Uma casa assassinada
Dário Borim Jr
Rua
Presidente Getúlio Vargas, número 11. Foi ali que mataram um belo prédio, um
casarão discreto, estilo colonial. Amputaram um membro de um corpo outrora
formoso de cidade. Foi de madrugada. No obscuridade da noite. Na calada dos
inocentes. Na premeditação dos cúmplices. Que horror!
Na verdade nem sei como dizer o que quero dizer. Não
sei se há palavras para expressar o que sinto, o que tanta gente sente, pelo
que já li e ouvi de muitos paraguaçuenses. Mas vou tentar. Escritor tem direito
a gaguejar, a sentir-se impotente diante de certos desafios e
responsabilidades. Minha mente e meu coração, porém, me dirigem a palavra. Eu
ouço:
— É covardia! É ignorância! É desprezo! É desleixo! É
desrespeito! É ganância! É triste! Muito triste! É revoltante! É muito feio!
Eu admirei, respeitei e amei a tia Noêmia como o fiz,
ou o farei, a poucas pessoas desse mundo. Muita gente a amou. Pessoa boníssima.
Inteligentíssima. Caridosa. Culta. Justa. Sincera. A cidade de Paraguaçu também
amou aquela extraordinária mulher, Noêmia Prado. E a cidade ainda lhe deve
muito, por tanto que fez por Paraguaçu, principalmente na escola, no posto de
puericultura, na prefeitura e na igreja. Essa dívida é viva. Ela, tia Noêmia,
onde ela estiver, ou a memória dela, como queiram, não merecia tal disparate!
A memória da nossa cidade e do nosso povo, a integridade histórica e
arquitetônica da Praça Oswaldo Costa, tampouco! Nada e ninguém mereciam essa
estupidez. Meu sobrinho, o arquiteto Alexandre Borim Codo Dias, ajudou, ajudou
muito, e muito mais gente o ajudou: assim a casa foi tombada pelo Patrimônio
Histórico. Mas, o quê? Destombaram o prédio? Teria sido possível? Como? Em nome
do quê? Por quê? Para quê? Nova galeria? Lucro? Modernidade? A que custo?
O passado não é onde vivemos quando amamos,
respeitamos e preservamos o passado. Quando, por ele temos consideração e
apreço, ele vive dentro de nós. Sim, dentro de nós! Porque nós, no presente,
somos a soma de todo o nosso passado. E não respeitar o passado é não ter
auto-respeito. É ser incapaz de superar as amarras da ignorância, as marcas e o
peso do subdesenvolvimento. Essa negligência é marca encarnada de barbárie e
mesquinhez que nenhuma falsa modernidade poderá encobrir.
A casa da tia Noêmia, estivesse onde ela estivesse,
deveria sobreviver aos avanços da usura, avareza e ambição. Era simples, mas
bela. Era imponente enquanto documento vivo, enquanto registro e membro muito
importante do corpo histórico da nossa cidade. Amputaram-na. Agora é buraco.
Agora é pó. Agora, onde existia, há nuvens da destruição traiçoeira, do entulho
que demarca a cena de um crime cultural.
As consequências da maldade são ululantes,
desconcertantes, e chamam atenção de todos os que vão à igreja, ao coreto, aos
jardins, aos bancos, aos restaurantes e aos bares da nossa linda Praça Oswaldo
Costa. Será que os monstros não viram nada disso? Não entendiam? Não pensaram?
Era bem destacada a localização da casa da tia Noêmia. Bem no centro da praça
central da cidade: à direita, um quarteirão, e à esquerda, o outro, dos dois
que compõe a praça. Foi por isso, então, que a mataram? Era sua culpa existir
ali, no coração da cidade?
Já ouvi dizer que os novos proprietários da casa da
tia Noêmia clamaram que não tinham dinheiro para fazer o que deveria ser feito:
reformar o prédio, mas também preservar a fachada e sua estrutura. Não ter
dinheiro não é desculpa para destruir, ou, melhor dizendo, para matar, um
prédio como aquele. Não sei se foi até mesmo um caso de latrocínio. Talvez.
Pelos detalhes que se revelaram, expondo o grau de covardia naquela noite
sinistra, com corte de luz e com ação sob a cobertura da escuridão, imagino que
sim, que foi um latrocínio cultural histórico. E se foi coisa de assassino,
bem, assassino que se preza traz consigo suas pistolas. Mas disso eu não tenho
certeza. Não importa. Tratores e guindastes também matam. O que sei é que as
vítimas somos todos nós, os que amamos Paraguaçu, os que a queremos viva, bela
e senhora de si, senhora da sua história e da sua identidade.
Talvez tenhamos sido vítimas da ignorância de uma
parte do nosso próprio povo, pois essas pessoas elegeram dirigentes que não
podem estar muito distantes do cerne de tal impensável e inaceitável
insensibilidade. Se de fato ocorreu isso entre nós, isso é trágico. Gente cega
e poderosa também é gente perigosa — gente que pode ter aquiescido, orientado
e/ou propelida as ações daqueles assassinos da casa da tia Noêmia.
E agora? Será que se aprendeu uma lição? Será que a
justiça e se aplicará aos responsáveis pelo ilícito e pelo abominável? Ou será
que vamos simplesmente sentir muita saudade ao lamentar a morte da casa da tia
Noêmia? Será que só vamos tentar esquecer o ocorrido e fugir do temor pela
amputação de outras partes do nosso ser coletivo, da nossa alma enquanto povo
de uma cidade?