sexta-feira, 29 de maio de 2009

Sabrina


Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
A crônica de hoje é sobre uma jovem campeã, Sabrina Amaral Figueiredo — uma vencedora de múltiplas e penosas batalhas ao longo de seus dezoitos anos de idade. Nascida em New Bedford a 28 de agosto de 1990, Sabrina mudou-se aos nove anos para a cidade de Gouveia, região centro-norte de Portugal (Beira Alta). Em 2008 retornou aos Estados Unidos, e agora em maio, ao terminar seu primeiro ano de faculdade, foi convidada para nadar pela UMass Dartmouth. Aqui faz psicologia, mas certamente possui talentos para vários outros campos do saber, inclusive a matemática e a música clássica.

Logo após concluírem os últimos trabalhos do semestre, ela e sua mãe, Cecília, também aluna da nossa universidade (fazendo o Ph.D. em Estudos Luso-Afro-Brasileiros e Teoria), deram-me o prazer de uma entrevista de pouco mais de duas horas. Eu estava diante de duas mulheres de raríssima determinação e articulação verbal, de admirável beleza física, charme e entusiasmo. O que se fez totalmente inesquecível, porém, foi como eu às vezes nem podia acreditar naquela narrativa a duas vozes. Pelo exemplo que me davam, faziam-me renovar a fé na força do espírito humano, na enorme capacidade que temos para tolerar imensos desconfortos físicos, solidão, medo, e o arrastar do tempo antes e depois de nove cirurgias, em uma jornada de quase sete anos entre quatro paredes brancas de um hospital em Boston.
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Quando Sabrina tinha treze meses de idade, constatou-se o gigante desafio à espera de uma linda criança. Ela nascera aparentemente saudável e enorme (53 cm), com belíssimos olhos verdes. Soube-se então, mais tarde, que tinha um sério problema ortopédico. Ainda no útero da mãe, seu fêmur se deslocara por completo quando o feto tentava se mover. O osso chegou a se posicionar perto da axila direita do neném. Ela viera alegrar o lar de Cecília Amaral Figueiredo, portuguesa como a própria filha, e Eduardo Emanoel de Almeida Figueiredo, um brasileiro filho de portugueses temporariamente radicados no Rio de Janeiro.

Sabrina foi logo posta aos cuidados de uma equipe médica do mais alto gabarito, chefiada pelo Dr. Michael Goldberg, do Hospital Infantil da Universidade de Massachusetts Boston. A vida daquela menina jamais seria a mesma. Ela que não dava conta de andar por causa do deslocamento do osso da perna, passou por aquelas várias intervenções cirúrgicas (sete a laser) e ao método corretivo por tração conhecido como Sulzer. Foram muitos meses de desafios constantes, mas por boa parte desse período aquela criança destituída de uma vida comum (de convivência com amigas e liberdade de locomoção) era quem levantava a esperança das outras pessoas. Usava seu próprio nome ao invocar a paciência e a fé dos pais: “A Sabrina vai ficar boa”.

O fardo, entretanto, não era leve para ninguém. Se os pais viviam em tremendo estresse (seu pai até chegou a ser demitido do trabalho por se ausentar muitas vezes e fazer companhia à filha), Sabrina era forçada a esquecer o que era uma cama. Vivia esticada por cabos em posição vertical. Por causa da tensão e precisão necessárias para o esforço imposto ao osso, de modo que esse baixasse lentamente e se aproximasse dos quadris, Sabrina vivia fechada em um arcabouço de gesso que circundava seu corpo do tórax ao final das canelas. Todas as pessoas que já estiveram engessadas sabem do martírio que é ter uma parte do corpo imobilizada por esse material. Além das intensas coceiras, Sabrina sofreu com chagas que se abriam e tornavam sua condição ainda mais inóspita.

Um dia aquele sofrimento intenso foi se amenizando. Uma última e bem sucedida cirurgia, em 1997, retirou longos parafusos que ajudaram na rearticulação do fêmur à bacia. O pós-operatório, porém, não foi nada simples, já que um dos pontos internos se rompeu e a jovem de nove anos retornou ao hospital para lá permanecer por mais dois meses. Nessa fase de recuperação Sabrina já desenvolvera uma verdadeira fobia de médicos e todas as pessoas vestidas de branco. Adquirira, também, uma forte descrença nos adultos em geral, pois lhe prometiam a liberdade para viver sua vida de criança mas constantemente a retornavam ao hospital. Depois daquela recaída e providencial recuperação, não houve mais dúvida: Sabrina estava curada e sua infância se tornaria “normal” dali para frente.

No ano seguinte ela ganharia um irmãozinho, o Ricardo, e a família logo se mudaria para Gouveia, em Portugal. A menina Sabrina, “um nome brasileiro”, segundo a mãe, encontraria fortes barreiras na adaptação a um mundo desconhecido, aquele mundo exterior às paredes do hospital em Boston. Enquanto nos dormitórios daquela instituição ela só queria saber do requebrar de Michael Jackson na televisão, agora, em liberdade, mal se continha quando se via num parque: corria e pulava como uma louca. Na escola, falava demais, sem parar, e irritava as colegas e professoras.

Confinada naqueles anos anteriores de tratamento, Sabrina desenvolvera os sentidos mais intensamente que o normal. Por isso foi capaz de detectar o cheiro de bebida alcoólica e acusou uma de suas professoras de ir trabalhar intoxicada. Foi um escândalo, e não se acreditou na menina, mas tempos mais tarde se constatou que era verdade o que dizia Sabrina, e a professora dependente dos etílicos acabou sendo demitida. Na época de escola, Sabrina entrava em pânico quando tinha que ir ao dentista ou tomar vacinas. Por esse motivo os pais tiveram que solicitar permissão para que a jovem recebesse esses cuidados em ambientes especiais, distantes de enfermeiras vestidas de branco. A fobia e a revolta da jovem não eram nada superficiais ou desprezíveis.

A volta de Sabrina ao mundo exterior, ocorrida em um país diferente daquele no qual vivera até os oito anos, acarretou desafios de outros tipos, inclusive o lingüístico. Era capaz de falar o português muito bem, mas escrever nesse idioma era uma nova provação. No caminho teve o azar de encontrar uma professora que por ignorância ou antiamericanismo lhe disse várias vezes que ela, Sabrina, jamais seria capaz de acompanhar o ritmo da classe. Enganou-se redondamente: Sabrina terminou seu primeiro ano em escola portuguesa com as melhores notas da turma! Uma estratégia adotada pelos pais da menina dera resultado: nos Estados Unidos, falavam entre si o português, se estivessem em casa; e o inglês, quando estavam na rua. Em Portugal, simplesmente inverteram o paradigma, que mais uma vez funcionou muito bem.

Sabrina sempre se ajudou muito naquele processo de aquisição lingüística, entretanto. Era (e ainda é) uma voraz leitora. Em um mesmo Natal, por exemplo, já recebeu 11 livros de presente. Entre outras paixões, aproximou-se muito dos animais, e por isso dedicou especial atenção aos cursos de biologia no ensino básico e secundário. Filosofia, literatura portuguesa e psicologia foram outras matérias que muito a interessavam naqueles anos, mas ela também obteve grande desenvolvimento como pianista clássica.

Seguindo recomendação médica, a jovem luso-americana também deveria se interessar pela natação. Não deu outra, e através dela Sabrina se tornou muito popular no colégio. Até mesmo o nome, bastante raro em Portugal, agora a ajudava. Ela não era mais a “americana” que algumas colegas evitavam. Os pais estavam bem conscientes dos benefícios que esse esporte trazia a quem precisava fortalecer os músculos e por isso construíram uma piscina de 19 metros no quintal da sua casa, em Gouveia. Sabrina podia não apenas aprimorar sua forma física, mas também reunir muitos de seus amigos. Certa vez eram 40 os jovens que se deliciavam numa casa que se tornara o centro das atenções da vizinhança. Aquela menina com sérios problemas na perna direita se curou, batalhou pela sua plena recuperação e acabou sendo campeã regional e membro da equipe oficial de natação de seu país.

Tanto a força do acaso como a dedicação aos esportes e à formação de seu caráter ainda lhe trariam mais surpresas agradáveis antes de se mudar de novo para os Estados Unidos. Por causa de uma séria infecção virótica não diagnosticada por um bom tempo pelos médicos de Gouveia, Sabrina aos 16 anos de idade perdeu o gosto por comer e, conseqüentemente, muito peso. Foi sua sorte, pois se buscavam novas modelos em todo o país para um concurso de beleza e um desfile de moda que se realizariam em Lisboa. Dotada de belos traços físicos, além dos raros olhos verdes, Sabrina se saiu muito bem. Entre duas mil candidatas, ficou em terceiro lugar. Hoje, dois anos mais tarde, ela se destaca entre os alunos da nossa Universidade. Pelo visto, é somente o começo de uma nova fase na fascinante vida de uma pessoa cujos poderes de superação de infortúnios e outras barreiras servem-nos a todos como fonte de inspiração e motivo de orgulho por fazermos parte da mesma raça humana.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Brazilliance Teaches and Entertains its Audience


Brazilliance, on WUMD


Music and writing has been deeply intertwined throughout UMass Dartmouth Professor Dário Borim's 20-plus year career. Borim, chairperson of the Portuguese department, produces and hosts the live radio and Internet show, Brazilliance every Thursday from 3 p.m. to 6 p.m. on 89.3 FM and http://www.893wumd.org/.

Music and writing has been deeply intertwined throughout UMass Dartmouth Professor Dário Borim's 20-plus year career.Borim, chairperson of the Portuguese department, produces and hosts the live radio and Internet show, Brazilliance every Thursday from 3 p.m. to 6 p.m. on 89.3 FM and www.893.wumd.org. The program features an array of musical styles and education about the Portuguese-speaking communities of Brazil, Cape Verde, Mozambique, Portugal and southeastern Massachusetts.

During its seven year run, Brazilliance has attracted not only a local devoted audience but also listeners across the United States and in foreign countries like Brazil, Chile and Spain."Making this show has been one of my greatest dreams come true," Borim said. "Brazilliance now means the world to me. It's the best way I've found to stay in touch with my cultural roots and the music I love the most."

Borim first started thinking about sharing music and poetry through live broadcasting in 1997 when he taught as a college professor in Brazil. He helped to establish a new radio station at the Federal University of Ouro Preto, but left to accept the position at UMass Dartmouth prior to launching his own show.For more than 20 years, Borim has been researching and teaching courses about the thematic and theoretical interfaces of literature and music.

Listeners of Brazilliance hear a range of traditional and progressive music such as bossa nova, choro, fado, morna, samba and various types of instrumental genres. In addition, the music is occasionally combined with short talks, critical commentaries and contextual information, some of which complement his graduate courses in literature and other cultural representations. Using this unique forum, Borim enhances the benefits of a typical in-class approach. When he taught a graduate class in 19th century literature approximately two years ago, music was taken as a central theme in novels and short stories. Students understood and appreciated that literature by listening to the course's "soundtrack," which was broadcast live on WUMD and recorded on compact discs for further dissemination. A few libraries in this country and in Europe hold these discs.

Borim, a native of Paraguaçu, Minas Gerais (a state in southeastern Brazil), has published widely on music themes in books and academic journals. He runs a blog of essays www.drborim.blogspot.com devoted to the mingling of music issues and day-to-day affairs and has organized numerous concerts at UMass Dartmouth featuring Lusophone artists from around the globe. Occasionally, guest artists appear on Brazilliance to discuss their work and share their professional journeys.The latest special edition of Brazilliance celebrated Women's Month by playing and educating listeners about one hundred years of women's songwriting in Brazil. In June and July, Borim plans programs on music written by Cape Verdeans living abroad as well as a show on Brazil's legendary singer-songwriter Caetano Veloso.

For more information about Brazilliance, contact its host at dborim@umassd.edu.

Author: John Hoey
Date: April 30, 2009
This page's original location: http://www.umassd.edu/communications/articles/showarticles.cfm
An Official UMass Dartmouth Web Page/Publication. © 2008 Board of Trustees of the University of Massachusetts. University of Massachusetts Dartmouth • 285 Old Westport Road • North Dartmouth, MA 02747-2300

domingo, 3 de maio de 2009

Ondas





Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

A vida flue em variadas ondas: as de momentos difíceis, tais como aqueles criados por doenças, saudades e falecimentos; e as de momentos bons, como os de nascimentos, reencontros e casamentos. Essa última onda foi a que me levou ao Brasil no fim-de-semana passado. Meu sobrinho Alexandre e sua noiva, Bruna, se empenharam ao máximo e produziram um casamento-espetáculo dos mais memoráveis. O único expatriado da família não podia perder esse evento, e por isso organizou seus afazeres e conta bancária de modo a acomodar a extravagância de uma viagem-relâmpago ao outro lado do globo.

No caminho de ida, na quinta-feira, eu tive que lidar com o enorme estresse de chegar tarde ao aeroporto para embarcar. Não foi bem culpa minha. Os estacionamentos estavam lotados e a companhia aérea antecipou o horário de partida sem me avisar. Por um triz não me dei mal. Mesmo que tenha sido quase no último minuto, ainda consegui sair de viagem como era necessário para não perder as próximas conexões.

Em Belo Horizonte, tudo conspirava a favor de um casamento maravilhoso: tempo bom, a família toda bem disposta, e o reencontro com velhos amigos. Numa capela do condomínio Retiro das Pedras, Alexandre e Bruna foram unidos em matrimônio religioso sob os raios multicoloridos de um belíssimo pôr-do-sol iluminando a enorme parede de vidro atrás do altar. Os pombinhos programaram várias surpresas: homem vestido de anjo, palhaço, malabarista e sanfoneiro. O melhor da festa ficou por conta dos noivos sapecando uma dança bem coreografada ao som de “Sweetheart of Mine”, uma valsa cujo arranjo combinava linguagens e artistas do chorinho carioca e do jazz de Nova Orleãs.

Depois de múltiplas conversas com parentes e amigos, repetidas doses de uísque, e incansáveis danças, o casamento virou lembrança. Antes que meu fim-de-semana internacional se acabasse por completo, porém, outras ondas chegariam. No vôo de domingo à noite entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque pude ajudar uma mocinha a não desmaiar. Karina, sentada na janela ao meu lado, era lutadora de Jiu-Jitso, uma carioca de uns 18 anos. Estava com o joelho esquerdo contundido e enfaixado. Tinha uma cachorrinha vira-lata pretinha e peluda, a tal de Sininho, resguardada embaixo do banco da frente. Sininho recebeu longos cafunés da sua dona, durante quase toda a viagem, e não a ouvi latir uma só vez.

Conversamos muito pouco. Eu curtia a leitura de um belo e estranho romance, Coiote, de Roberto Freire, quando, a certo momento, Karina pediu que chamasse os comissários. Estava passando mal e suando frio. Pus a mão na sua testa e suspeitei que estivesse mesmo com pressão baixa. Os comissários vieram e comecei a abanar seu rosto enquanto um deles passava um paninho gelado no pescoço e no tórax. Fiz-lhe umas perguntas e ela disse que aquilo era hipoglicemia, mas que não era diabética. Fui atrás de um copo de coca-cola. Ela foi melhorando aos poucos. Karina agradeceu minha ajuda, e eu lhe disse, com convicção, para acalmá-la: "Estou aqui pra te ajudar". Reagiu bem ao açúcar. Fiquei pensando como não deveria ser fácil depender da ajuda de estranhos, uma observação que certa vez ouvi de Janis Joplin.

Por coincidência, outro sério problema de joelho me esperava em casa. Meu filho mais velho, Ian, sofrera uma colisão traumática numa partida de futebol e corria risco de ter que fazer cirurgia e ficar fora dos gramados por quase seis meses, o que seria uma mini-tragédia para esse aficionado do esporte das multidões. Ele tinha acabado de chegar de uma fascinante viagem de ônibus a Nova Orleãs, com mais 44 jovens, onde trabalhara na construção de casas para os menos favorecidos. Naquela viagem de 10 dias, Ian fora eleito o “príncipe da caravana” pelas garotas adolescentes. Segundo disseram os professores responsáveis pela jornada, ele foi o trabalhador mais entusiasmado do grupo. Tudo transcorrera às mil maravilhas até voltar às suas atividades em Dartmouth, onde moramos. A vida tem desses revezes: o pico do sucesso muitas vezes é seguido de uma queda vertiginosa ao fundo do posso.

Assim foi a história de mais um fim-de-semana inusitado para mim e muitas outras pessoas, inclusive Alexandre e Bruna. O mundo pós-moderno e globalizado tem dessas coisas: a canção de maior destaque no seu casamento foi uma composição de Jelly Roll Morton interpretada por Tom McDermott, a quem eu assistira ao vivo no clube Donna, de Nova Orleãs. O seu disco, Choros do norte, a mim oferecido pelo próprio exímio pianista, eu levara ao Brasil para compartilhá-lo com José Codo, meu cunhado apaixonado por música melódica e romântica. Dessa exportação de um tesouro de Nova Orleãs altamente influenciado pelo chorinho do Rio de Janeiro veio a escolha musical dos noivos. Por coincidência, meu filho voltava daquela outra “cidade maravilhosa”, às margens do delta do Mississipi, quando, em Belo Horizonte, um belo casamento transcorria ao som de um grande artista da incomparável cidade franco-americana.

Sem despachar mala alguma, eu chegara ao Brasil para aquela cerimônia de matrimônio, e de Belo Horizonte voltei com uma senhora bagagem de recordações: aventura, enternecimento, e orgulho do meu primogênito, principalmente. Estava, pois, um tanto mais feliz e mais forte para lidar com os desafios, dores e preocupações de pai, num cotidiano de muitas ondas, sem aviso prévio e sem trégua.

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