títulos” (21).
Concordo sem restrições com a síntese de Minchillo: o sucesso ou fracaço de uma obra ou de um escritor, com sua maior ou menor inserção no mercado nacional e internacional, “não são determinados exclusivamente pelas linhas do texto literário” (21). De fato, “derivam de um feixe de ações e discursos de múltiplas naturezas – política, econômica, mercadológica, diplomática, ideológica – e constituem, portanto, uma história escrita por diversas mãos e que ecoa diferentes vozes” (21-22).
A resposta para a última pergunta sobre ensino e pesquisa fica para esses dois últimos minutos da minha fala e, também, para o que nos restar de tempo para discussão.
Bem além de algo extremamente importante para mim mesmo, isto é, a concretização de um de meus maiores sonhos na vida, meu programa de radio dedicado a música luso-afro-brasileira, o Brazilliance, tem atingido metas que jamais imaginei. No ar nos últimos 16 anos, o Brazilliance tem veiculado muitas edições temáticas. Por exemplo, um programa com três horas de canções compostas exclusivamente por mulheres brasileiras. Outro, de canções gravadas por músicos da diáspora de lusofalantes. E um terceiro, com discussão e leitura de narrativas do século XIX que tematizam a própria música na literatura brasileira.
Alguns de meus programas funcionam como espécie de trilha sonora dos cursos que ensino, como um totalmente dedicado a Caetano Veloso, e outro, exclusivamente enfocado em Vinicius de Moraes. O Brazilliance também tem estabelecido laços entre minha pessoa pública e a comunidade de ouvintes através de entrevistas com músicos locais ou visitantes, jornalistas, líderes politicos, e pesquisadores das humanidades voltados para o mundo lusófono. Também tenho levado para os estúdios da rádio, a WUMD, vários dos meus alunos de todos os níveis de proficiência, desde a tábula rasa do Português 101 até os seminários do nosso programa de doutoramento em Estudos Luso-Afro-Brasileiros e Teoria. Meio por acaso descobri a Luso-América do Norte em agosto de 2000, uma região com seis cidades onde metade da população descende de brasileiros, cabo-verdianos e portugueses. E por lá fiquei, com um pé dentro, e um pé fora, no país que me viu nascer e que, na verdade, dentro do peito, nunca deixei.
É isso aí. Obrigado!










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