quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Inquietude, Quase Euforia





Inquietude, Quase Euforia

Dário Borim Jr.

O dia de ontem era um dos mais lindos que eu já tinha visto em toda a minha vida, conclui pela manhã mesmo -- apressadinho como sou para certas coisas, como também é meu pai. Logo ao chegar à Universidade de Massachusetts Dartmouth, onde trabalho há quase 14 anos, senti uma forma de inquietude, quase euforia, talvez um tipo de ansiedade pelo avesso. Dizem que um forte e recorrente elemento da ansiedade é o medo. Minha ansiedade vinha de um forte desejo, o de estar livre para fotografar o visual maravilhoso que me vinha acompanhando pela janela do carro, desde o momento em que saí de casa rumo ao câmpus. Nas ruas de Padanaram, esse vilarejo onde moro, as árvores estavam carregadas de neve úmida e pesada -- de características excelentes para construção de bonecos e de bolas que crianças arremeçam umas às outras. Ensaiavam o espetáculo de cores e transformações que a natureza nos traria naquela terça-feira.
Quando passei por uma ponte rotativa e o istmo que se segue a ela, os nervos do meu queixo se relaxaram e as íris dos meus olhos verde-castanhos adquiriram mais cor e viscosidade. As enormes placas de gelo sobre a água do mar cintilavam em tons azuis e dourados. Pensei: como seria bom fotografar aquilo tudo, mas as obrigações me chamavam a 10 km dali.
Quem sabe a parte de medo que existia na minha “inquietude, quase euforia” ou “ansiedade pelo avesso” viesse da consciência de que a neve tão fofa e volumosa (amontoada em grandes massas) poderia derreter rapidamente, pois a temperatura do ar subia ligeiramente sob os raios do sol. Assim que cheguei ao meu escritório, postei a seguinte mensagem no FaceBook: “Em poucas palavras: um dos dias mais lindos de toda a minha vida! Existe neve, existem 20 e tantos tipos de neve, pelo menos, sabem disso os esquimós. Entre ontem e hoje, alguns dos mais belos tipos caíram por aqui. Agora azulinho está o céu lá em cima, e aqui embaixo é uma maravilha total o que se vê sobre galhos, riachos, o mar, tudo, tudo, tudo! Se eu não estivesse agora para dar aulas... ai, ai, ai. Mas logo saio e registro um pouco dessa magia despretensiosa, dos milagres da natureza!” Aquela forma de desabafar e compartilhar minhas emoções recebeu várias respostas de simpatia imediatas (alias, mais de 50 nas últimas 24 horas), e ainda antes de entrar para a sala de aula, encontrei almas afins pelos corredores, gente que expressava a mesma admiração pela formosura do dia.
Minha aula de Português para Principiantes transcorreu em bom clima. Eu sentia que meu entusiasmo pelas paisagens externas me inspiravam lá dentro do prédio. Também ajudava lembrar que em pouco tempo eu poderia sair e fotografar, entre uma aula e outra. Dito e feito. Foram muitos os cliques. Contando com a boa impermeabilização das minhas botas, eu pude ir onde quisesse. Ora fazia a lente telescópica me trazer aos olhos os gigantescos grupos de árvores emolduradas pela neve a 500 metros de distância, ora me aproximava de outras plantas. Encontrava ângulos a destacar tanto as suas ranhuras e musgo bastante felizes com a umidade  quanto aquelas enormes bolas de “algodão” a dobrar os galhos, tudo a reluzir sob o sol e o céu azul.
A um certo momento me deti junto a um córrego que se escoa de um pequeno açude em frente ao Estacionamento Um, o que mais uso no câmpus. O córrego, como estava àquele momento, me trazia mais ardor do que qualquer outro elemento da natureza. De fato, nele se convergiam muitos elementos. A um canto, o azul do céu decorado de pequenas nuvens penetrava nas águas margeadas por enormes massas de neve. Por outro lado, mas ali mesmo, num espaço de três metros quadrados, as águas refletiam folhas marrons emolduradas por flocos de neve. A um outro canto, vários ramos de uma vegetação rasteira ascendendo da grama queimada pelo frio formavam arcos no ar a se unir às parábolas dos mesmos arcos refletidos na água. Ao longo dos poucos minutos em que eu me esforçava para captar a riqueza daquelas cenas, flocos ou massas maiores de neve caíam das ávores vizinhas, agora convidadas a dançar ao tom e à cadência dos ventos.
Quando caíam na água, aqueles pedaços de neve criavam sons delicados, quase como pedras jogadas ao longe, sobre as águas de um rio. Mais importantes para meus olhos e minhas lentes, eles também criavam dezenas de círculos e semicírculos concêntricos a se deslocarem sobre o azul, o branco, o verde e o marrom das águas até desaparecerem… até novos flocos caírem, seguindo a batuta do vento e as danças das folhas sobre as árvores. A menos de 10 metros daquele ponto do córrego, vislumbrei o tom dourado de muitos ramos de mais que dois metros de altura, também a dançar sob a força gentil dos ventos, uma espécie de cerca natural à frente de pinheiros (de um verde a sobreviver ao frio), e às margens do açude congelado (de um branco-liro liso e laminado).
Depois de fotografar tal abundância de cores e recortes, apenas um pouco daquilo tudo tão perto do meu local de trabalho, notei as curvas e as sombras de um morro encoberto de neve. Os raios de sol que ali chegavam se esticavam em diversos ângulos possibilitados pelas curvas da espessa camada de neve. Surgiam então espécies de mechas de luz branca desenhadas sobre o pano de fundo azul, o azul que a neve podia refletir do céu. Cliquei, é claro, pensando num amigo espanhol, o artista Ramon Salgado-Touzon. Era a única forma de despedida, um tanto minimalista, que me pudesse acalentar a alma. Era hora de finalmente amenizar minha inquietude, minha quase euforia, e me trazer de volta à realidade dos cursos que ensino e dos meus outros múltiplos afazeres acadêmicos.

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