quarta-feira, 16 de abril de 2025

Mirem-se nas cenas de Atenas

 

                                          A colina da Acrópole desde o Hostel Safestay (2025)

Ei, senhor Chico Buarque de Holanda—que tal essa glosa meio vaidosa e pretensiosa de um dos teus versos mais memoráveis? Logo aqui abaixo veremos as teias dessa analogia com o bardo paulista de alma carioca.

Como muita gente sabe, sou um ser humano de manias. Tenho inclusive o hábito de inventar palavras e apelidos. Outra de minhas manias é notar e celebrar a primeira chegada de qualquer coisa extraordinária na minha vida, uma primeira experiência de algum tipo, seja ela a façanha de um raro sucesso ou a infâmia de algum vergonhoso inconveniente. Aliás, um de meus neologismos é exatamente a palavra “borinzada,” um conceito sobre o qual já escrevi algumas vezes neste blogue. Podem fazer aqui uma busca do termo, e algumas crônicas aparecerão na sua tela. Uma borinzada (coisa frequente na nossa família) pode, pois, resultar de infâmias causadas por algum esquecimento ou confusão da memória.

Anteontem, por conta de uma conferência acadêmica, vim visitar Atenas pela segunda vez na vida. Nessa joia do mar Mediterrâneo, ocorreu-me mais uma experiência “borinzática” e, também, outro evento inusitado. De fato, ambos entraram para o meu compêndio de causos memoráveis ainda antes de eu pôr os pés fora do aeroporto. O primeiro deles veio do fato de que ao cruzar os céus e mares por quase 15 horas eu consegui assistir a nada menos que cinco filmes completos: longas-metragens produzidos no Brasil (Pureza), Espanha (The Room Next Door), Estados Unidos (Exhibiting Forgiveness) , Irã (Persepolis), e um coquetel transnacional (Maria).

Deixem-me contar agora, então, a minha borinzada a la grega. Vale dizer de antemão que por conta de muitas borinzadas pela vida afora, meu Anjo da Guarda não dorme e nem se cansa de me dar uma mãozinha. Esse assunto de ajuda celeste é tão vasto na minha passagem pela terra que alguns meses atrás rendeu “Prazeres, riscos e danos”, uma crônica quilométrica – na verdade, nove crônicas embutidas em forma de “filmes”. Foi muito blablablá sobre meus apertos e minhas curiosidades cotidianas ao longo de mais de meio século. Aquilo tudo já é história. Bem, vamos lá aos detalhes desse novo episódio embaraçoso. Depois de passar rapidamente e sem chateação alguma por um guichê da imigração, dirigi-me à sala de resgate de malas. Tranquilo, feliz e aliviado por ter terminado aquela cansativa jornada, de repente resolvi procurar minha câmera fotográfica Nikon. Infelizmente percebi que o tiracolo da máquina não estava sobre o ombro, e eu já sabia que ela não estava na mochilinha que levava às costas.

Gelei, pois sei que é muito complicado e demorado (ou às vezes impossível) reaver algo deixado para trás no avião. Caramba! Comecei ali um processo duplo: o de pensar muito mal de mim mesmo (quase me xinguei em voz alta, pelo deslize) e o de procurar esquecer a perda, já que a câmera não era nem sofisticada e nem tão nova. Minha lamúria interna não foi muito longe, pois logo teve o seu primeiro revés. Senti-me verdadeiramente agradecido ao ver minha mala vermelha despontar na esteira quase que imediatamente após constatar a ocorrência daquela borinzada. Já tive bagagem extraviada agumas vezes, e, logicamente, esse transtorno pode ter sérias consequências. Com que roupa (como cantava Noel Rosa), com que roupa eu faria minha palestra no ATINER, o Instituto de Educação e Pesquisas de Atenas?

Foi até modestamente sorrindo por dentro do peito que, de repente, eu e todo o resto do aeroporto ouvimos o meu próprio nome mencionado numa mensagem em inglês. Uma voz de mulher, pronunciando muito bem e disseminando por múltiplos auto-falantes o meu nome, dizia: “Mr. Dário Borim, dirija-se assim que puder ao guichê de achados e perdidos da Delta, onde você encontrará algo de seu interesse”. Eu nem acreditei. Até mesmo antes que me desse conta da perda da câmara, alguém no avião teve a diligência de encaminhar a minha Nikon para onde eu pudesse apanhá-la fora da zona restrita do aeroporto. As leis obviamente não permitem que um passageiro retorne às áreas além dos guichês da imigração. Diante de tanta competência e honestidade, o meu semblante era a mais pura expressão de gratidão e admiração.


                                                               
                                                          Primeira visita a Atenas (2015)

Como foi dito antes, meu Anjo da Guarda se mantêm alerta, dia e noite de plantão, sem se aposentar até mesmo depois de todos esses anos de proteção a um ser tão avoado quanto sortudo. E, aos sessenta e cinco anos, a minha vida continua nesses mesmos termos. Hoje, quando eu voltava do Instituto para o meu hotel na rua Agias Theklas, bem no centro histórico de Atenas, achei e gostei muito de um chapeuzinho marrom, que todo charmoso, me esperava numa vitrine na movimentada rua Aiolou. E olha que o preço era ótimo. Comprei, claro. Como eu no momento estava usando outro chapéu, todo preto e já nos seus últimos dias de glória, encaixei o novo sobre o velho. A seguir pus ambos na cabeça e continuei a caminhada. Para minha surpresa, a meio quarteirão da loja, uma mocinha veio correndo e me alcançou por trás dizendo: “Senhor, olha a etiqueta, está aparecendo”. Era mais uma borinzada, claro, mas bem de leve. Que generosidade foi aquela! Expliquei que tinha acabado de comprar o chapéu, e logo trataria de arrancar a etiqueta.

Também pensei: “Uai, engraçado. Não foi ontem mesmo que descendo a rua Vysis eu ouvi outra voz de mocinha chamar-me por detrás, de novo falando inglês. “Meu senhor, aqui o seu chapéu!” De imediato eu não entendi o que se passava. Então levei a mão direita à cabeça e pensei: “Ué, não é que ele, o meu querido (mas velho) pretinho tinha caído, e eu nem tinha percebido?” Mais uma alma doce me ajudou. Mais uma vez o Anjo da Guarda me protegeu.

Os famosos versos de Chico Buarque – tema de uma pergunta de vestibular do ENEM em 2012 – estão, claro, carregados de ironia ao clamarem “Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Vivem pros seus maridos/ Orgulho e raça de Atenas”. As minhas linhas “mal” traçadas não. Elas expressam, como mencionado há pouco, admiração e gratidão por três mulheres em três cenas de Atenas, mas também questionam: “Será que já é passada a hora de eu solicitar a Deus a aposentadoria do meu Anjo da Guarda? Sei não. Acho que é bobagem. Alguém mais deve estar atuando. Quem sabe é outra mulher, a bondosa Lucci, minha mãe, falecida há nove anos. Provavelmente nunca saberei. Só me resta agradecer e procurar viver sem tantos percalços. Um dia a fonte de amor e generosidade pode secar. 

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