quarta-feira, 30 de janeiro de 2008



Velhos carnavais de Minas

Praça Oswaldo Costa,
Paraguaçu, MG, por D. Borim


Os carnavais de Minas, como os de outras regiões, têm os seus disparates. Lá homem adora se vestir de mulher, pobre se fantasia de rico, e pecado é santificado pelos jovens em praça pública. Será que todo ano Deus faz algum pacto com o diabo para valer somente quatro dias? Não creio, mas parece, porque é muito milagre para um santo só. Por conta de umas afinadas batidas de surdo (e de limão, claro), mais vale é habitar ou sonhar com um mundo onde a alegria e as alegorias de paz e cidadania são produzidas ou patrocinadas por incomparáveis artistas, incorrigíveis malandros e incrivelmente bem-intencionadas — e bem-humoradas! — autoridades.

Nos carnavais da década de 1970, a Prefeitura da minha pacata cidade natal, Paraguaçu, contava com uma legião de voluntários que organizavam dois desfiles de rua: um no domingo, e outro na terça-feira. Claro que tinha mais. Cada um dos três clubes da chamada Princesinha do Sul de Minas oferecia duas matinês para as crianças e quatro noitadas para os maiores de 14 anos. Conjuntos e orquestras tocavam ao vivo, das onze horas da noite às cinco da manhã. A estratificação da sociedade revelava-se, em parte, através dos próprios nomes das associações. Uma facção da classe trabalhadora ia para a Liga Operária; outra, de indivíduos menos sacrificados economicamente, freqüentava o Democrata; enquanto que a classe média mais abastada e a elite dançavam no Ideal Clube. Nas ruas, a espontaneidade era sempre uma das melhores características da Festa de Momo. Entre oito e meia-noite, os tímidos e os extrovertidos, bem como os cultos e os iletrados, saíam todos para a colorida Praça Oswaldo Costa, onde dançavam, bebiam e apreciavam a maluquice geral.
Outro aspecto divertido daquelas festas era que certas pessoas, normalmente sérias e reservadas, soltavam as rédeas. No espaço doméstico do Carnaval se permitia desfrutar as histórias que filhos, parentes e amigos contavam sob a inspiração maior do elemento alcoólico. Entre tira-gostos e goladas refrescantes, todos eram afetados de um modo ou de outro pelo bom-humor suspenso no ar.

É claro que nenhum show da Terra, bom ou ruim, deixa de ver o seu próprio fim, um dia. Então a Quarta-Feira de Cinzas nunca falhava, trazendo sempre fadiga e ressaca. Entre outras mudanças, era hora de voltar para o trabalho e para os estudos. Parentes, amigos e amantes se despediam sem muita alegria, vigor ou poesia. O silêncio profundo desde as sete da manhã era costumeiro, enquanto o sol naquele dia nacional da dor de cabeça seguia seu curso normal. Poucos seres adormecidos sequer ouviam os imensos sinos da Igreja Matriz anunciando dez horas, quando, de repente, ecoava, por toda a cidade, uma canção falando de anjos e pastores. Logo em seguida vinha um vozeirão:
“Anúncio: O Dr. Félix, oftalmologista de Varginha, estará atendendo a população de nossa cidade nesta quinta-feira...”

Viriam outros três ou quatro anúncios de propaganda e de serviços da Igreja, até que uma pausa se instaurasse. Mas durava pouco, pois outra melodia logo alcançava os cantos mais remotos da cidade. Desta feita o tom era bem mais lúgubre:

“Ave Maria, bla, bla, bla...”

Teria Franz Schubert terminado sua famosa peça sacra se soubesse que ela seria recebida nos Trópicos com tantos palavrões? Quando alguns foliões já tinham conseguido retornar ao sono, apesar do encanto melódico daquela obra clássica, voltava o vozeirão no alto-falante da Igreja Matriz:
“É com grande pesar que anunciamos o falecimento do sr. João de Deus, cujo corpo está sendo velado à rua...”
Para alguns revoltados, aquilo soava como um caso de injustiça divina. Paraguaçu não tinha uma estação de rádio, e a culpa recaía sobre os ombros — digo, os ouvidos — de infelizes bebuns e mocinhas namoradeiras. Mas, talvez fosse apenas a voz de Deus abrindo alas, ao som de um ária triste. Sua mensagem era, afinal, deveras realista:
“Cuidado, pessoal! O diabo do samba, do cigarro e da cachaça também mata. E nem tudo é Carnaval”.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

As grandes cidades

[Foto tirada por
D. Borim em 9/jan/08]

Londres não se esquece facilmente. Aliás, existem essas grandes e famosas cidades, mundo afora, que são mesmo muito grandes no nosso imaginário e nas nossas lembranças mais variadas. Um dia, muitos de nós temos a oportunidade conhecê-las pelos cheiros em geral, restaurantes, e pelos sons de automóveis, transeuntes e músicos de rua. Por exemplo, jamais hei de esquecer quando, em 1981, vi Nova Iorque pela primeira vez, em todo o seu esplendor urbano agressivo e mítico, com edifícios de uma altura a perder de vista, com suas luzes em neon restituindo-nos os sonhos dos filmes hollywoodianos e da modernidade.


No outro lado do Atlântico, e dez anos mais velho, encarei Paris. Seus maravilhosos museus, parques e cafés me faziam reviver clássicos da literatura, ou até mesmo anedotas de seus autores mais abusados, como a do inócuo e prosaico encontro entre James Joyce e Ernest Hemingway, do qual se esperavam conversas intelectuais de alto nível, mas o que veio foram conversas sobre pássaros, plantas domésticas, e coisas assim.
Era também a cidade onde moraram diversas celebridades de outras artes, tais como Heitor Villa-Lobos, que certa vez pintou todo o seu apartamento de vermelho (portas, paredes e tetos), apenas por ocasião de uma festa. Na Cidade das Luzes, lá estaria ele, também todo em vermelho, para que sua cabeça de gênio pudesse se destacar num ambiente seleto e requintado de compositores e pintores.


Nunca mais voltei àquela cidade, exceto por duas horas de ansiedade e sono que passei no aeroporto Charles de Gaulle, numa viagem rumo a Madri, ano e meio atrás. As perguntas e as declarações dos inspetores da imigração que ouvi ou pensei ouvir ora em francês apressado, ora em inglês rebocado de sotaque, não faziam referência alguma a um estranho e escandaloso cachorro que me perseguira pelas ruas daquela cidade, mais exatamente em torno do museu do Louvre, vinte e cinco anos atrás. O bicho queria fazer bobagem em cima das minhas coxas. Elas são (mentira, eram) bem constituídas, é verdade, mas naquele dia, principalmente, cheiravam aos perfumes de uma cadelinha no cio. Ela, coitadinha, sem culpa nenhuma, tinha se chocado contra minhas calças jeans dentro de um café, por ali mesmo, perto do famoso museu. Bom, passados tantos anos, ainda bem que o indelicado assunto de um cachorro parisiense em busca de umas coxas tropicais não veio à tona na minha entrevista com as autoridades locais. Não sei como teria reagido ao meu próprio embaraço.


Aquela visita a Madri e a outra visita que fiz à cidade de Lisboa dois anos antes sem dúvida mexeram comigo. Na capital castelhana, o deleite foi assistir a um jogo da Copa do Mundo de 2006 com 16 mil espanhóis, na Praça Zero Km. Em Portugal, acima de tudo, me vi inspirado e emocionado quando naveguei pelo rio Tejo, imaginando a chegada de tantos escritores luso-brasileiros por aquele porto ao longo séculos e séculos, amém. Também me comovi ao canto de uns belos fadistas em Alfama e ao presenciar um pouco do cotidiano no bairro da Mouraria, que nesse momento já vira crescer o gigante da música portuguesa contemporânea, Mariza. Entretanto, o encanto que senti na cidade de Londres na semana passada me surpreendeu ainda mais. É simplesmente apaixonante a agregação cultural no centro daquela capital anglo-saxônica. Dentro da área circunscrita por um quadrilátero de aproximadamente quatro quilômetros quadrados, meus olhos vislumbravam tantos teatros, parques e cafés, que estes me faziam caminhar, sem parar, para que nada me escapasse naquela visita de apenas dois dias e meio.


Apesar do vento, do frio, e da chuva recrudescente, a exuberância e magnitude das obras arquitetônicas em si mesmas—fossem elas góticas, georgianas, ou neoclássicas—já valiam o passeio. Para aumentar o prazer desse sul-americano extasiado pela arte e pela história de Londres, ainda sobrou tempo para ver uma peça no Teatro Novello, baseada na vida do grande escritor C. S. Lewis, e, imaginem, para prestigiar uma roda de samba profissional, bem chique, no Restaurante Guanabara—com direito ao som de cuíca a ao sabor de moqueca baiana. Nessas horas, viva a história antiga e viva a globalização!

sábado, 5 de janeiro de 2008

Brilho maior do Brasil

Há de se convir: sonhos não se tornam realidade a toda hora, em toda esquina. Pouco mais de seis anos atrás vi mais um de meus maiores anseios se realizar. Em 4 de dezembro, de 2001, dava início a meu primeiro programa de rádio e, confesso, não pude evitar certo soluço e uma pequena lágrima. Quase todos nós brasileiros sentimos uma dose de ansiedade por descobrir e valorizar nossa cultura. Essa busca pode se tornar ainda mais intensa ao morarmos no exterior.

[Foto: Rosa Passos na famosa Berklee School
of Music, em Boston, em 8/nov/07]

Para mim poucos elementos da cultura brasileira são tão maravilhosos e enobrecedores como a música. Portanto, ao me tornar um tipo de embaixador do nosso cancioneiro, não me contive e chorei como um Assis Valente talvez o fizesse se soubesse que sua música continua viva e valorizada em várias partes do mundo, em pleno século XXI. O meu programa Brazilliance era satisfação demais para um mineiro da pequena cidade de Paraguaçu, um saudoso das serestas, chorinhos e forrós, além dos inesquecíveis sambas e marchinhas de Carnaval, é claro.

Depois de dois meses de treinamento para poder operar o equipamento de rádio sozinho (como locutor e engenheiro de som), criei e lancei o Brazilliance, um programa semanal de três horas na antiga WSMU (hoje WUMD), uma rádio educativa da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Enquanto estação de FM não-comercial, a missão da WUMD é informar, entreter, e oferecer música normalmente ignorada ou pouco apresentada pelas rádios comerciais. O nome do show vem do título de um álbum gravado em 1954 por Laurindo Almeida, um excepcional violonista paulista, e distintos nomes do jazz: o saxofonista Bud Shank, o baixista Harry Babasin e o baterista Roy Harte.

Laurindo de fato conhecia, tocava e mesclava magistralmente música clássica, jazz e música popular brasileira. Na década de 50, nos bares e auditórios do sul da Califórnia, Laurindo deixaria seus fãs atônitos ao tocar Chopin, Debussy e Ravel, por exemplo, em forma de jazz ou ao ritmo sincopado do samba. O astro do violão escreveu mais de mil composições originais, gravou mais de cem discos, e a maioria das suas partituras e discos está guardada na Biblioteca do Congresso em Washington, junto aos trabalhos de Bach, Brahms e Beethoven.

Brazilliance vem fazendo a sua história na Nova Inglaterra e no resto do planeta. Já que pode ser apreciado tanto aqui, pelas ondas de FM (89.3), como em todo o mundo, pela Internet (http://www.893wmud.org/), o programa tem fãs, por exemplo, em Rhode Island, Minnesota, Ceará, Rio de Janeiro, e Valência, na Espanha. Tenho regularmente recebido elogiosos e-mails (dborim@umassd.edu) e me sinto realizado na missão de levar aos quatro cantos do globo a sofisticada musicalidade tupiniquim. Brazilliance tem-se rodeado de alguns fatos curiosos. Membros de um grupo de músicos do Ceará, Os Argonautas, ouviam o programa, em Fortaleza, quando toquei algumas de suas canções. Imediatamente telefonaram e passaram a comemorar, aos pulos, a honra de serem tocados no exterior e para todo o mundo.

Outro caso paralelo à história do programa é que dois amigos meus, namorados há muitos anos, têm ligado ao mesmo tempo o rádio (ele, aqui em Massachusetts) e o computador (ela, na Espanha) para ouvir e curtir saudades mútuas ao som das mesmas canções que escolho a cada semana. Ouvintes assíduos, Rick Hogan e Blanca Rodriguez muitas vezes me mandam e-mails ou telefonam durante o show (508-999-8150), que é sempre transmitido às quintas-feiras, das 3 às 6 da tarde, horário do Leste dos Estado Unidos. Assim recebo, sem demoras, o apoio e o carinho de muitos ouvintes-amigos— lá mesmo na estação de rádio, onde, ao vivo, reúno e reflito um pouco do brilho maior desse Brasil que quando canta, nos encanta, um Brasil que ao mesmo tempo merece e nos embevece de tanto dom e amor pela música.

A Pérola Negra e outros imprevistos

A Pérola Negra e outros imprevistos Vejo-me numa encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já vem nascendo ...