Expatriados
Dário Borim Jr.
Segundo o Novo
Dicionário Aurélio, expatriado é quem “sofreu a pena da expatriação”, isto
é, do exílio, gente como Fernando Gabeira, preso após sequestrar um embaixador.
Ou é aquele indivíduo que se exilou por conta própria, que fez as malas e
partiu sem a companhia de um homem fardado à porta do avião.
Quem é o quê entre nós, hoje, fora do Brasil? Jogamos todos no
segundo time e por isso temos muita coisa em comum? Acho que a questão é mais
complicada. Até mesmo os exilados políticos dos anos da ditadura se dividiam em
grupos muito variados. Eles por certo não formavam um grupo único e coeso
sugerido em abril por Dilma Rousseff, então pré-candidata pelo PT à presidência
da república. Indiretamente acusando José Serra, ela teria dito que muitos
exilados fugiram do país “por medo da luta armada”.
Como se diz, o buraco é mais embaixo, e por isso mesmo deixo tais
estrelas da política brasileira de lado e me volto para a história de pessoas
comuns, com quem pude conversar recentemente. Vou aqui referenciá-las por nomes
fictícios por duas razões. Primeiro, para salvaguardar sua privacidade.
Segundo, por eu ter consciência dos limites da minha memória. Começo por
Gabriela, jovem simpática e atraente que se sentou ao meu lado num voo entre
Nova York e São Paulo. A conversa fluiu sem trégua, e de tal modo ligeira e
interessante, que depois de cinco horas e meia, das 11 da noite às quatro e
meia da manhã, vi que era importante um de nós ter a coragem de dizer ao outro,
“vamos dormir”?
Antes, porém, soube que Gabriela saíra do Brasil quando
necessitava de novos ares para não se enveredar pela depressão aguda ou mesmo
pela loucura. Filha única de um médico e uma professora universitária, Gabriela
e eu tínhamos em comum a sede pela aventura no exterior e a paixão pelos
livros. Ela fazia mestrado em literatura inglesa quando sua mãe foi
diagnosticada com câncer. A mãe faleceu nove meses mais tarde. Pouco tempo
depois daquela perda Gabriela conheceu Marisa, uma amiga da mesma idade de sua
mãe e do mesmo tipo de personalidade: extrovertida, carinhosa, alegre, e cheia
de energia. Marisa era ativista na defesa dos direitos dos animais.
Infelizmente, por extrema ironia do destino, numa noite ela dirigia sozinha em
velocidade normal e de repente teve que lidar com uma capivara que atravessava
a estrada. Para evitá-la, Marisa entrou para a contramão. Chocou-se de frente
com outro carro, onde viajavam cinco pessoas de uma mesma família. Todas se
machucaram gravemente, mas ninguém morreu nesse acidente, exceto a amiga de
minha companheira de vôo.
O golpe foi pesado demais, e Gabriela largou tudo para trás: a
cidade natal de Florianópolis, o pai, os amigos, a vida acadêmica, e até mesmo
o noivado. Conseguiu um emprego na Europa na área de turismo, e por conta disso
já fez dezenas de cruzeiros pelo mar Mediterrâneo e por outras belas regiões do
planeta. Um dia se cansou de ter residência fixa no exterior e voltou para o
Brasil. Tem apartamento montado no Rio, mas vira e mexe está na Europa por uma
temporada, como free-lance de turismo, ramo que escolheu depois das duas
tragédias, circunstâncias que lhe ensinaram a importância do desapego para não
sofrermos demais.
Sofrendo aos extremos, claramente, estava meu companheiro de voo
entre Miami e Boston, quando eu regressava do Brasil no mês passado. João mal
tinha assentado ao meu lado e eu já lhe percebera o semblante tenso. Na verdade
seu olhar era de tristeza, fui logo saber. Ele voltava para os Estados Unidos
depois de passar nove dias no nosso país, exatamente como eu. Em pouco tempo de
conversa tocamos em assuntos bem íntimos e significativos. Ele estava cansado
de muitas idas e voltas. Queria ficar no Brasil, mas sua vida está entrelaçada
às de outras quatro, esposa e três filhos em idade escolar.
Jorge e esposa vieram para este país sem documentação que lhes
permitisse ficar aqui e trabalhar legalmente. Consequência: ele passou dez anos
sem ir ao Brasil! Talvez outra conseqüência tenha sido sua infelicidade e até
mesmo a doença que o atormentou por alguns anos. Contraiu câncer num dos
testículos. Pelo sangue esse câncer passou a atuar, sem se espalhar como
câncer, sobre certa região do cérebro, o que lhe trouxe paralisia em metade do
corpo e o sério risco de ter que fazer uma cirurgia na massa cefálica
temporariamente inchada, perigo que claramente não se justificava.
João sarou-se antes de lhe abrirem a cabeça por engano, mas
ficaram pequenas seqüelas, como uma pequena falta de equilíbrio. O que importa,
é claro, é que sobreviveu. Infelizmente também ficou o desejo de voltar para o
nosso país, mas com a esposa bem situada profissionalmente em Boston e os filhos
americanos enraizados na Nova Inglaterra, o homem carrega uma pesada dor na
alma. Eu me lembrei de mim mesmo em dilema parecido – na verdade, o de muita
gente expatriada por esse mundo afora. Gente que saiu do país sem um empurrão
oficial e sem medo de se aventurar fora de casa. Gente que não para de sonhar
com a volta, sem parar de enxergar as amarras do destino e as consequências a
longo prazo das bem intencionadas opções do passado. Pois é, o buraco é mesmo
mais embaixo, e muitas vezes não se sabe nem a sua profundidade, nem a sua
escuridão.