domingo, 7 de abril de 2024

A Pérola Negra e outros imprevistos

A Pérola Negra e outros imprevistos




Vejo-me numa encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já vem nascendo neste exato momento, sem plano, sem rumo, e sem guião. Já faz tanto tempo que não escrevo uma crônica. De repente sinto essa forte necessidade de compartilhar um arrastão de ideias, causos e sentimentos nesta noite de sexta-feira, aqui em San Diego, ao extremo sul da Califórnia. Por conta de um congresso da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros) na Universidade Estadual de São Diego, estou hospedado há três dias num hostel bem arrumadinho – um albergue da juventude, como se diz no Brasil. Com o sugestivo nome de Stay Classy (Fique com Classe), ele se encontra localizado na Market Street, dentro do histórico bairro Gaslamp Quarter (Distrito do Lampião de Gás), a umas quinze pequenas quadras do principal porto pesqueiro da cidade, uma área de inúmeras atrações turísticas, como o Seaside Village e as vizinhas embarcações-museus, de antigos e charmosos barcos a vela, como a Star of Índia (Estrela da Índia, de 1863), a gigantes navios da Segunda Guerra Mundial, como o porta-aviões USS Midway (Meio Caminho, 1945).

No fundo, eu estava resistindo ao impulso de escrever, sem saber exatamente o porquê dessa repressão. Mas aí veio uma tentação mais poderosa. Quando meia-hora atrás desci até a cozinha no primeiro andar do Stay Classy, para encher minha garrafinha de água potável, lá estava uma mulher à porta, no meu caminho. Então pude ouvir o que ela dizia a um rapaz preparando seu jantar:

“Meu marido e eu estamos aqui neste hostel por alguns dias enquanto terminamos uma obra no nosso apartamento.”

Percebendo que alguém se dirigia à cozinha, ela se afastou um pouquinho da porta, me abrindo espaço para prosseguir. Foi quando me reconheceu e imediatamente mudou de assunto. Com incontidas risadas, disse ela ao rapaz, referindo-se a mim:

“Aqui está um homem abençoado. Muito abençoado. Depois te explico” 

Eu sabia do quê ela estava falando, claro. Tinha sido com esses termos que ela reagira ontem, quando, assustada, viu que eu abria a porta de um banheiro designado gender neutral (de gênero indeterminado). Nesse instante me dava de cara com uma mulher em pé, em frente a um espelho bem junto à porta. A mulher, provavelmente de 30 e tal anos, tinha deixado a porta destrancada, com o sinal verde do lado de fora indicando vacant (isto é, vazio), mas o real problema era que ali ela se encontrava completamente nua. Por reflexo, por autodefesa, por talvez querer me deixar menos embaraçado, ou, sei lá, por outro impulso qualquer, ela gritou:

Blessed, blessed, you’re very blessed, for having seen this black pearl,” o que quer dizer, “abençoado, abençoado, você é muito abençoado por ter visto esta pérola negra.”

Posso dizer que sou um sujeito viajado, pois já visitei 30 países até hoje – entre eles, 16 onde fiz palestras acadêmicas. Not too shabby, ou em bom mineirês, tá ruim não. O problema é que, no fundo, eu sou apenas o resquício de um menino do interior, que depois de completar 64 anos ainda se surpreende com as coincidências e interconexões do acaso e, principalmente, com o imprevisto e o insólito do comportamento humano. Em San Diego tem sido assim: uma viagem de muitas (e boas) surpresas, muito além da anormal “benção” que recebi de uma risonha e ruidosa Pérola Negra.

A Califórnia, um dos berços da contracultura nos Estados Unidos, também tem, se não me engano, uma certa fama de acolher ou mesmo gerar tipos humanos um tanto anti-convencionais, seja pro bem, seja pro mal. Por quase um ano morei em Los Angeles e lá pude constatar um certo grau de verdade nesse estereótipo. Que espécie de “bem-vindo à Califórnia” foi aquele que recebi de uns rapazes levianos e, talvez, de mau-caráter, quando, pelas duas da madrugada, eu descarregava o caminhão que eu dirigira por cinco dias seguidos desde Minnesota, com nossa mudança? Passaram de carro uns três ou quatro gaiatos, que, aos gritos de não sei o quê, atiraram ovos na minha direção. Por pouco não me atingiram a cabeça.

Por aquela ocasião, quase 28 anos atrás, eu já ensinava Português e Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia Los Angeles. Alguns meses depois, num fim de semana tipicamente ensolarado, minha esposa, Ann, e eu viemos conhecer o extremo sul do estado. Queríamos conhecer e mostrar o famoso San Diego Zoo às nossas crianças, Ian e Zach, que tinham então três anos e seis meses, respectivamente. Não vimos quase nada da cidade, além daquele famoso hotel/cárcere de animais. Desta vez, entretanto, tenho tido a chance de visitar múltiplos pontos de meu interesse na cidade, inclusive o World Beat Center (Centro de Ritmos Internacionais) e Centro Cultural de la Raza situados no Parque Balboa. Posso, pois, hoje testemunhar o meu apreço por essa bela, multicultural, limpa e ensolarada cidade situada a quase 3.000 milhas (4.800 quilômetros) de Dartmouth, Massachusetts, onde hoje moro há 24 anos.

As surpresas e oportunidades desta segunda visita a San Diego têm sido rememoráveis. Não que eu precisasse de quaisquer insumos químicos or orgânicos, mas na Market Street mesma, a cem metros de distância da entrada deste albergue, encontrei uma pequena loja de produtos para fumantes de tabaco e usuários de substâncias menos convencionais, principalmente aquelas de lazer individual assegurado por lei, como aqui na Califórnia e em Massachusetts, mas ainda ilegais em outros estados mais conservadores deste país.

E por falar em vícios, ou semi-vícios, nem acreditei no que vi em um supermercado na mesma rua: vinhos argentinos, chilenos e californianos por menos de cinco dólares a garrafa. Como assim? Vinhos mais baratos que um galão de gasolina neste estado? Dali eu saí para outro mercado, bem menor, onde eu planejava comprar algo quentinho para comer num solitário jantar aqui no Stay Classy. Gostei de uma meia-pizza exposta que lá encontrei. Pedi a um rapaz que a embrulhasse. Ele então me disse que não recomendava que eu a comprasse. Já estava muito velha, disse. Insisti em levá-la, pois me parecia ainda bastante boa. Me surpreendi quando o vendedor me respondeu assim,

“Ah... então pode levar, de graça.” Não recusei.

Mais uma novidade veio logo. A poucos metros do mercado da pizza gratuita, a caminho do albergue, notei a presença de alguns carros de polícia piscantes e a veloz e a retumbante chegada de um caminhão de bombeiro. Então me dei conta de que um carro parado na esquina estava bem amassado. Perguntei a um estranho por perto o que tinha ocorrido. Disse que, aparentemente, o motorista do carro não viu que estava dirigindo sobre os trilhos do trolley elétrico, e contra um deles se chocou. Caramba!

Por aquela mesma esquina, anteontem, eu tinha visto passar uma estranha espécie de bonde do prazer. Nele, um veículo todo aberto, umas 22 mocinhas assentavam em bancos de madeira individuais rodeando duas torneiras de chopp. Ao mesmo tempo, aquelas jovens (provavelmente universitárias) bebiam cerveja, sorriam, cantavam e gritavam saudando os transeuntes. Cada uma delas também contribuía para erradicação das crises climáticas, pedalando para dar impulso àquele alegre e inebriante meio de transporte de urbano.

As ironias do cotidiano continuaram em San Diego. Pela manhã seguinte eu soube de um terremoto com epicentro em Nova Jersey, junto a Nova York. Foi sentido também em Massachusetts e um tanto além, na Nova Inglaterra. Como é que é? Então eu venho para a região dos Estados Unidos mais susceptível a tremores de terra bem quando eles resolvem visitar a minha sismicamente calma região tão distante daqui? Realmente tem sido uma ótima semana para se estar fora do Nordeste dos Estados Unidos, concluí. Além desse terremoto, ao mesmo tempo, também houve por lá uma tempestade de volumosas chuvas e ventos que deram muito medo a Minnie, a nossa adorável golden-retriever.

Enquanto isso, continuei aqui a cruzar meu caminho com muitos tipos humanos de aparências que também me inspiraram a escrever esta crônica. Para não prolongar muito, cito apenas dois. Um senhor idoso, talvez de setenta e tal, bem alto e grisalho, vestia bermudas que expunham suas pernas tatuadas. Ele caminhava a passos largos com um tal montante de aparelhos eletrônicos conectados aos quadris, olhos, ombros e ouvidos, que eu mal entendia do que se tratavam. Outra pessoa que me chamou bastante a atenção foi uma senhora loira um pouco mais nova, de uns sessenta anos, mas já sem alguns dentes. Passou por mim às pressas, ouvindo e cantarolando um hip-hop em volume tão alto que mesmo eu, meio surdo, não podia entender para quê tanta fanfarrice.

Nem só diante de estranhos eu me deparei com mais motivos para compor esta crônica. Sem conhecimento a priori de sua presença na cidade, pude rever grandes e velhos amigos, como os professores Vivaldo Santos, mineiro da gema que escreve livros infantis e professor da Universidade de Georgetown, em Washington, e José Luiz Passos, romancista premiado de Pernambuco e professor da Universidade da Califórnia Los Angeles, a mesma onde lecionei entre 1995 e 1996. Através deles, ontem conheci e fiz um novo amigo, Francisco Rogido, um tradutor e contista carioca, quando fomos os quatro nos descontrair num restaurante de comida indiana e nepalense, o Bhojan Grilha, situado em outro bairro pitoresco de San Diego, a Cidade Velha.

Com essa gente simpática, tomei uma deliciosa cerveja local, a Stone IPA. Antes de falarmos bem e mal da vida acadêmica e lembrarmos nostalgicamente dos velhos bons tempos, como os de outras conferências país afora, pudemos dramatizar alguns termos de nossa fase de vida. Em vez de falarmos de literatura, amores ou futebol, trocamos confidências e conselhos para com os desafios da idade, como insônia, dores no corpo, diabetes, pressão alta, e, sim, infelizmente, alguns casos doenças mais graves, além de outras assuntos de quase-velhos, ou quase-quase-velhos.

Desse filme compacto de emoções, fortaleceu-se a minha certeza de que viajar, conhecer nova gente e novos lugares, e, principalmente, reencontrar depois de muitos anos alguns de nossos velhos amigos, continua valendo a pena, apesar da idade. É a chance de sairmos da nossa área de conforto e mesmice para aproveitar a vida com mais sabor, antes que seja tarde demais, ainda que (e talvez porque) sejamos expostos ao imprevisível e ao inusitado. Amém!


quinta-feira, 18 de maio de 2023

For Casey and André

 




For Casey and André 

Dearest family members and friends of Casey and André, 

Welcome to this celebration of love and commitment. With your permission, I would like to introduce myself. First and foremost, I must say I am not a judge, a priest, a pastor, a rabbi, a Muslim officer, or any other type of powerful person in the legal or spiritual spheres. I am here to conduct the wedding of Casey Snook and André Krüger because of the special bonds of love and friendship that have been blossomed since the day I received a visit from a young and enthusiastic engineering student at my office at the University of Massachusetts Dartmouth.

It was almost exactly eight years ago, then, when Casey wanted permission to enroll in my Portuguese 101 class. It was by chance that we met, really, since all she needed was another three credits to fulfill her Honors Program requisite. Lucky me! I got a lot more than a new student: a new wonderful friend, one of those people we can easily call kin-souls.

What kind of friend, though? Well, it’s a long story, which I promise to cut short. Right away, that morning in my office, I realized she was not an average student or an average person. She displayed a remarkable zest for learning. She was lively and articulate. She was determined and convincing. Even though she had presented herself as an engineering major, she soon showed me that her ease with numbers and hard science was just one among her many talents. In the following weeks I learned that she was taking intermediate Arabic, that she knew some Italian and some Spanish from family interactions and travel experiences, that she played various musical instruments, that she sang, danced and performed in public as part of a course on old Asian music and another on African traditions. Among several other ways of being an active student on campus and off campus, Casey was moved by very different impulses to pursue two of her passions: in Ghana, she would improve her musical skills, and, in Panama, she would work on different means to help the poor in desperate need for running and drinking water.

As that Fall semester unfolded in 2014, we had other several conversations in my office. I realized, then, that she had a passion for helping solve some of the planet’s gravest concerns. That desire fomented her interest in travelling, which, in turn, fed her craving for learning foreign languages and cultures. We did have much in common, including our appreciation for music and travel, and the passionate attachment to our families and friends. Casey definitely had other traits that I greatly admired, like courage and determination. They were also further evident as I read her entertaining and elucidating blog entries that discuss a plethora of cultural adventures and geophysical discoveries around the globe. As the following school semesters passed, I could attend several of her dance and music performances. I saw those traits, too, as she interacted with her peers, instructors and family, whom my wife and I eventually had the honor of meeting and becoming friends with.

Then there was the day I met André. What a fine young man, I immediately I sensed that Casey had scored highly again in life. There were many opportunities for me to learn about his intelligence, flexibility, kindness, patience – an amazingly loving personality. For that realization, I had the honor of spending time with him not only in New England, back in the United States, but also in Berlin, in his own country, where he made sure we would enjoy fantastic nights at venues offering jazz gigs. I was also impressed by the large number and endearing character of the Facebook messages he received when he finished up his internship in the Boston area. Best of all was to see how André treated Casey on a day-to-day basis. On so many of such occasions, I simply wished I was just like him.

In fact, the day-to-day deeds matter a whole lot, and that’s how I would prefer approaching the feelings and expectations behind the reason for us to gather at this marvelous place called Casa Felix: Casey and André’s wedding. This is the second time in my life when I have the delight and distinction of officiating a ceremony in which two beings join hands and hearts for a life together. I am deeply grateful to you two, Casey and André, for the joy your invitation gave me, and also for the trust in my capacity to add a little color and flavor to this exuberant festivity. But because I am a man with a penchant for literature, I cannot put aside the ending of the second act of Our Town, a 1938 theatrical play by the North American author Thornton Wilder. The story takes place in Grover’s Corners, a fictional small town in New Hampshire, not far at all from Casey’s birthplace. I’m sure some of you have read it. It is a classic piece of modern drama that was heavily influenced by existentialism.

You know, those darn existentialists! They are profound and precise in their thinking, but they can be too boringly and painfully pessimistic sometimes, a sort of pessimism that we can use for humor, of course. Breaking with realism, it is the Stage Manager who walks out of his role and plays the part of the clergyman in the wedding of Emily and George. Looking aside, the clergyman certainly shocks the bride and groom, plus the rest of his audience: “I've married over two hundred couples in my day. Do I believe in it? I don't know.” He emphasizes the element of boredom in a long-lasting relationship: “The cottage, the go-cart, the Sunday-afternoon drives in the Ford, the first rheumatism, the grandchildren, the second rheumatism, the deathbed, the reading of the will.” Yes, I think it is appropriate to laugh.

The stage directions explain that the scene takes a different tone, though, when he looks at the audience for the first time, with a warm smile that removes any sense of cynicism from the next line. On marriage, the clergyman adds, “Once in a thousand times it's interesting.” Wait a minute, this is not necessarily the point of view of the play. It’s that of just one character, a minister in disguise. If that character’s words are true, which I think are not, I firmly believe that, in light of what I said about Casey and André, these two extraordinary human beings are genuinely equipped and prepared to be that one couple in a thousand. To be fair to Thornton Wilder, we must remember that he ends the first act of that famous drama three years after the start of the action. The Stage Manager is busy at this time saying that a lot can happen in a thousand days. “Yes, the mountain got bit away a few fractions of an inch; millions of gallons of water went by the mill; and here and there a new home was set up under a roof,” he conjures. “Nature's been pushing and contriving in other ways, too: a number of young people fell in love and got married.” Then he concludes, “Almost everybody in the world gets married, you know what I mean? In our town there aren't hardly any exceptions. Most everybody in the world climbs into their graves married.”

Maybe this part of the script is essentially true, but it doesn’t matter. One of these days I will Google that question and let you know. What I am here to argue about, though, is the beauty and power of love, the whole reason we have come to Casa Felix.

My studies in philosophy, history or literature have not confirmed it yet in great details, but we kind of know that faith in love in a life by two is an old thing. There is also a loud and attractive cousin of love, that which we call passion. Passion can be a really loving sister to love, but many times that cousin-sister simply fades away. Worse than that, if confined in disappointment, passion can hurt and blind us. In my opinion, there is nothing intrinsically bad about passion, even though it can push a person very far away from what love is all about: to wish and to strive for the well-being and happiness of the ones we love.

We do not need existentialism, however, to realize that life is tough, a world of thick and tricky woods we have to walk through somehow and, hopefully, enjoy it to the core, at least from time to time. Different from passion, which, some say, can easily turn into a torment that may drive us crazy, love often is a comforting grass to sit on, enjoy and rest, before it empowers us to move forward with our plans and goals through the woods, as they never cease to surprise us, with bright sunny days or dark cloudy skies.

As Wilder’s Stage Manager suggests, love is certainly one of the most widely taken paths through the woods of life. Those of us who live with our partners know about the sweet and the sour days of existence. So, what? What kind of bliss would we have here today, under these amazing clear skies, if it were not for the gloomy cloudy hours? What matters is the faith we deposit into and extract from the love we feel for our partners! What counts is the chance to look deep into our loved one’s eyes and recognize their love while thinking that we live together because that is our option, our determination to make life better that way, while creating and discovering moments of pure joy and gratitude for each other. What indeed helps us is to accept and embrace life as it is, both for how it can be unexpected and challenging but also generate even more love between us. Love, that way, may provide us with simple and easy respite or with long-lasting strength and courage that grow inside without our knowing how or why.

Honestly, all we need in order to understand and believe those powers of love is to take a look at Casey’s and André’s shinning eyes. This is enough for all of us physically here, and for all of those who could not join us today, to garner faith and joy in the decision they have assumed together. To all of you I ask to pause and think quietly and exclusively of Casey and André sometime tonight. May we all feel the tremendous inspiration that they bring us, as they celebrate their union with us. In our brief spiritual retreat somewhere, may we say a little prayer for these loving human beings. At this moment, though, if I may, I would invite you to salute the couple with a very warm round of applause, even before they exchange their rings and their vows. Of course, we will do that again, then, after the vows, and then again and again, ad infinitum!

 

Casa Felix

Olivella, Province of Barcelona, Spain

September 21, 2022

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo

 




Sábado de Carnaval em Tempos de Chumbo


Dário Borim Jr. 

dborim@umassd.edu 


Eram oito minutos para a meia-noite, quando meu filho mais velho, Ian, escreveu-me uma mensagem via Messenger, do Facebook. Eu já dormia há pelo menos uma hora, sem sequer lembrar, na cama, que era noite de Carnaval. Fora impensável que algum dia antes da velhice aguda ou de qualquer caduquice precoce eu pudesse passar uma noite dessas em branco, sem uma caipirinha ou um velho samba qualquer. Mas os nossos tempos andam um tanto lúgubres, e isso, o tal lapso, de fato me aconteceu sem choro e sem vela, pelo menos por enquanto. Neste momento, entretanto, a melancolia e um profundo desapontamento com a raça humana são os sentimentos que me fazem chorar por dentro, temer pelo futuro desse mundo besta, dominado por ganância material, poder e egocentrismo. Pelas 10 horas, um tanto antes de ir para cama (para mim algo tão ridiculamente cedo num sábado de Carnaval), eu pedira a Ann, minha esposa, uma pausa ao assistirmos um belo e maluco filme de Wes Anderson, The French Dispatcher, com o qual tentávamos pôr de lado as notícias tão tristes que chegavam dos milhares de refugiados e das bombas e mísseis russos caindo sobre Kiev e outras cidades da Ucrânia.

Não respondi, assim que li, àquela perguntinha rápida, que veio em português, “Alô pai, tudo bem?”, porque eram quatro e pouco da manhã quando a vi, e o remetente deveria estar dormindo. Acabou que a mensagem dele me inspirou a assentar agora, às 5h26 da manhã, para me desabafar um pouco por essas mal traçadas linhas eletrônicas de um documento em Word. Diga-se de passagem, é muito bom ter um filho que de vez em quando me pergunta: “Quando vai sair a próxima crônica?” Foi mesmo assim que surgiu a anterior, “Tudo positivo”, de mês e meio atrás, sobre nós, uma família de três pessoas, mais três cuidadoras e um enfermeiro, vivendo sob o mesmo teto em quarentena por conta do coronavírus.

Desta feita, não tenho muito motivo para alegria ou muita inspiração para o humor com o qual tratei daquele tema sócio-sanitário. Bem, talvez. Como cronista, raramente me retrato carente de umas pitadas irônicas ou pelo menos agridoces.

Então, como estão vocês, que gostam da farra desregrada e da graça infantil que marcam a Festa de Momo no Brasil? Eu gostaria de escrever aqui sobre muitas e memoráveis ocasiões de total imersão nesse mundo da fantasia, em que as pessoas dançam, bebem, comem e sorriem muito, deixando de lado por uns dias, ou pelo menos por umas horas, as metafóricas pequenas dores de dente do dia-a-dia, ou mesmo os desafios muito maiores, e nada poéticos, como os de minha realidade atual, quando nos assolam alguns casos de câncer na família, ou a solidão deprimente e a gradativa demência de nossos idosos.

Eu não queria dedicar muito espaço nesta crônica às lembranças daqueles dias de quase êxtase ao longo das décadas – mas quem sabe mais tarde algumas cenas de conversas bem-humoradas e de festas e blocos de fantasias com os amigos poderão me visitar o espírito. Nesta noite em Dartmouth, Massachusetts, o intenso frio, o gelo e a neve ali do lado de fora, por exemplo, poderiam me levar a relembrar as fantásticas noites de Carnaval que passei aqui mesmo em casa alguns anos atrás. Bem, aqui vai o filme – não resisti. A lista de convidados tinha mais de 30 pessoas, mas só quatro tiveram a coragem de vir comemorar comigo essa tradição brasileira que tanto amo. É que naquele sábado de Carnaval de repente caiu uma enorme tempestade de neve. Se quase trinta pessoas não vieram, outras quatro que se aventuraram a dirigir para cá ficaram presas, ilhadas na alegria por três dias, até que as ruas fossem desbloqueadas e o mundo das dores de dente pudesse levá-los de volta para suas vidas normais, sem batucada e sem fantasia.

Infelizmente, vivo o que muita gente pode estar vivendo neste Carnaval 2022: uma angustiosa mistura de pessimismo e medo, empatia e dor, diante do ocorrido no mundo nos últimos dois anos, com a morte de pelo menos seis milhões de vidas, e diante das cenas deploráveis do momento na Europa, onde um governo engana uma nação de dimensões continentais e, assim, justifica, através de sofisticada produção de fake news e outras técnicas de propaganda em massa, uma guerra sangrenta e sem sentido numa invasão brutal sobre as terras de um país vizinho com o qual compartilha muita história, afeto e DNA. 

Nesses mesmos tempos de guerra e sofrimento na Ucrânia, entretanto, é alientador ver a ajuda que milhares de refugiados estão recebendo na Polônia. Pessoas na estação de trem expõem placas com os nomes de cidades poloneses maiores, aquelas que têm como oferecer melhor infraestrutura de apoio, e para onde  eles oferecem caronas. Também é incrível que pessoas que estão indo para a Ucrânia nos mesmos trens que trazem os refugiados. Muitos vão de volta para o seu país para lutar, como voluntários. Vi que uma senhora com mais de 50 anos, e que mora em Londres, tinha cruzado a Europa e estava a caminho de Kiev para cuidar da mãe de 90 anos. Vi ainda mulheres e suas filhas fazendo coquetel molotov nas ruas de Kiev: para resistir aos ataques, vale a pena! São momentos que nos trazem um pouco de esperança e nos fazem um pouco menos envergonhados de sermos seres humanos, da mesma espécie de tipos como Putin e outros líderes idiotas egocêntricos.

Resta-nos recordar que esses tempos passarão, que há novos protestos surgindo contra os russos por todo o mundo, até na Rússia. Que um dia a verdade e a maldade sempre são descobertas. E que uma característica que nos destaca, enquanto brasileiros, é a esperança e a capacidade de sorrir e fazer festa mesmo que com pouco, mesmo que incialmente acanhados, frustrados ou desconfiados, para depois, como dizia Sérgio Sampaio em outros anos de chumbo, de muita violência política e manipulação oficial, nos anos de chumbo da diatura militar, “eu quero é botar, meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer... gingar, pra dar e vender”.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

TUDO POSITIVO

 




Tudo Positivo

              Dário Borim Jr.

 

Duas palavras ganharam força nesses tempos de pandemia do coronavírus: o desejado “negativo” e o abominável “positivo”. Chegou o dia em que eu mesmo tive que encarar o segundo termo depois de um teste rápido feito em Belo Horizonte, logo depois de passar três maravilhosas semanas em Paraguaçu. Era o tipo de resultado que pouco tempo atrás engendrava muito medo e apreensão, além de boas chances de sérias complicações médicas, isolamento em hospitais, grande desconforto físico e mental, e, em tantos casos, óbito. Porém, vieram as vacinas no início do ano passado, mesmo que no Brasil chegariam com muito atraso por conta da ignorância (e mau-caráter) de alguns de nossos governantes.

O fato é que nesse fim de ano, em quase todos os cantos do planeta, as festas agruparam amigos e familiares saudosos e ávidos por alegria e carinho, e o resultado foi muito negativo, no sentido de que tantos testes que fizemos desde então deram positivo, marcando a presença, no nosso organismo, de daquele mesmo vírus letal. Ainda bem que ele passou a ter que lutar contra o gênio da ciência humana, capaz de desenvolver tão rapidamente os antídotos que o reduziriam os seus poderes maéficos àqueles de um fracote, como se o COVID fosse o agente de uma leve e temporária gripe, na maioria dos casos.

Como dizia, em poucos dias entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, o abominável “positivo” se espalhou pelo mundo afora, e nossa casa em Paraguaçu não foi exceção. Em poucos dias, como comentamos brincando, “ficamos tudo positivo”: meu pai, de 99 anos, três de suas cuidadoras, um enfermeiro, meu filho Ian e eu! Fim do mundo? Não, mas foi desconcertante – e foi preciso nos adaptarmos! De repente, a casa de meu pai na Aureliano Prado virou uma espécie de Hospital Borim, com muito exagero, claro! Então, vamos dizer, aquilo virou uma Casa Borim de Repouso e Quarentena, pois nós, seis dos sete infectados, incluindo Terezinha, Queila e Jonathan, passamos a morar juntos. É mole?

Ainda bem que a casa é grande, tinha um quarto para cada um dos “covidados”, os convidados a viver juntos pelas circunstâncias, enquanto durasse a nossa quarentena. É claro que nos preocupamos muito com o Vô Dário, por conta de sua idade avançada e saúde debilitada, e ele foi o foco de nossas atenções e carinhos. Mas nem só de drama e medo vive uma comunidade atacada pelo coronavírus! Foram muitos os momentos de intensa descontração e alegria, de pura amizade e prazer em estarmos juntos. Várias vezes curtimos as abundantes mangas e as uvas do nosso quintal, comemos todos juntos na cozinha, após encaminharmos o Dário para os seus aposentos. E a conversa fluía leve, longa e reveladora. Conversamos muito sobre nosso passado, nossas aventuras, nossas viagens, nossos percalços, nossos planos e nossos dilemas enquanto pessoas de idade, escolaridade, e origem socioeconômica muito diversas. Foi particularmente interessante ouvir causos sobre como era a vida de uma outra Paraguaçu que nunca vi, a Paraguaçu das festas de fim de semana nas roças, nos sítios e na periferia.

Alguns momentos foram de fato comoventes e inesquecíveis. Destaco as cenas de paciência e de jeitinho doce das cuidadoras e enfermeiros em horas difíceis, quando, por exemplo, Dário saía um pouco do seu consciente e se mostrava intransigente e indelicado na recusa aos remédios. Em outras ocasiões, era divertido e gratificante ver as cuidadoras e o infermeiro sairem de manhã das próprias camas e dos próprios quartos onde normalmente pernoitava a família do patrão. Veio também a hora de eu retirar do forno e servir pães de queijo recém-assados para eles, enquanto eles assistiam televisão. Numa das noites, Ian preparou uma massa (que aprendera a fazer quando morou na Itália) e a serviu para os nossos “covidados” com muita satisfação.

Para ser bem sincero, Ian também foi protagonista da hora mais bela de todos aqueles rememoráveis momentos que vivi nesta viagem ao Brasil, que para mim termina daqui a poucas horas em voo sem escala para Nova York. Ele, aliás, já está a caminho da Big Apple. Saiu pelo fim dessa manhã. Portanto, nos ares há um bom tempo, Ian sobrevoou há pouco o esplendor da mata amazônica, como indicava um aplicativo informativo sobre voos em tempo real.

Para encerrar esse retrato de dificuldades mas também de superação de adversidades em tempos de doença e confinamento, volto meus olhos para quando eles se enevoaram de orgulho e gratidão ao meu filho mais velho (em seis dias completando 29 bem-vividas primaveras). Estávamos os três à mesa de jantar: avô, filho e neto, ninguém mais. Foi quando Dário começou a clamar de dores no corpo, repetindo uma ladainha curta, mas perfurante, nos nossos peitos: “Tem misericórdia de mim, meu Deus, tem misericórdia de mim”! Então logo o neto se levantou e se pôs em pé atrás do avô para iniciar uma gentil massagem pelas costas e ombros tensos do nosso querido nonagenário.

O olhar de meu pai, que estivera assentado e cabisbaixo de frente pra mim, rapidamente mudou da água pro vinho. Havia a luz de real alívio no seu semblante cansado. Foi quando ele alterou o enredo de sua cantilena. Olhando para mim, enquanto se deliciava do amor e do carinho do neto de um metro e noventa de altura (que permanecia massageando-o em pé, às suas costas, sorrindo para mim), meu pai passou a repetir outro canto: “muito obrigado, menino Jesus, muito obrigado”. Sentindo uma emoção sem par e sem explicação naquela hora, eu apenas desejei imortalizar aqueles minutos de integral contentamento e gratidão por um gesto tão singelo, mas tão transformador. É o que faço agora, e agradeço a Deus pela chance de valorizar o ato tão simples que tanto nos mostra o poder do amor, da empatia e do bem-querer.


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Nefasto desejo de fim de ano

 

Nefasto desejo de fim de ano

 

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Nesta quarta-feira em que um amigo muito especial já se encontra em outro plano de existência, acordei mais triste do que esperava estar. Quase uma semana depois de sua partida, tive, há poucos minutos, um desejo de fim de ano. Precisei escrevê-lo para compartilhar com alguém a minha angústia. Juro, não é uma questão de vingança. Desculpem a franqueza do que vou-lhes dizer!

Hoje ainda é dia 30 de dezembro. Portanto, o ano de 2020 ainda não acabou. Mas, pelo que mais o marcará na história da humanidade, o drama desses terríveis meses não vai acabar com a passagem do ano. Eu tenho certeza disso, e muitos de vocês também, por vários motivos, mas mesmo assim já tenho um desejo para a entrada do ano novo, sempre tão comemorada por muitas e diversas culturas mundo afora e muitas vezes tomada como momento para pedir benesses e redenções pessoais. Muitas comemorações desse ano, claro, vão ser, infeliz mas inevitavelmente, diferentes. E isso é mais do que preciso. Porém, sabemos: muita gente não vai colaborar. É principalmente para essas pessoas que agora escrevo.

Em meus dois países do coração, nada menos que meio milhão de pessoas já sucumbiram ao coronavírus desde março (quase 200 mil ao sul da linha do Equador, e quase 300 mil ao norte). Tenho muito amor pela terra e pelo povo que mora ou no maior país da América Latina, ou na nação mais populosa da América do Norte. No primeiro, vivo existencial, emocional e intelectualmente desde o meu nascimento ao fim da década de 1950. Vim ao mundo lá pelas verdes colinas do Sul de Minas, de onde nunca saí, tanto pela forma com que ganho a vida quanto pelos sentimentos e preocupações constantes com a gente que mais amo. No segundo país, me vejo presencialmente desde o meu renascimento educacional, pessoal e profissional, mudança radical que tomou seu maior impulso junto às Montanhas Rochosas do Wyoming, trinta e oito anos atrás. É mesmo uma segunda vida, não?

Mas vejam bem: a questão não é nacionalismo, como querem equacionar nossos dois atuais presidentes, Jair Bolsonaro e Donald Trump, que em comum tanto têm de ignorância, insensibilidade e maquiavelismo. O problema é maior, é mundial, é da espécie humana. Os hospitais de todo o planeta, com poucas exceções, estão sofrendo de uma hemorragia que não vai se estancar em tempo de evitar novos milhares de mortes a cada dia, sim, a cada dia, pelos próximos meses, até que as novas vacinas nos salvem de uma tragédia coletiva muito maior do que a já causada pela atual pandemia.

Enquanto isso, milhares ou, possivelmente, milhões de indivíduos negaram e ainda negam a existência ou gravidade da tragédia, e, os mesmos (ou quase os mesmos) milhares ou milhões também se opuseram e ainda se opõem ao uso de máscaras e distanciamento social. Agora, mais recentemente, muitos deles são contra e fazem propaganda para descrédito das vacinas que já começaram e vão algum dia salvar todo o mundo.

Então chegou a hora e vou direto ao meu mais nefasto – mas sincero – desejo de fim de ano. Naturalmente não sou Deus, nem com maiúscula, nem com minúscula, mas por uma questão de justiça cósmica, e por uma questão de lógica sanitária e evolutiva da espécie humana, desejo que nesse ano que se inicia, em menos de 48 horas, que morram primeiro os tais milhares ou milhões de indivíduos que citei acima.

Sim, eles merecem pelo menos se infectarem e então terem que torcer muito pelo seu Deus, com maiúscula ou com minúscula, pois, se o caso da doença for sério e eles precisarem de tratamento hospitalar, então não será nem minimamente justo que tais indivíduos tenham acesso às CTIs de nenhum hospital do planeta! Desejo que não se salvem do vírus algoz (pois foram amigos dele), se para sua sobrevivência tenham que se afogar ao léu e falecer por falta de atendimento médico outros milhares ou milhões que pensaram e agiram tanto em proteção da própria pele quanto na preservação da saúde da família, dos vizinhos e da humanidade como um todo. 

Mas, esperem. Tenho uma ressalva: não quero ser maniqueísta. Desejo então que no fim (ou, até com mais clemência, fora) dessa fila dos condenados sigam aqueles indivíduos que adotaram tal atitude negacionista, as pessoas que negam ou não aceitam como verdadeiros os conceitos comprovados cientificamente, por uma questão de desconhecimento ou inocência diante do discurso político sedutor de nossos dirigentes e seus comparsas, gente que tragicamente confunde liberdade com irresponsabilidade.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Aproximações de Clarice Lispector

Aproximações de Clarice Lispector:

Um depoimento à Fundação Joaquim Nabuco

 

Clarice Lispector

Luta sangrenta pela paz, 20/maio/1975

Óleo sobre madeira (Acervo Fund. Casa de Rui Barbosa)


Minhas conexões com a obra de Clarice Lispector se iniciaram na adolescência, quando, poucos anos antes de ela falecer, decifrei e me deleitei com alguns dos enigmas de Perto do coração selvagem. Na época eu lia, sem saber, vários dos títulos que a tinham influenciado profundamente naquela mesma fase instável de formação, que Clarice passou entre o Recife (de onde saiu aos 15 anos) e o Rio de Janeiro (onde floresceu como escritora). Eu mesmo me mudara, também aos 15 anos, de Paraguaçu (cidadezinha no Sul de Minas), para Belo Horizonte (a moderna capital dos mineiros). Absorvemos, os dois, ela nos anos 30, e eu nos 70, um bom número em comum de narrativas inesquecíveis, como Crime e castigo, de Mikhail Dostoiévski, e Siddhartha, de Herman Hesse.

Clarice, que essa semana completaria 100 anos, infelizmente nos deixou muito cedo, um dia antes de completar 57 anos, isto é, só um pouco mais jovem do que estou eu, no momento. No ano de sua morte, também partiu deste mundo um dos grandes amigos-poetas de Clarice, Carlos Drummond de Andrade. Naquele mesmo ano de 1977, eu me formava em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, e logo me sentiria um tanto desnorteado intelectualmente diante de enorme perda, a de dois dos maiores poetas brasileiros, ele, do verso, e ela, da prosa.

Enquanto professor universitário, minha ligação com a poeta-em-prosa Clarice Lispector tem passado por modestas, mas, afáveis experiências. A primeira vez que utilizei seus textos em sala de aula foi quase 30 anos atrás. Eu dava meu primeiro curso de literatura na vida. Foi na Universidade de Minnesota, no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Tratava-se de uma disciplina eletiva da graduação voltada para a criação poético-musical de Caetano Veloso, autor sobre o qual Clarice exerceu significativa influência. Naquela ocasião lemos Laços de família, meu favorito entre os seus livros 27 publicados em vida.

Até recentemente, enquanto pesquisador eu não tinha dedicado muita atenção à obra de Clarice Lispector, mas desde os tempos de Minnesota tenho trabalhado com o seu legado em cursos de bacharelado. Enquanto isso, foram surgindo oportunidades de fazer algumas palestras na Europa e nos Estados Unidos e de escrever algumas crônicas sobre a autora. Também publiquei, no Peru, um ensaio acadêmico sobre a linguagem figurativa no conto “A imitação da rosa”.

Atualmente ministro um seminário na pós-graduação, aqui na Universidade de Massachusetts Dartmouth, que é todo voltado para a crônica brasileira. Clarice já teve um grande destaque nos nossos debates. Nos últimos dois meses tenho pesquisado essa parte do seu legado, suas inusitadas crônicas. Ademais, há duas semanas fiz uma palestra sobre o tema no Colóquio Laços com Clarice, um evento organizado por três instituições: a nossa, o Instituto Federal de Pernambuco, e a Universidade Federal de Alagoas.

Resta-me confessar que me encontro mais apaixonado do que nunca pela obra de Clarice Lispector. Acredito que esse entusiasmo e prévios estudos que fiz sobre a crônica enquanto gênero híbrido para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos nos últimos dez anos poderão resultar em um novo livro. A cada dia não vejo a hora de explorar a audácia, complexidade, criatividade, inovação e profundidade dos escritos claricianos que inicialmente apareceram em jornais e revistas do Rio de Janeiro. Espero, assim, contribuir para amenização do preconceito que ainda subexiste, em geral, contra a crônica enquanto expressão artística, e, em particular, contra aquela vasta e fascinante – porém, pouco estudada – porção da obra de uma imortal da literatura mundial.

sábado, 14 de novembro de 2020

Novos amigos


 

Novos amigos


Dário Borim Jr.

Ontem apanhei meu guarda-chuva verde e saí pra dar uma voltinha pela vila onde moro, aqui ao sul de Massachusetts. Fui tirar umas fotos das folhas do outono que se esconde aos poucos, a maioria embelezando em última instância o chão onde caíram. Foi minha maneira de homenageá-las e guardá-las para apreciação por pelo menos mais uns dias (possivelmente por alguns anos), pois o vento, as vassouras e os aspiradores elétricos não as iam deixar durar mais que poucos dias. Fico com a mesma impressão que talvez tivesse Claude Monet cento e pouco anos passados. Precisamos captar esse brilho e nos iluminarmos a alma.
Este ano de 2020, mais do que nunca, quero ir ver as cores, as formas e os movimentos fora de casa, onde basicamente trabalho, como e durmo! Talvez essa fome de viver mais e melhor ocorra porque esteja eu, como quase nós todos, um tanto mais sensível. Sem oportunidade para ver meus amigos, ou me divertir como antes da pandemia, o que fazia vendo shows, dando risadas, etc., eu agora -- mais do que nunca, como dizia --faço novos amigos entre as plantas, os passarinhos, os insetos, as núvens, os rios, o mar, a lua, e muito mais. Que sorte!
E vou fotografando o que posso, o que é minha maneira de amar a tudo aquilo tão belo e de graça, sem riscos de contágio, a não ser o contágio do deslumbre, da admiração, e do respeito ao que nasce tão formoso, mas, como tudo, morre e às vezes renasce no ano seguinte, talvez, se o ser humano não destrói tal harmonia e diversidade, queimando ou roçando os campos, expulsando ou matando os animais. Hoje em dia estou tentando viver cada dia mais nesse plano da contemplação que me leva a pensar e a escrever como forma de viver mais livre e mais prazerosamente, dentro dos limites desses nossos tempos de crise e risco, de isolamento e saudade.

A Pérola Negra e outros imprevistos

A Pérola Negra e outros imprevistos Vejo-me numa encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já vem nascendo ...