A Arte e os
Novos Mundos
Dário Borim
Jr.
Pude ver e enxergar melhor quando comecei a fazer
caminhadas diárias com três focos constantes: a música (com sua poesia) aos
ouvidos, a percepção do meu corpo como parte integrante do ambiente físico ao
meu redor, e a curiosidade imaginativa para pensar
e enquadrar o que via dentro das possibilidades técnicas da minha câmera,
companheira inseparável. Assim vamos que vamos, numa atividade que para mim é
poético-musical, terapêutica, e artística. A
win-win-win situation, como poderíamos glosar uma frase feita em inglês
para uma situação três vezes vitoriosa.
Após ler os
franceses Jean-Jacques Rousseau e Jacques Derrida, o escritor e crítico Silviano
Santiago, no seu livro Carlos Drummond de
Andrade (Ed. Vozes 1976), escreve assim: “Poeta da re-presentação [sic],
Drummond pouco uso dá ao ouvido que assim
ensurdece em inutilidade; poeta da re-presentação [sic], Drummond muito uso dá
à vista que, diante do silêncio do signo escrito (ou da imagem), apenas pode
tentar escrevê-la de novo e diferentemente em signo, em poema” (99).
Caso existisse um
órgão ativo que correspondesse à passividade da visão, continua Santiago,
“seria este o das mãos que se exercitam em pintar signos sobre a folha de papel
em branco, apagando-os sob a forma de voz, mas deixando que se falem plenos no
próprio silêncio da escritura” (100). Mas para Santiago, “a própria noção de
atividade e passividade não faz sentido, pois é a mão que escreve-lendo e que
lendo-escreve, com a ajuda dos olhos” (100).
À audição, portanto, contrapõe-se
a fala. Absorvemos e produzimos sons e seus signos. Com a visão, porém, não
temos um sentido a dialogar. Vemos e ao mesmo tempo lembramos e imaginamos as
coisas, com os neurônios a trabalhar, o coração a palpitar, mas não projetamos, literalmente de dentro de nosso ser,
quaisquer imagens: temos que criá-las, e, pois, executá-las, fora do nosso
corpo. Segundo Derrida e Santiago, cabe às mãos (e outras partes do corpo, eu
diria) essa função através da voz poética – a meu ver, através da linguagem do
fazer poético, dentro e muito além da poesia escrita. Entendo que assim,
reagindo ao que vemos, ao que pensamos e ao que sentimos, nós artistas, com as
mãos, pés, ou o corpo como um todo, criamos e projetamos imagens como atores,
dançarinos, escultores, escritores, fotógrafos e pintores. Compomos imagens e
seus signos, sejam eles com nossos movimentos e expressões faciais, com a tinta,
a tela e tantos outros tipos de material concreto transformado em material
plástico, ou ainda com a palavra escrita à mão ou no teclado.
Naquele
processo de composição, o artista é livre da necessidade de representar a
realidade como ela é. O Impressionismo, com suas imagens fora de foco, foi um
grande passo àquela concepção moderna da arte, curiosamente, uma resposta
estética ao impacto da fotografia sobre a história da arte. O gênio espanhol de
Málaga, Pablo Ruiz Picasso, por seu turno, solidificou e radicalizou aquela
liberdade através de distorções, fragmentações e super-imposições de planos de
imagem. Para muitos historiadores, seus trabalhos cubistas comprovam a noção
que a arte pode existir enquanto objeto de valor sem que ela revele qualquer tentativa
de representar qualquer forma de realidade. Entre outros, destaca-se o valor
conceitual da arte que provoca pensamento, reação estética e emoção, sem depender
da lógica ou daquilo a que chamamos de mimese, a reprodução do real.
A
fotografia, a meu ver, pode provocar os mesmíssimos fenômenos a partir da
representação do real sem compromisso com o real, desse modo livre como a
própria arte moderna. Segundo o periódico inglês The Guardian, leiloou-se no ano passado em Londres, pelo maior
valor da história da fotografia, uma peça tirada pelo artista alemão Andreas
Gursky. Entitulada “Rhein II”, com uma imagem minimalista de duas margens do
famoso rio europeu, essa fotografia saiu por quase 3 milhões de libras
esterlinas, fato que sugere algo a respeito do valor abstrato dessa forma de representação
do real muito além do real.
Na
semana passada, na Universidade de Massachusetts Dartmouth, falávamos dessas
maravilhas entre os mundos do real e do imaginário num seminário sobre Carlos
Drummond de Andrade. Foi quando confessei minha (quase?) obsessão pela
fotografia. Entendi um pouco melhor a minha paixão ao discutirmos temas afins.
Mas quis saber mais, muito mais. Enquanto me ensinam e me inspiram os artistas,
teóricos e poetas a criar e a falar do simulacro do simulacro do simulacro que
é nossa existência, continuo clicando. A vida é ao mesmo tempo luz e mistério.
Antes mesmo de sair do prédio do College of Liberal Arts, minha modesta câmera
já funcionava. Mostrando e sugerindo algo poético sobre a condição humana, quem
sabe essa foto tirada minutos após o término da aula, ao entardecer, nos faça
refletir um pouco mais sobre as relações entre nossos sentidos, nossas mentes,
e nossas capacidades de ver, imaginar e (re)fazer novos mundos.