quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O Monge e o Poeta: Fábulas Sociopolíticas



Pintura de Cândido Portinari (1943)
Igreja de São Francisco, Belo Horizonte, Minas, Brasil

O Monge e o Poeta: Fábulas Sociopolíticas

Crônicas de Frei Betto e Ferreira Gullar fazem-me pensar no desenredar de algumas fábulas sociopolíticas desde a queda do muro de Berlim e dos últimos dez anos no Brasil, em particular. Nesses mesmos dez anos tenho feito um trabalho voluntário de pesquisa, leitura, redação e edição para um distinto periódico acadêmico da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, o Handbook of Latin American Studies, que anualmente, desde 1936, publica um volume de aproximadamente 750 páginas. Contribuem pesquisadores de todo o mundo a redigir sobre os lançamentos nas áreas de humanidades e ciências sociais, no âmbito da América Latina.
Recentemente caiu-me às mãos o enorme livro (525 pp.) Paraíso Perdido: Viagens ao Mundo Socialista (Rocco, 2015). Ali Frei Betto relata a sua cruzada pelo reconhecimento do que vê como as bases socialistas do cristianismo e pela aceitação dessa religião no regimento draconiano dos partidos comunistas (declaradamente ateus) mundo afora, mas principalmente em Cuba.
Outra obra chamou-me a atenção. De aberta preocupação com o social e atuante participação no combate à ditadura militar, especialmente através do Teatro Opinião, o autor do Manifesto Neoconcreto, Ferreira Gullar, dedica vários textos de seu livro A Alquimia na Quitanda: Artes, Bichos e Barulhos nas Melhores Crônicas do Poeta (Três Estrelas, 2016) aos escandândalos e aberrações do período histórico entre os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, entre 2005 e 2015.
Comecemos por Frei Betto, o renomado autor de mais de 60 obras, muitas delas hoje traduzidas para 23 idiomas. Erudito e franco, o autor declara ao jornal cubano Granma que Jesus Cristo é “a revelação de um Deus comprometido com os pobres”, pois a sede de justiça é algo que Deus “assume como bem-aventurança” (156). O cronista se faz porta-voz da Teolologia da Libertação ao enfatizar que “o cristianismo  é essencialmente comunista”, mas na mesma entrevista àquele jornal denuncia o dogmatismo de ambos os lados: “Muitos cristãos transformam sua fé numa ideologia e muitos marxistas transformam sua ideologia numa religião” (156). Apesar dessas amargas ponderações, o jornal publicou a matéria na íntegra. O mesmo não aconteceu com uma de suas entrevistas concedidas à TV estatal cubana, a TeleRebelde. Foi vetada com essa justificativa oficial: “Tem um pensamento contraditório e pode trazer confusão. Os jovens podem querer ser cristãos” (160).
Apesar daquelas indesejadas afinetadas, é enorme a carga de elogios que Frei Betto faz ao modelo político e social de Cuba. Para ele o regime de um suposto entrosamento harmonioso entre cooperativas populares e chefias do governo funciona muito melhor do que a democracia do voto. Diz, por exemplo: “a democracia não se avalia pelo modo como ocorre a alternância dos homens no poder, e sim pelos direitos e benefícios conquistados pelos cidadãos” (160). Frei Betto é, pois, radicalmente contra o conceito de que em Cuba exista a “ditadura do proletariado” (159-160).
O próprio fato de a revolução cubana ter nascido por baixo, dos pobres, e não de cima, como na Europa do Leste, por conta das classes medias ou mais abastadas e dirigidas por estrangeiros (os russos),  explicaria o sucesso de um e o fracasso dos outros (515). Outros problemas sérios do socialismo falido na Europa, como no caso da Alemanha Oriental, seriam a corrupção e o autoritarismo educacional e intelectual, explica o monge. Ele arremata, “em nome da mais revolucionária das teorias políticas surgidas na história ensinava-se a não pensar” (519).
Concluído pouco antes ou mesmo em 2015 (os textos não são datados), o livro de Frei Betto revela muito mais complexidades da história do socialismo fora do Brasil do que dentro dele. Os sunames de corrupção a la brasileira não veem à tona. A obra, porém, matou uma de minhas maiores curiosidades a respeito do que teria ocorrido nos batidores do PT, num período de patética crise e virtual desmoronamento das bases do partido: quem teria sido a primeira escolha de Lula para candidato do PT à presidência do Brasil naquele ano? Lula poderia ter colocado no posto quem ele quisesse, como sabemos, dado o seu nível de popularidade sem par na história da frágil e nebulosa democracia brasileira. Eu sabia que não fora a Dilma Rousseff, é claro. Isso ficou óbvio desde o início do seu primeiro desastrado mandato, que muito preocupou ao próprio Lula.
Então, bingo! Assim transcreve Frei Betto uma de suas centenas de conversas com Fidel Castro (o conteúdo de 23 horas delas virou livro best-seller, o Fidel e a Religião): "Perguntou-me sobre a saúde de Lula, suas possibilidades de retornar à presidência, e se Dilma Rousseff havia sido a sua única escolha como sucessora"  (499) Prossegue Frei Betto: "Opinei que, com certeza, ele teria preferido indicar, como successor, Antônio Palocci ou José Dirceu; acredito que o primeiro teria mais chances, já que era visto com mais simpatia pelo setor financeiro". O Comandante assim indagou: "Por que, então, Dilma?" A resposta foi direta: "Ela era a terceira opção. Foi a escolhida porque as outras duas caíram sob suspeita de corrupção" (499).

Apesar de refletir intensamente sobre o colapso do dito socialismo real na Europa do Leste, Frei Betto não deixa claro a qual paraíso se refere o título de seu livro. Não teria sido o paraíso de Adão e Eva, nem outro momento mítico que se tenha vivido em plena paz e humildade nesse planeta, embora, como vimos, o monge estabeleça fortes laços entre o comunismo e o cristianismo. Tampouco teria sido a sociedade cubana. Do paraíso católico de longínquos tempos, ninguém quis fugir, como rezam os livros sagrados. Por conta da maçã, Adão e Eva foram expulsos, aliás, toda a humanidade foi expulsa, por isso nascemos desde então com o tal pecado original na alma. De Cuba, sim – muita gente quis sair! E ninguém teria interesse em impedir que as pessoas de lá saíssem, claro, se não fosse o medo de que elas declarassem ao resto mundo que tal paraíso era apenas uma fábula ideológica sustentada por “imperialistas do bem”, como se podia ironicamente dizer da União Soviética.
Muito mais voltado para a realidade brasileira do que Paraíso Perdido, a antologia de crônicas A Alquimia na Quitanda retrata a ascensão e queda, ao longo das duas últimas décadas, de um dos maiores mitos da história do Brasil. Em sua crônica “E o Lobo Virou Cordeiro”, de 8 de maio de 2011, por exemplo, o escritor maranhense Ferreira Gullar lembra-nos de que após perder três eleições presidenciais, Lula mudou de tom e adquiriu posição moderada, o que lhe permitiu chegar ao poder em Brasília. Adotou, então, “tudo o que seu adversário implantara, desde os programas assistenciais até a política econômica neoliberal, imprimindo àqueles um colorido populista e à política externa um cunho antiamericano para salvar a face” (195). Ampliada pela retórica lulista, acrescenta,  tal imagem, um misto de governo pai-dos-pobres e carismático amigo-dos-ricos, caiu tanto na simpatia popular quanto na confiança do empresariado. Arremata Ferreira Gullar: “Nada melhor para o capital do que um país sem greves nem crises econômicas” (195).
Ao expandir os programas do governo anterior e mudar sua própria retórica e visão social, Lula preservou projetos “que correspondiam às necessidades reais do país” e as mudanças, por serem necessárias, “tonaram-se irreversíveis” (195). Assim, o PT virou PSDB, como se fosse um lobo fantasiado em pele de cordeiro. “Com a diferença de que, se o lobo da fábula continua lobo, o lobo Lula virou cordeiro mesmo” (195).
Bem – mais tarde, ex-Lula-Lobo saiu da pele de cordeiro para proteger o seu círculo de poder severamente ameaçado, inicialmente, pela corrupção no seu Gabinete Executivo e no Congresso, e, posteriormente, pelos deslizes e irresponsabilidades administrativo-fiscais de sua sucessora, Dilma Rousseff. Como reconta a história, Dilma Rousseff infringiu severa e continuamente a Lei de Responsabilidade Fiscal, uma das fontes da surreal inflação dos anos 1980 – lei esta, a que, ironicamente, o PT tanto se opôs durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, uma lei que tanto contribuiu para solidificar o Plano Real, do qual o governo Lula tanto se beneficiou e até ousou assumir autoria.
Sabe-se lá, ou saberemos lá um dia, se aquele mar de lamas foi edificado e coordenado pelo próprio ex-cordeiro, ou por seus mais fortes assessores, Antônio Palocci e José Dirceu, ambos condenados à dezenas de anos de prisão, e ambos favoritos de Lula para ocupar a presidência do Brasil, como revela Frei Betto. O que se pode ter por certo é que a ambição por poder pode facilmente cegar as mentes e calar as consciências. Assim se distribuiu o suborno do Mensalão no Congresso, abriram-se os amplos dutos das propinas milionárias da Petrobras, e firmaram-se contratos ilícitos e generosos entre os governos do PT e as maiores empreiteiras da construção civil do Brasil.
Muitos políticos, até mesmo o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e muitos empresários, alguns portadores de contas bancárias na Suíça sem medida, hoje veem o sol nascer quadrado. Lá está também o único ex-presidente do Brasil a ter cama e banho em hotel gratuito – embora se imagine que para o rol dos condenados também logo se dirija o atual chefe de estado, Michel Temer, ex-vice de Rousseff duas vezes e nefasta herança demagoga da administração petista.
Se para Frei Betto a corrupção e o autoritarismo foram os erros capitais na morte do socialismo europeu, e o embargo “usamericano” (termo de sua criação?) o único câncer na falência da sociedade cubana, a quem se culpa pelo queda abismal do Partido dos Trabalhadores? Os próprios petistas, que sobrevivem à crise, apontam teorias sinistras de conspiração e fascismo por parte de uma direita supostamente pior que aquela dos chamados anos de chumbo. Insinua-se também a presença ianque, acreditem se quiserem! Não veem no seu tombo os enganos e abusos de sua própria autoria e dos comparsas eleitos e parceiros nos seus maquiavélicos esquemas de sustentação do poder a qualquer custo, seja na coligação com políticos sem escrúpulos, seja na maquinação sem lei com empresários capitalistas que suas fábulas sociopolíticas tanto atacavam.
Enquanto isso, o mito do cordeiro continua vivo. Quem errou se faz de vítima, e quem venceu tantos entraves um dia pode ser vencedor novamente: sair da cadeia e assumir o destino da nação pelas mãos do “povo”, de quem se diz salvador. Vejamos o próximo capítulo dessa fábula. Que não seja tão vergonhoso e melindroso quanto ao livro de atas do Brasil dos últimos dez anos.

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