segunda-feira, 26 de maio de 2014

Um Delicioso Caos de Lembranças do Cairo e Istambul

Um Delicioso Caos no Cairo e Istambul



Camelos no Cairo

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Há dias tão intensos de emoções e estímulos para reflexões e, ao mesmo tempo, tão repletos de aventura e de novidades, que nos vemos incapazes revivê-los e avaliá-los em retrospectiva organizada e sensata. Vivemos então um delicioso caos de momentos memoráveis.
Ainda à espera de uma conexão no aeroporto de Istambul, em viagem de volta a Massachusetts, tento encontrar uma síntese para um turbilhão de experiências. Impossível! Até mesmo escolher um tópico para essa crônica, a primeira sobre minha viagem de uma semana a Turquia e também de uma semana ao Egito, parece-me tarefa além de minha capacidade. Viajar para países muito distantes de onde vivemos, sociedades de costumes e línguas muito diferentes dos nossos e dos que conhecemos, é algo extremamente desafiador e gratificante.
Em Istambul, a quinta maior cidade do mundo, ocorre o meu primeiro contato com uma sociedade acentuadamente muçulmana (talvez 50% de seus habitantes reverenciem Alá). Para cá viajei com o principal propósito de apresentar um trabalho acadêmico sobre a canção “O que Será,” de Chico Buarque de Holanda, e o filmeDona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, baseado no romance homônimo de Jorge Amado. Aqui encontrei uma belíssima cidade em profunda e acelerada transição, marcada tanto por prosperidade e acentuados contrastes sócio-econômicos quanto por ativismo politico e violência policial sob acirrados conflitos ideológicos.
No cerne desses conflitos, de uma parte se quer uma cidade e um país moderno, de muitos shopping centers, e uma Istambul recortada por viadutos e autopistas. Por outro lado, preocupa-se com a preservação do patrimônio cultural, a efetivação de transporte público de qualidade, a manutenção de ruas e avenidas arborizadas (tomadas por gente, e não por velozes carros), a sustentação e expansão de muitos parques e praças, e a imagem de uma cidade onde os arranha-céus têm que se restringir a determinas áreas apenas. Por conta dessas diferenças, protestos e confrontos com a polícia têm deixado manchas sangrentas na história do país.
Após uma semana na maravilhosa Turquia, era hora de ir visitar o Ian, o filhote mais velho, que acabava seu ano escolar na Universidade Americana do Cairo naquele mesmo dia da minha chegada, 18 de maio. Na maior capital do mundo árabe também tem havido lutas sangrentas entre manifestantes e policiais. Se em Instambul há dinheiro sobrando, pois a economia do país anda firme e forte faz mais de dez anos, aqui também há desentendimento sobre como usar esses recursos. Na capital dos egípcios, entretanto é a falta de dinheiro e as desavenças políticas entre religiosos e militares o que faz o barco balançar. Sofrendo as consequências de dois golpes de estado em menos de quatro anos, o país agora atravessa uma de suas maiores crises econômicas e sócio-políticas. As forças militares e para-militares têm reagido com violência aos protestos dos muçulmanos e outros descontentes.
Comparados com os da Turquia, os problemas do Egito são muito mais vastos e profundos. Enquanto a antiga Istambul se tornou uma nova “moda,” a cidade mais procurada por turistas europeus, o oposto ocorreu ao Cairo. A cidade africana vive as nefastas consequências da sua péssima imagem na mídia internacional. O chocante número de mortes nos conflitos políticos nas ruas dessa e de outras cidades (duas mortes desse tipo ocorreram enquanto estive no país) e o desconforto dos toques de recolher impostos por soldados carregando metralhadoras por todos os cantos da cidade afastaram os turistas. Esse é um peso enorme nos ombros de uma população que, em grande número, vive da economia informal do turismo. Um quarto da economia do Egito, aliás, depende da presença de turistas, e estes sumiram. A falta de dinheiro é recompensada por pães distribuídos gratuitamente e por outros subsídios governamentais. Para muitos egípcios, só mesmo Alá poderá dar jeito numa situação sufocante, e em nome de Alá muitos vão às caóticas ruas do Cairo protestar contra a ilegitimidade do governo instaurado à força, e contra a falta de liberdade e de emprego.
Apesar das marcantes diferenças entre as duas maiores cidades daquela parte do mundo, ambas me encantaram. Lá vivem pessoas que adoram conversar, descontrair tomando um chá, fumando suas shishas nos seus narguilês (o tabaco por meio de cachimbos de água), ou jogando gamão, a sorrir por quase nada e ajudar a quem precise. Ambas são, com certeza, fontes inesgotáveis de surpresas para um viajante ocidental. É como se estivéssemos nós mesmos em um filme que retratasse a vida como ela era milhares de anos atrás.
Como esquecer o charme e a aventura de um cotidiano jamais visto? São as roupas coloridas das mulheres ou suas burcas negras, ou mesmo seus véus e cachecóis. São os turbantes de todos os matizes de homens e meninos. É a roupa tradicional masculina do dia a dia – preta ou acizentada – que mais parece a velha batina abandonada pelos padres no Brasil há várias décadas. São as casas, palácios, igrejas e mesquitas de arquitetura inesquecivelmente variada porque elevadas ao longo dos séculos por gente de origens e valores muito díspares. São os cheiros das ervas e especiarias, dos peixes assados na chapa, e de tantas outras comidas feitas sobre os passeios ou mesmo junto a eles, mas nas próprias ruas.
São os animais, tais como camelos, cavalos, coelhos, galinhas, bodes, gatos e cães – todos convivendo com gente deitada em camas em plena rua, com transeuntes e seus telefones celulares (caros e baratos), com músicos, artesões, pescadores e vendedores ambulantes de sucos e chá. Lá estão eles entre centenas de barracas de toalhas, tapetes, frutas, pães e roscas, milhares de antenas parabólicas, motos, bicicletas, lambretas, charretes, e carros de todos os valores, de um BMW novinho em folha a um sedam russo caindo aos pedaços. São todos os seres e coisas movidos ou situados em meio à forte poluição do ar e aos sons de canções tradicionais, buzinas incessantes, sirenes de carros da polícia e do exército, sem falar das melódicas chamadas para a reza muçulmana cinco vezes ao dia através de altofalantes espalhados por todos os cantos. O Cairo e Istambul nos levam a um mundo que tão fascinantemente mescla os milênios enquanto desorienta e reorienta o ser ocidental rumo à beleza da diversidade humana, com suas múltiplas culturas, hábitos e habitats.


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