sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Expatriados



Expatriados

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Segundo o Novo Dicionário Aurélio, expatriado é quem “sofreu a pena da expatriação”, isto é, do exílio, gente como Fernando Gabeira, preso após sequestrar um embaixador. Ou é aquele indivíduo que se exilou por conta própria, que fez as malas e partiu sem a companhia de um homem fardado à porta do avião.

Quem é o quê entre nós, hoje, fora do Brasil? Jogamos todos no segundo time e por isso temos muita coisa em comum? Acho que a questão é mais complicada. Até mesmo os exilados políticos dos anos da ditadura se dividiam em grupos muito variados. Eles por certo não formavam um grupo único e coeso sugerido em abril por Dilma Rousseff, então pré-candidata pelo PT à presidência da república. Indiretamente acusando José Serra, ela teria dito que muitos exilados fugiram do país “por medo da luta armada”.

Como se diz, o buraco é mais embaixo, e por isso mesmo deixo tais estrelas da política brasileira de lado e me volto para a história de pessoas comuns, com quem pude conversar recentemente. Vou aqui referenciá-las por nomes fictícios por duas razões. Primeiro, para salvaguardar sua privacidade. Segundo, por eu ter consciência dos limites da minha memória. Começo por Gabriela, jovem simpática e atraente que se sentou ao meu lado num voo entre Nova York e São Paulo. A conversa fluiu sem trégua, e de tal modo ligeira e interessante, que depois de cinco horas e meia, das 11 da noite às quatro e meia da manhã, vi que era importante um de nós ter a coragem de dizer ao outro, “vamos dormir”?

Antes, porém, soube que Gabriela saíra do Brasil quando necessitava de novos ares para não se enveredar pela depressão aguda ou mesmo pela loucura. Filha única de um médico e uma professora universitária, Gabriela e eu tínhamos em comum a sede pela aventura no exterior e a paixão pelos livros. Ela fazia mestrado em literatura inglesa quando sua mãe foi diagnosticada com câncer. A mãe faleceu nove meses mais tarde. Pouco tempo depois daquela perda Gabriela conheceu Marisa, uma amiga da mesma idade de sua mãe e do mesmo tipo de personalidade: extrovertida, carinhosa, alegre, e cheia de energia. Marisa era ativista na defesa dos direitos dos animais. Infelizmente, por extrema ironia do destino, numa noite ela dirigia sozinha em velocidade normal e de repente teve que lidar com uma capivara que atravessava a estrada. Para evitá-la, Marisa entrou para a contramão. Chocou-se de frente com outro carro, onde viajavam cinco pessoas de uma mesma família. Todas se machucaram gravemente, mas ninguém morreu nesse acidente, exceto a amiga de minha companheira de vôo.

O golpe foi pesado demais, e Gabriela largou tudo para trás: a cidade natal de Florianópolis, o pai, os amigos, a vida acadêmica, e até mesmo o noivado. Conseguiu um emprego na Europa na área de turismo, e por conta disso já fez dezenas de cruzeiros pelo mar Mediterrâneo e por outras belas regiões do planeta. Um dia se cansou de ter residência fixa no exterior e voltou para o Brasil. Tem apartamento montado no Rio, mas vira e mexe está na Europa por uma temporada, como free-lance de turismo, ramo que escolheu depois das duas tragédias, circunstâncias que lhe ensinaram a importância do desapego para não sofrermos demais.

Sofrendo aos extremos, claramente, estava meu companheiro de voo entre Miami e Boston, quando eu regressava do Brasil no mês passado. João mal tinha assentado ao meu lado e eu já lhe percebera o semblante tenso. Na verdade seu olhar era de tristeza, fui logo saber. Ele voltava para os Estados Unidos depois de passar nove dias no nosso país, exatamente como eu. Em pouco tempo de conversa tocamos em assuntos bem íntimos e significativos. Ele estava cansado de muitas idas e voltas. Queria ficar no Brasil, mas sua vida está entrelaçada às de outras quatro, esposa e três filhos em idade escolar.

Jorge e esposa vieram para este país sem documentação que lhes permitisse ficar aqui e trabalhar legalmente. Consequência: ele passou dez anos sem ir ao Brasil! Talvez outra conseqüência tenha sido sua infelicidade e até mesmo a doença que o atormentou por alguns anos. Contraiu câncer num dos testículos. Pelo sangue esse câncer passou a atuar, sem se espalhar como câncer, sobre certa região do cérebro, o que lhe trouxe paralisia em metade do corpo e o sério risco de ter que fazer uma cirurgia na massa cefálica temporariamente inchada, perigo que claramente não se justificava.

João sarou-se antes de lhe abrirem a cabeça por engano, mas ficaram pequenas seqüelas, como uma pequena falta de equilíbrio. O que importa, é claro, é que sobreviveu. Infelizmente também ficou o desejo de voltar para o nosso país, mas com a esposa bem situada profissionalmente em Boston e os filhos americanos enraizados na Nova Inglaterra, o homem carrega uma pesada dor na alma. Eu me lembrei de mim mesmo em dilema parecido – na verdade, o de muita gente expatriada por esse mundo afora. Gente que saiu do país sem um empurrão oficial e sem medo de se aventurar fora de casa. Gente que não para de sonhar com a volta, sem parar de enxergar as amarras do destino e as consequências a longo prazo das bem intencionadas opções do passado. Pois é, o buraco é mesmo mais embaixo, e muitas vezes não se sabe nem a sua profundidade, nem a sua escuridão.

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