domingo, 23 de maio de 2010

Fé e amor no que se faz



Quem trabalha com arte tem seus privilégios. São muitas as maneiras de que podemos unir vida e criação, lembranças e emoções. Podemos levar nosso carinho às pessoas a quem amamos (e muitas vezes a quem sequer conhecemos), compartilhando, por exemplo, uma bela e comovente melodia, ou aquele poema atilado e justo para descrever o que nos parece inexplicável. É assim, pois, que enquanto programador e apresentador de rádio, eu tenho o prazer de dedicar canções.

Ocasionalmente reservo uma parcela de meu programa para oferecê-la a alguém em forma de tributo. Esse foi o caso de três semanas atrás, dia 29 de abril. A data era significativa. Precisamente 75 anos antes, portanto, em 29 de abril de 1935, um jovem de 12 anos caminhava bem vestido pela rua Aureliano Prado, em Paraguaçu, Minas Gerais. Uma jovem, que se recostava a uma janela de sua casa, viu aquele menino de terninho branco e estranhou-lhe o traje:
— Onde você vai assim tão bem vestido, Darinho?

O menino respondeu logo:
— Vou trabalhar pela primeira vez na vida. Hoje é meu primeiro dia lá na Casa Oriente, na loja do Sr. Luiz Almeida Prado.

Entusiasmado, aquele futuro “caixeirinho” ouviu doces palavras que o seguiriam para o resto da vida:
— Vai com Deus, Darinho. Eu aqui vou rezar um Ave-Maria para que você tenha muita sorte no trabalho e na vida!

Aquele Darinho deixou de ser Darinho alguns anos depois. Apesar disso, até hoje acontece de eu estar visitando os meus pais e atender ao telefone quando alguém me pergunta pelo Darinho (mas não sou eu). Aquele Darinho teve muita sorte, sim, além de muita visão comercial, muita garra e muita perseverança. Nasceu em um lar de parcos recursos materiais, tanto é que somente usava sapatos aos fins de semana antes de conseguir aquele primeiro emprego. Teve pouca escolaridade, mas mesmo assim foi capaz de “vencer na vida” como homem de família, empresário e líder comunitário.

Aquela edição do Brazilliance, meu programa de rádio, caiu exatamente no dia 29 de abril. Eu não poderia deixar por menos. Tratei de reunir discos que tivessem pelo menos algumas das “clássicas” canções que meu pai mais gostava de cantar ao longo dos anos em que nos reuníamos em volta do piano de minha irmã Silvana. O tributo começou com o disco Omaggio a Frederico e Giulietta, uma gravação ao vivo em San Marino, região não muito distante de onde veio parte da nossa família italiana, os Borins. Com sua suave voz Caetano Veloso interpreta “Ave-Maria” (composição de Erothides de Campos): “Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor / Despertando no meu coração a saudade do primeiro amor! / Um gemido se esvai lá no espaço, nesta hora de lenta agonia / Quando o sino saudoso murmura badaladas da ‘Ave-Maria'!”

Na seqüência veio o disco de Renato Motha e Patrícia Lobato, Antigas Cantigas. Entre tantas pérolas, escolhi “Bodas de prata” (Mário Rossi e Roberto Martins) e “Eu sonhei que tu estavas tão linda” (Lamartine Babo e Francisco Mattoso), cujos versos assim se fecham: “Violinos enchiam o ar de emoções / E de desejos uma centena de corações / Pra despertar teu ciúme, tentei flertar alguém / Mas tu não flertaste ninguém! / Olhavas só para mim / Vitórias de amor cantei / Mas foi tudo um sonho... acordei!”

As três canções que iniciaram a homenagem a Dário Borim também são algumas das prediletas de minha tia Vilia, irmã de meu pai, que costumava acompanhá-lo nas cantorias lá em casa. Houve ainda tempo para outra música bem conhecida e estimada pela geração de meus pais e tios, “Chão de Estrelas” (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa). Para tocá-la consegui nada menos que uma versão ao vivo de um de seus compositores, o renomado Sílvio Caldas. Para encerrar, vieram lembranças dos inúmeros carnavais do Ideal Clube, onde meu pai, enquanto presidente daquela associação por 17 anos, teve que permanecer sóbrio para lidar com os exagerados do álcool e do lança-perfume. Era a vez, então, de um clássico de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, “Um Pierrot apaixonado”, na voz de Maria Bethania.

Poucas horas após o final daquela edição especial do Brazilliance pude falar com meu pai ao telefone. Ele agradecia a homenagem e também me contava, com seu contagiante alento, que naquele dia tivera tempo para visitar a jovem que lhe desejara boa sorte em 29 de abril de 1935. Em plena consciência, a sra. Otília Gonçalves o recebeu em casa, fazendo tricô. Ela, na casa dos 90, e ele, bem perto de lá, confirmavam sutilmente a noção de que a vida pode ser longa e compensatória para quem tem fé e amor no que faz.

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