A descontração da noite e a magia das artes
Dário Borim Jr.
Dentro do universo das
redes que existem entre artistas e amantes da arte, no sentido mais amplo da
palavra, incluindo as artes plásticas, performáticas e literárias, os eventos
culturais programados para acontecer regularmente nos jogam sementes de um
promissor porvir. Eles nos inspiram, fomentam pontes no tempo e no espaço que
transformam as vidas das pessoas, ou pelo menos nos ofecerem entretenimento
estético e razão para repensar nossa existência além da rotina, conforto e
banalidade do dia-a-dia.
Não moro em Nova York, Paris, Londres ou Rio de Janeiro, mas a 10
minutos de carro da minha casa se encontra o centro histórico de uma cidade que
nem é exatamente a cidade em que resido: New Bedford, Massachusetts. E a
comunidade artística de New Bedford, que já foi uma das cidades mais ricas do
mundo por conta da caça às baleias, no século XIX, conseguiu uma belíssima
façanha: a Aha Night, ou Noite do Auê, que se realiza na segunda quinta-feira
de cada mês. Os bares e restaurantes oferecem música ao vivo e cardápios
especiais, e as galerias de arte (que são muitas) abrem novas exibições.
Música, dança, brincadeiras para as crianças, e oficinas de arte e artesanato
ocupam as ruas de pedra rodeadas de lanternas coloniais e arquitetura charmosa
de um tempo em que o dinheiro abundante fazia muita diferença naquela paisagem
urbana.
Na última quinta-feira, na Aha Night deste mês de outubro,
encontrava-me com dois amigos que conheci quase que exatamente um ano atrás. Em
outra edição da Aha Night, em noite memorável, eu fizera minha estreia como
fotógrafo em uma exposição coletiva denominada Postcards from New Bedford.
Entre os visitantes, lá estavam Don Burton e Leila Kaas – ele, artista-cineasta
americano, ela, professora-jornalista carioca. Apresentaram-se a mim e em pouco
tempo nos sentíamos amigos. É que além da empatia e simpatia instantâneas que
cada um parecida notar no outro, eles chegavam da Califórnia (onde moraram
vários anos) com um recado de um amigo brasileiro que tínhamos em comum em Los
Angeles, Sérgio Mielniczenko, o famoso radialista e attaché cultural
do Consulado do Brasil naquela Meca do cinema. Uma nova cadeia de afeições e
interesses artísticos em comum se criava rapidamente entre nós três.
Um ano mais tarde, Don, Leila e eu desfrutamos de mais uma noite
artística pelas ruas de New Bedford. Vimos belíssimas exposições no Museu de
New Bedford e ouvimos música clássica de violino e violão tocada por um trio
assentado em um sofá cercado de dois abajures, tudo posicionado no meio da rua.
Chegou a hora em que apenas Don e eu nos dirigimos a um pub onde uma banda de
seis músicos tocava uns velhos blues e alguns rocks de arrepiar. Conversamos
por mais de três horas, Don e eu, e não faltou assunto relacionado às artes e
às emoções da vida noturna, onde se encontram pessoas criativas e abertas para
a troca de histórias e ideias.
Papo vai, papo vem, falamos de literatura, e dali vieram
lembranças de outras noites culturais programadas que marcaram a minha vida. O
palco dessas memórias foi o Café-Teatro Sagarana, de Mariana, Minas Gerais.
Hoje ele é gerenciado por Ana Lana Gastelois, mas, naquela época, nos meus bons
tempos de professor da Universidade Federal de Ouro Preto, quem administrava a
casa era sua mãe, Magdalena Gastelois, professora de francês, escritora de
vários livros infantis, e mestre fundadora da famosa escola-piloto Picapau
Amarelo (1969), de Belo Horizonte.
Minha amiga do peito, Magdalena era uma figura inesquecível pelo
seu despojamento, sua coragem como inovadora do ensino de línguas estrangeiras
através do teatro. Ela se apaixonara por uma esplendorosa casa edificada em uma
fazenda da distante cidade de Campina (localizada no sudeste mineiro), e
resolveu comprá-la – sim, apenas a casa. Ocupou-se então de transplantá-la em dezenas
de viagens de caminhão, telha por telha, tijolo por tijolo, para um lote que
havia comprado na cidade de Mariana. Conseguiu. A charmosa casa já foi material
de reportagens em revistas de arquitetura. A parte onde funcionava o estábulo
da construção original Magdalena transformou em café-teatro, o Sagarana,
inaugurado em 1998 com mesas e cadeiras também num belo jardim em frente. Entre
outros eventos inesquecíveis, disse eu a Don, Magdalena e outros professores
ali realizavam semestralmente o Festival das Línguas, com peças de teatro
encenadas pelos alunos da UFOP em francês, grego, inglês, espanhol e italiano.
Também contei a meu amigo Don – nessa mais recente noite de Aha –
que no período em que trabalhei na UFOP, entre 1997 e 2000, havia sempre uma
programação cultural intensa programada para cada semana do ano letivo. Na
quarta-feira, uma noite de debates, com professores, alunos e representantes da
comunidade de Mariana e Ouro Preto. Na quinta, forró com diferentes bandas da
região. E, na sexta, dança livre.
Naqueles anos eu vivia uma certa esquizofrenia histórica ao ter um
pé assentado no fim do século XX, em Belo Horizonte, onde morava com minha
família, e outro pé no fim do século XVIII, naquela cidade barroca, onde as “noites”
às vezes duravam quase duas vezes mais tempo que os dias. Sob o luar e a luz
das estrelas, rodeado de prédios coloniais, flores e coqueiros, a diversão e a
troca de ideias eram intensas. Só mesmo acabavam no meio da madrugada. Eu não
queria perder nada daquilo. Por isso ocasionalmente eu ficava até o fim do expediente.
As consequências eram radicais para o corpo, mas fenomenais para a mente.
Certas vezes deixei o café-teatro pelas três e tanto da madrugada para ir
dormir num hotel onde eu residia por três dias a cada semana. Antes das sete
horas já tinha que estar de pé de novo. Tomava duas ou três xícaras de café e
saía cantando ou assobiando, quase que marchando, de tanta disposição para
trabalhar. Ainda, é claro, sob efeito da magia da noite, logo estaria em sala
de aula, onde possivelmente ministrava algumas de minhas melhores e mais
inspiradoras aulas ao discutir as obras de Blake, Dickinson, Hardy ou
Shakespeare.
Não se pode subestimar o prazer estético e o poder espiritual dos
eventos culturais do Café-Teatro Sagarana e do Aha Night, na barroca Mariana ou
na velha New Bedford, duas cidades históricas da minha própria história de
vida, assim como todos os outros eventos programados e incentivados pelas
comunidades dentro e fora das universidades. Se duvidarem, perguntem a meus
ex-alunos da UFOP, ou visitem New Bedford na segunda quinta-feira de cada mês. Como
dizia Hamlet a Horácio, “há mais coisas entre o céu e a terra do que podes
sonhar na tua vã filosofia”. Muitas dessas descobrimos ao desligar a TV e o
computador para ir conviver um pouco mais sob a descontração da noite e a magia
das artes.