Pérola Negra e outros imprevistos
Vejo-me numa
encruzilhada de cenas implorando para virarem trechos de uma narrativa que já
vem nascendo neste exato momento, sem plano, sem rumo, e sem guião. Já faz
tanto tempo que não escrevo uma crônica. De repente sinto essa forte
necessidade de compartilhar um arrastão de ideias, causos e sentimentos nesta
noite de sexta-feira, aqui em San Diego, ao extremo sul da Califórnia. Por
conta de um congresso da BRASA (Associação de Estudos Brasileiros) na
Universidade Estadual de São Diego, estou hospedado há três dias num hostel bem
arrumadinho – um albergue da juventude, como se diz no Brasil. Com o sugestivo
nome de Stay Classy (Fique com Classe), ele se encontra localizado na Market
Street, dentro do histórico bairro Gaslamp Quarter (Distrito do Lampião de
Gás), a umas quinze pequenas quadras do principal porto pesqueiro da cidade,
uma área de inúmeras atrações turísticas, como o Seaside Village e as vizinhas
embarcações-museus, de antigos e charmosos barcos a vela, como a Star of Índia
(Estrela da Índia, de 1863), a gigantes navios da Segunda Guerra Mundial, como
o porta-aviões USS Midway (Meio Caminho, 1945).
No fundo, eu
estava resistindo ao impulso de escrever, sem saber exatamente o porquê dessa
repressão. Mas aí veio uma tentação mais poderosa. Quando meia-hora atrás desci
até a cozinha no primeiro andar do Stay Classy, para encher minha garrafinha de
água potável, lá estava uma mulher à porta, no meu caminho. Então pude ouvir o
que ela dizia a um rapaz preparando seu jantar:
“Meu marido e
eu estamos aqui neste hostel por
alguns dias enquanto terminamos uma obra no nosso apartamento.”
Percebendo
que alguém se dirigia à cozinha, ela se afastou um pouquinho da porta, me
abrindo espaço para prosseguir. Foi quando me reconheceu e imediatamente mudou
de assunto. Com incontidas risadas, disse ela ao rapaz, referindo-se a mim:
“Aqui está um
homem abençoado. Muito abençoado. Depois te explico”
Eu sabia do
quê ela estava falando, claro. Tinha sido com esses termos que ela reagira
ontem, quando, assustada, viu que eu abria a porta de um banheiro designado gender neutral (de
gênero indeterminado). Nesse instante me dava de cara com uma mulher em pé, em
frente a um espelho bem junto à porta. A mulher, provavelmente de 30 e tal
anos, tinha deixado a porta destrancada, com o sinal verde do lado de fora
indicando vacant (isto
é, vazio), mas o real problema era que ali ela se encontrava completamente nua.
Por reflexo, por autodefesa, por talvez querer me deixar menos embaraçado, ou,
sei lá, por outro impulso qualquer, ela gritou:
“Blessed, blessed, you’re
very blessed, for having seen this black pearl,” o que quer dizer,
“abençoado, abençoado, você é muito abençoado por ter visto esta pérola negra.”
Posso dizer
que sou um sujeito viajado, pois já visitei 30 países até hoje – entre eles, 16
onde fiz palestras acadêmicas. Not
too shabby, ou em bom mineirês, tá ruim não. O problema é que, no fundo, eu
sou apenas o resquício de um menino do interior, que depois de completar 64
anos ainda se surpreende com as coincidências e interconexões do acaso e,
principalmente, com o imprevisto e o insólito do comportamento humano. Em San
Diego tem sido assim: uma viagem de muitas (e boas) surpresas, muito além da
anormal “benção” que recebi de uma risonha e ruidosa Pérola Negra.
A Califórnia,
um dos berços da contracultura nos Estados Unidos, também tem, se não me
engano, uma certa fama de acolher ou mesmo gerar tipos humanos um tanto
anti-convencionais, seja pro bem, seja pro mal. Por quase um ano morei em Los
Angeles e lá pude constatar um certo grau de verdade nesse estereótipo. Que
espécie de “bem-vindo à Califórnia” foi aquele que recebi de uns rapazes
levianos e, talvez, de mau-caráter, quando, pelas duas da madrugada, eu
descarregava o caminhão que eu dirigira por cinco dias seguidos desde
Minnesota, com nossa mudança? Passaram de carro uns três ou quatro gaiatos,
que, aos gritos de não sei o quê, atiraram ovos na minha direção. Por pouco não
me atingiram a cabeça. O carinho e a ajuda que minha família recebeu posteriormente
dos novos amigos, que fizemos em Los Angeles, inclusive os queridos Randal e Aparecida
Johnson, com certeza me fizeram esquecer aquele groceiro incidente na noite de
chegada.
Por aquela
ocasião, quase 28 anos atrás, eu já ensinava Português e Literatura Brasileira
na Universidade da Califórnia Los Angeles. Alguns meses depois, num fim de
semana tipicamente ensolarado, minha esposa, Ann, e eu viemos conhecer o
extremo sul do estado. Queríamos conhecer e mostrar o famoso San Diego Zoo às
nossas crianças, Ian e Zach, que tinham então três anos e seis meses,
respectivamente. Não vimos quase nada da cidade, além daquele famoso
hotel/cárcere de animais. Desta vez, entretanto, tenho tido a chance de visitar
múltiplos pontos de meu interesse na cidade, inclusive o World Beat Center
(Centro de Ritmos Internacionais) e Centro Cultural de la Raza situados no
Parque Balboa. Posso, pois, hoje testemunhar o meu apreço por essa bela,
multicultural, limpa e ensolarada cidade situada a quase 3.000 milhas
(4.800 quilômetros) de Dartmouth, Massachusetts, onde hoje moro há 24 anos.
As surpresas
e oportunidades desta segunda visita a San Diego têm sido rememoráveis. Não que
eu precisasse de quaisquer insumos químicos or orgânicos, mas na Market Street
mesma, a cem metros de distância da entrada deste albergue, encontrei uma
pequena loja de produtos para fumantes de tabaco e usuários de substâncias
menos convencionais, principalmente aquelas de lazer individual assegurado por
lei, como aqui na Califórnia e em Massachusetts, mas ainda ilegais em outros
estados mais conservadores deste país.
E por falar
em vícios, ou semi-vícios, nem acreditei no que vi em um supermercado na mesma
rua: vinhos argentinos, chilenos e californianos por menos de cinco dólares a
garrafa. Como assim? Vinhos mais baratos que um galão de gasolina neste
estado? Dali eu saí para outro mercado, bem menor, onde eu planejava
comprar algo quentinho para comer num solitário jantar aqui no Stay Classy.
Gostei de uma meia-pizza exposta que lá encontrei. Pedi a um rapaz que a
embrulhasse. Ele então me disse que não recomendava que eu a comprasse. Já
estava muito velha, disse. Insisti em levá-la, pois me parecia ainda bastante
boa. Me surpreendi quando o vendedor me respondeu assim,
“Ah... então
pode levar, de graça.” Não recusei.
Mais uma
novidade veio logo. A poucos metros do mercado da pizza gratuita, a caminho do
albergue, notei a presença de alguns carros de polícia piscantes e a veloz e a
retumbante chegada de um caminhão de bombeiro. Então me dei conta de que um
carro parado na esquina estava bem amassado. Perguntei a um estranho por perto
o que tinha ocorrido. Disse que, aparentemente, o motorista do carro não viu
que estava dirigindo sobre os trilhos do trolley elétrico, e contra um deles se
chocou. Caramba!
Por aquela
mesma esquina, anteontem, eu tinha visto passar uma estranha espécie de bonde
do prazer. Nele, um veículo todo aberto, umas 22 mocinhas assentavam em bancos
de madeira individuais rodeando duas torneiras de chopp. Ao mesmo tempo,
aquelas jovens (provavelmente universitárias) bebiam cerveja, sorriam, cantavam
e gritavam saudando os transeuntes. Cada uma delas também contribuía para
erradicação das crises climáticas, pedalando para dar impulso àquele alegre e
inebriante meio de transporte de urbano.
As ironias do
cotidiano continuaram em San Diego. Pela manhã seguinte eu soube de um
terremoto com epicentro em Nova Jersey, junto a Nova York. Foi sentido também
em Massachusetts e um tanto além, na Nova Inglaterra. Como é que é? Então eu
venho para a região dos Estados Unidos mais susceptível a tremores de terra bem
quando eles resolvem visitar a minha sismicamente calma região tão distante
daqui? Realmente tem sido uma ótima semana para se estar fora do Nordeste dos
Estados Unidos, concluí. Além desse terremoto, ao mesmo tempo, também houve por
lá uma tempestade de volumosas chuvas e ventos que deram muito medo a Minnie, a
nossa adorável golden-retriever.
Enquanto
isso, continuei aqui a cruzar meu caminho com muitos tipos humanos de
aparências que também me inspiraram a escrever esta crônica. Para não prolongar
muito, cito apenas dois. Um senhor idoso, talvez de setenta e tal, bem alto e
grisalho, vestia bermudas que expunham suas pernas tatuadas. Ele caminhava a
passos largos com um tal montante de aparelhos eletrônicos conectados aos
quadris, olhos, ombros e ouvidos, que eu mal entendia do que se tratavam. Outra
pessoa que me chamou bastante a atenção foi uma senhora loira um pouco mais
nova, de uns sessenta anos, mas já sem alguns dentes. Passou por mim às
pressas, ouvindo e cantarolando um hip-hop em volume tão alto que mesmo eu,
meio surdo, não podia entender para quê tanta fanfarrice.
Nem só diante
de estranhos eu me deparei com mais motivos para compor esta crônica. Sem
conhecimento a priori de sua presença na cidade, pude rever grandes e velhos
amigos, como os professores Vivaldo Santos, mineiro da gema que escreve livros
infantis e professor da Universidade de Georgetown, em Washington, e José Luiz
Passos, romancista premiado de Pernambuco e professor da Universidade da
Califórnia Los Angeles, a mesma onde lecionei entre 1995 e 1996. Através deles,
ontem conheci e fiz um novo amigo, Francisco Rogido, um tradutor e contista
carioca, quando fomos os quatro nos descontrair num restaurante de comida indiana
e nepalense, o Bhojan Grilha, situado em outro bairro pitoresco de San Diego, a
Cidade Velha.
Com essa
gente simpática, tomei uma deliciosa cerveja local, a Stone IPA. Antes de
falarmos bem e mal da vida acadêmica e lembrarmos nostalgicamente dos velhos
bons tempos, como os de outras conferências país afora, pudemos dramatizar
alguns termos de nossa fase de vida. Em vez de falarmos de literatura, amores
ou futebol, trocamos confidências e conselhos para com os desafios da idade,
como insônia, dores no corpo, diabetes, pressão alta, e, sim, infelizmente,
alguns casos doenças mais graves, além de outras assuntos de quase-velhos, ou
quase-quase-velhos.
Desse filme
compacto de emoções, fortaleceu-se a minha certeza de que viajar, conhecer nova
gente e novos lugares, e, principalmente, reencontrar depois de muitos anos
alguns de nossos velhos amigos, continua valendo a pena, apesar da idade. É a
chance de sairmos da nossa área de conforto e mesmice para aproveitar a vida
com mais sabor, antes que seja tarde demais, ainda que (e talvez porque)
sejamos expostos ao imprevisível e ao inusitado. Amém!
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