domingo, 12 de dezembro de 2010

Afagos


Usamos, principalmente, a palavra falada e a palavra escrita para nos comunicarmos, mas o silêncio também diz algo em muitos contextos, inclusive aquele que Carmen Miranda jamais esqueceu. Caladas, as elites do Rio de Janeiro presentes ao Cassino da Urca em uma noite de 1940 transmitiram um desafeto histórico, uma mise-en-scène da indelicadeza. Depois de Carmen cantar uma, duas, três canções, não soou nenhum aplauso, somente aquele silêncio que dizia, nas suas estrelinhas vazias mas, mesmo assim, ferozes de rancor: “Nós não gostamos mais de você. Você está muito americanizada”. A bela e talentosa Carmen Miranda não se recuperou mais daquele silêncio.

Outras formas “mudas” de comunicação não ferem a ninguém. Muito pelo contrário, podem redimi-las da dor, da solidão e da saudade, saudade até daquele tipo antecipado, como foi a de Gilberto Gil em 1969. Após serem injustamente acusados de anarquistas subversivos e sofrerem a humilhação e o extremo desconforto de uma prisão solitária, ele e Caetano Veloso receberam uma “graça” da polícia: poderiam fazer um concerto em Salvador para que, com o dinheiro, comprassem passagens e sumissem do país. Daí que Gil quis cantar e, através de uma nova canção, despedir-se de seus amigos e dos brasileiros em geral, sem sequer poder anunciar sua partida. Parece que todo o país entendeu o seu recado: a sua velada mensagem de adeus e de amor. Até hoje usamos, no dia a dia, a mesma expressão de Gil, “aquele abraço”, que também é o próprio título da música. Era sem dúvida um doce e carinhoso abraço de milhões de almas oferecido por mais um de nossos artistas a caminho do exílio.

Assim como um bom abraço, o aperto de mão, o cafuné, o tapinha no ombro, o leve toque na cabeça ou nas costas, o beijinho social, o beijo apaixonado, e aquela boa soneca no colo da mãe ou do namorado — tudo isso pode nos dar o prazer físico da amizade e do amor, da compaixão e do perdão, do consolo e da cumplicidade. Cada um de nós deve ter na memória pelo menos um dia em que algo assim aconteceu e o mundo se transformou.

Para mim um daqueles instantes mágicos aconteceu há quase um ano, quando antecipei minha viagem de Paraguaçu a Belo Horizonte por um motivo muito triste. Um dos meus melhores amigos — e aqueles que me conhecem sabem que sou agraciado por um contingente de pessoas que me querem bem — tinha acabado de perder sua filha única, de 18 anos. Assim como a esposa Sônia, Geraldo já sentia no corpo a saudade antecipada e dolorosa da inesquecível Yumi, vítima da fúria das águas que caíram sobre Ilha Grande, junto a Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro.

Nosso encontro em Belo Horizonte não foi nada comum. Deixou-nos a certeza de que a energia do abraço expressa mais que qualquer palavra, que querendo e podendo “dizê-lo”, nos tornamos muito mais fortes, nos tornamos até temporariamente donos de dois corações, como tão bem explica o autor anônimo do texto que transcrevo abaixo.

Aqui vai, então, o meu mais terno abraço, com votos de felizes festas, a todos vocês que me honram com a atenção e me lêem a cada mês. Pelo carinho que lhes tenho e em gratidão pelos nossos encontros às páginas d’A Voz da Cidade ou do meu blog, Ponteio Cultural, aqui segue um singelo presente de fim de ano: “A tecnologia do abraço”. Espero que gostem. Nasceu da mais profunda, porém despretensiosa, sabedoria do povo mineiro.

O matuto falava tão calmamente, que parecia medir, analisar e meditar sobre cada palavra que dizia...


— É... das invenção dos homi, a que mais tem sintido é o abraço. O abraço num tem jeito di um só aproveitá! Tudo quanto é gente, no abraço, participa uma beradinha. Quandu ocê tá danado de sodade, o abraço de arguém ti alivia. Quandu ocê tá cum muita reiva, vem um, te abraça e ocê fica até sem graça de continuá cum reiva. Si ocê tá feliz e abraça arguém, esse arguém pega um poquim da sua alegria...


Si arguém tá duente, quandu ocê abraça ele, ele começa a miorá, i ocê miora junto tamém. Muita gente importante e letrado já tentô dá um jeito de sabê purquê qui é qui o abraço tem tanta tequilonogia, mas ninguém inda discubriu.


Mas, iêu sei! Foi um anju de Deus qui mi contô. Iêu vô contá procêis u qui foi quel mi falô: O abraço é bão pur causa do Coração. Quandu ocê abraça arguém, fais massage no coração! I o coração do ôtro é massagiado tamém! Mas num é só isso, não. Aqui tá a chave do maió segredo de tudo. É qui, quandu nois abraça arguém, nóis fica cum dois coração no peito!...


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Expatriados



Expatriados

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Segundo o Novo Dicionário Aurélio, expatriado é quem “sofreu a pena da expatriação”, isto é, do exílio, gente como Fernando Gabeira, preso após sequestrar um embaixador. Ou é aquele indivíduo que se exilou por conta própria, que fez as malas e partiu sem a companhia de um homem fardado à porta do avião.

Quem é o quê entre nós, hoje, fora do Brasil? Jogamos todos no segundo time e por isso temos muita coisa em comum? Acho que a questão é mais complicada. Até mesmo os exilados políticos dos anos da ditadura se dividiam em grupos muito variados. Eles por certo não formavam um grupo único e coeso sugerido em abril por Dilma Rousseff, então pré-candidata pelo PT à presidência da república. Indiretamente acusando José Serra, ela teria dito que muitos exilados fugiram do país “por medo da luta armada”.

Como se diz, o buraco é mais embaixo, e por isso mesmo deixo tais estrelas da política brasileira de lado e me volto para a história de pessoas comuns, com quem pude conversar recentemente. Vou aqui referenciá-las por nomes fictícios por duas razões. Primeiro, para salvaguardar sua privacidade. Segundo, por eu ter consciência dos limites da minha memória. Começo por Gabriela, jovem simpática e atraente que se sentou ao meu lado num voo entre Nova York e São Paulo. A conversa fluiu sem trégua, e de tal modo ligeira e interessante, que depois de cinco horas e meia, das 11 da noite às quatro e meia da manhã, vi que era importante um de nós ter a coragem de dizer ao outro, “vamos dormir”?

Antes, porém, soube que Gabriela saíra do Brasil quando necessitava de novos ares para não se enveredar pela depressão aguda ou mesmo pela loucura. Filha única de um médico e uma professora universitária, Gabriela e eu tínhamos em comum a sede pela aventura no exterior e a paixão pelos livros. Ela fazia mestrado em literatura inglesa quando sua mãe foi diagnosticada com câncer. A mãe faleceu nove meses mais tarde. Pouco tempo depois daquela perda Gabriela conheceu Marisa, uma amiga da mesma idade de sua mãe e do mesmo tipo de personalidade: extrovertida, carinhosa, alegre, e cheia de energia. Marisa era ativista na defesa dos direitos dos animais. Infelizmente, por extrema ironia do destino, numa noite ela dirigia sozinha em velocidade normal e de repente teve que lidar com uma capivara que atravessava a estrada. Para evitá-la, Marisa entrou para a contramão. Chocou-se de frente com outro carro, onde viajavam cinco pessoas de uma mesma família. Todas se machucaram gravemente, mas ninguém morreu nesse acidente, exceto a amiga de minha companheira de vôo.

O golpe foi pesado demais, e Gabriela largou tudo para trás: a cidade natal de Florianópolis, o pai, os amigos, a vida acadêmica, e até mesmo o noivado. Conseguiu um emprego na Europa na área de turismo, e por conta disso já fez dezenas de cruzeiros pelo mar Mediterrâneo e por outras belas regiões do planeta. Um dia se cansou de ter residência fixa no exterior e voltou para o Brasil. Tem apartamento montado no Rio, mas vira e mexe está na Europa por uma temporada, como free-lance de turismo, ramo que escolheu depois das duas tragédias, circunstâncias que lhe ensinaram a importância do desapego para não sofrermos demais.

Sofrendo aos extremos, claramente, estava meu companheiro de voo entre Miami e Boston, quando eu regressava do Brasil no mês passado. João mal tinha assentado ao meu lado e eu já lhe percebera o semblante tenso. Na verdade seu olhar era de tristeza, fui logo saber. Ele voltava para os Estados Unidos depois de passar nove dias no nosso país, exatamente como eu. Em pouco tempo de conversa tocamos em assuntos bem íntimos e significativos. Ele estava cansado de muitas idas e voltas. Queria ficar no Brasil, mas sua vida está entrelaçada às de outras quatro, esposa e três filhos em idade escolar.

Jorge e esposa vieram para este país sem documentação que lhes permitisse ficar aqui e trabalhar legalmente. Consequência: ele passou dez anos sem ir ao Brasil! Talvez outra conseqüência tenha sido sua infelicidade e até mesmo a doença que o atormentou por alguns anos. Contraiu câncer num dos testículos. Pelo sangue esse câncer passou a atuar, sem se espalhar como câncer, sobre certa região do cérebro, o que lhe trouxe paralisia em metade do corpo e o sério risco de ter que fazer uma cirurgia na massa cefálica temporariamente inchada, perigo que claramente não se justificava.

João sarou-se antes de lhe abrirem a cabeça por engano, mas ficaram pequenas seqüelas, como uma pequena falta de equilíbrio. O que importa, é claro, é que sobreviveu. Infelizmente também ficou o desejo de voltar para o nosso país, mas com a esposa bem situada profissionalmente em Boston e os filhos americanos enraizados na Nova Inglaterra, o homem carrega uma pesada dor na alma. Eu me lembrei de mim mesmo em dilema parecido – na verdade, o de muita gente expatriada por esse mundo afora. Gente que saiu do país sem um empurrão oficial e sem medo de se aventurar fora de casa. Gente que não para de sonhar com a volta, sem parar de enxergar as amarras do destino e as consequências a longo prazo das bem intencionadas opções do passado. Pois é, o buraco é mesmo mais embaixo, e muitas vezes não se sabe nem a sua profundidade, nem a sua escuridão.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Peixe fora d’água


“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, diz Chico Buarque de Holanda em “Roda-viva”. Cruz-credo – ainda não cheguei lá não, mas confesso: tem dias que eu me sinto feito peixe for a d’água, isso sim. É o que me acontece aqui onde moro de vez em quando, apesar de eu já ter passado nos Estados Unidos 21 dos meus 51 anos de vida. O engraçado é que em certos momentos minha condição de brasileiro não é bem o que me traz conflito diante da minha própria família com três americanos (fora o gigante peludo Sam, nosso adorável golden-retriever). É outra, então, a origem da minha sensação de gauche em Massachusetts. Aliás, era esse,  gauche, o termo que Carlos Drummond de Andrade, um filho de Itabira instalado num prédio de apartamentos no Rio de Janeiro, aplicou a si mesmo: era um gauche enquanto “fazendeiro do ar”.
Na verdade, papo de migrante ou imigrante não assumido não é meu assunto hoje. Quero falar de um peixe de verdade, que fora d’água foi cair nas mãos da única pessoa que gosta de peixe na minha casa: o autor dessas mal traçadas linhas. Antes de pôr a mão na massa e contar a história de um real peixe vivo que não conseguiu viver fora d’água fria (viva Jucelino Kubitscheck), preciso fazer justiça a minha admiração pela cidade onde moro. Em função da natureza viva e embreada no meio e nas margens de South Dartmouth, digo que esta é a cidade mais linda em que já morei. As suas enormes e frondosas árvores de verde pomposo no verão e multicoloridas a cada outono, os seus jardins bem cuidados e aromatizantes até a alma – e, principalmente, as águas transparentes do mar e da belíssima baía repleta de barcos a vela a apenas quatro quadras desta casa – não dão chances às inúmeras concorrentes, cidades em que morei no Brasil ou nos Estados Unidos. 
Naquele sentido, sou peixe muito bem ajustado a sua água, pois de sobra tenho ainda as estrelas como companheiras de vida. É que por causa da crise financeira de 2008 a prefeitura desligou muitos dos holofotes públicos. Há anos nossas ruas se vestem de um mesmo breu que a todos nos envolve, oferecendo-nos as estrelas e a lua de plantão mensal como excelentes alternativas à claridade cara e artificial que antes vinha dos postes de madeira.
Há quase dois anos, quando resolvi encerrar um longo período de negligência para com minha saúde e aparência, tornei-me um andarilho urbano.Essa formosura de cidade à beira-mar muito contribuiu para que eu adquirisse o hábito de fazer diariamente longas caminhadas por suas ruas e por sua orla marítima. Numa dessas “viagens” noturnas, ao embalo da melhor MPB que possuo, eu passava pela nossa ponte giratória sobre a baía, quando um dos pescadores me abordou. Pensei que queria brincar ou fazer carinho no Sam, minha companhia assídua. Não. O tal rapaz, de forte sotaque hispano, muito generosamente me perguntou se eu gostava de peixe. Logo me ofereceu um blue fish de um quilo e meio que ainda se mexia sobre o passeio de concreto, aos seus pés:
— É seu então. Só precisa de um saquinho para levá-lo.
Olhei para os lados e vi um saquinho plástico sendo tocado pelo vento sobre a pista de rodagem. Corri e o apanhei. Agradeci ao jovem pescador porto-riquenho (Juan é seu nome, disse-me ele), e passei a matutar: o que fazer com esse peixe numa casa onde todos os seres (menos o Sam) detestam peixe? Pior, eles nem toleram cheiro de peixe!
O jeitinho brasileiro tinha que funcionar. Logo pensei nos três sacos de gelo que havia no congelador. Tinham sido comprados em preparação aos possíveis apuros de um furacão que nos ameaçou, mas se esquivou, dois meses atrás. Eu deixaria o peixe do lado de fora da casa. Eu entraria na cozinha em silêncio e pegaria os sacos de gelo e uma caixa plástica. O peixe e o olfato dos ultra-sensíveis co-habitantes estariam protegidos até a manhã seguinte, quando os gringos da casa estariam na escola e o mestre-cuca mineiro transformaria aquele blue fish em belo risoto para um solitário almoço. Diga-se de passagem que Ann, Ian e Zach não almoçam em casa. Eu teria tempo para grelhar e comer meu peixe sem deixar o ar da cozinha impregnado daqueles cheiros deliciosos que só a mim me apetecem nesse lar bi-cultural.
Deu tudo certo, pensei. Desfrutei do sabor extra especial de um peixe retirado daquelas águas azuis pelas quais passeio todos os dias. Que luxo! Tive uma sensação de plenitude, de interação completa ao meu meio-ambiente, como um bom peixe em águas cristalinas. Qual foi minha surpresa e decepção, entretanto, ao voltar para casa à hora do jantar! Fui logo lavar umas panelas e ouvi de Ann, que estava em pé logo atrás de mim, a pergunta que denunciou o fracasso parcial da minha missão:
— Você comeu peixe hoje?
Ra-ra-ra’, diria o colunista da Folha, José Simão. Eu ri, meio sem jeito, mas ri sim. Só pude perguntar a ela se foi o cheiro da panela já lavada há muitas horas que de alguma estranha forma... “me entregou”. Ela riu também, disse um “talvez” amarelo, mas não reclamou.
Algumas pessoas para quem já contei esse “causo” me disseram:
— E por que você não manda esse pessoal às favas?
Sou mineiro, uai, e bem diplomático. Prefiro continuar cozinhando em surdina e reservar as favas para quando eu não puder mesmo comer meu peixe, ou para quando eu me sentir, mais dolentemente, um peixe fora d’água.


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Mensagens


As formas das pessoas se comunicarem mudaram radicalmente nos últimos anos. Houve o tempo de se usar o serviço de correio via lombo de burro para se enviar notícias. Que transformação passou a humanidade entre aqueles dias imemoráveis e perdidos na história e os atuais, quando pelo sistema Skype, por exemplo, as pessoas separadas por rios e mares se falam e se vêem na tela de computador, ou até mesmo no visor de um telefone!

O telégrafo e as locomotivas trouxeram novo impulso à velocidade das comunicações interpessoais. Mais tarde, os automóveis e os aviões, também. Com o desenvolvimento da eletrônica, porém, a revolução foi radical. Primeiro vieram os satélites, mas as chamadas telefônicas eram muito caras. Depois passamos a trocar longas “cartas” por meio de fitas cassetes. Filhos e pais, namorados e amigos do peito, agora podiam contar longos casos, compartilhar de música e poesia, e enviar essas gravações por meio de um serviço postal que podia levar entre dois dias e duas semanas. Tomava um tempo, mas a comunicação chegava, levando a voz dos entes queridos, as emoções e muita “vida” que assim se fazia possível entre amantes, amigos e parentes afastados fisicamente.

Eu sempre gostei de escrever e receber cartas. Até sonhava com elas, e acabei virando colecionador de selos postais. Antes de completar 14 anos já tinha correspondentes internacionais (na Argentina, Canadá, Colômbia, Grécia, entre outros países), e me deliciava com o privilégio de praticar o inglês e o espanhol e ainda aprender sobre aquelas culturas via correio. Tanto gostava de me corresponder por cartas que guardo na casa de meus pais, até hoje, um acervo de mais de 500 correspondências. Que mundo e que vida estão lá preservados! Em meio a elas também possuo varias dezenas daquelas tais fitas-cartas, inclusive valiosas gravações feitas por meus pais a partir do dia em que eu vim estudar e trabalhar nos Estados Unidos, em março de 1981. Não havia limite para o quê, como ou quando gravar uma carta-cassete, já que os gravadores portáteis podiam nos acompanhar a qualquer lugar. Lembro-me de ter feito gravações daquele tipo até enquanto caminhava pelas ruas, curtia uma festa, ou me encontrava com amigos num bar.

Hoje, em plena era do e-mail, das comunidades virtuais como o Orkut e o FaceBook, e das ligações baratas ou gratuitas entre pessoas morando em regiões tão distantes do planeta, acabo de receber uma mensagem de um modo bem antigo, certamente o meio de comunicação mais ancestral de toda a história da humanidade: o boca-a-boca. Aquele recado foi de outro modo ainda mais significante, um tipo de mensagem que eu jamais recebera. Aconteceu na segunda-feira passada na biblioteca central da Universidade de Massachusetts Dartmouth, onde trabalho há 11 anos.

Antônio, um senhor de meia-idade, me procurou após assistirmos a uma palestra de Salwa Castelo-Branco sobre a história da música portuguesa do século XX. Perguntou-me o nome. Quando soube quem eu era, disse que estava muito satisfeito por me ter encontrado. Trazia uma mensagem, mas talvez eu não me lembrasse mais da pessoa que a enviara. Quando Antônio mencionou o nome de seu irmão, Luís, tive a forte sensação de que eu sabia quem era o tal Luís, apesar de eu não ter recebido ainda nenhuma indicação de quem se tratava. Eu estava certo.

Antônio disse-me que seu irmão, Luís Cabral, pediu-lhe para me dizer, quando me encontrasse, que ele, Luís, tinha gostado muito de ouvir o Brazilliance, meu programa de rádio. Confirmada a minha suspeita de que tal Luís era o mesmo que eu imaginara, imediatamente disse a Antônio que eu também tinha ótimas lembranças daquele ouvinte assíduo, tão interessado em música brasileira, portuguesa e luso-africana, e tão gentil ao ponto de me escrever emails após cada programa, comentando o repertório tocado naquela quinta-feira ou sugerindo novos títulos para o programa da semana seguinte. Eu que nunca encontrei Luís pessoalmente tinha agora a oportunidade de saber mais sobre aquele ouvinte leal, de quem eu não recebia mais emails desde 2004.

Antônio narrou um pouco da história do irmão. Sua voz já se encontrava alterada, mais suave e emotiva. Disse que não queria reclamar da vida ou do destino, mas isso era difícil, pois seu irmão falecera em julho passado, aos 65 anos de idade. Formara-se engenheiro com a primeira turma graduada no novo campus da nossa universidade. Amava música. Tocava violão e violoncelo. Participou de uma banda de jazz por aqui, na região de Rhode Island, e depois na Carolina do Norte, onde foi morar por ordem da marinha, para a qual trabalhava. Na marinha ele chegou a tocar numa orquestra sinfônica e até a dar aulas de violoncelo.

Quando Luís mudou-se para a Carolina fez questão de comprar uma casa próxima a um hospital, pois sua esposa era diabética e passava por crises de saúde bem amiúde. Mal sabia ele que nesse hospital ele passaria muito mais tempo do que ela. Antônio disse-me que seu irmão era cheio de vida, cheio de entusiasmo e amor pela música, mas que seu fim foi muito rápido. Um câncer no intestino ceifou-lhe a vida apenas noves meses após os primeiros sintomas.

Aquela conversa de dez minutos não me saiu da mente até hoje. Ainda me pergunto muitas coisas depois de receber aquela mensagem de um ser que já tinha partido desse mundo. Senti um misto de prazer e dor naquela hora, o que se repete neste momento. Fiquei tão honrado por receber tal recado quanto incomodado pelo fato de não mais possuir suas mensagens eletrônicas e, pior, não ter feito nada para me encontrar com aquele ouvinte-amigo. Ficou-me mais uma lição sobre a fragilidade da vida humana e da necessidade de não deixarmos para amanhã a chance de conhecer alguém que cruza nosso caminho e tem afinidade com nossa alma, com nosso modo de encarar e desfrutar dessa existência tão bela, por várias razões, mas também tão surpreendente, porque tão sinistramente injusta e passageira.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Labuta ou Lazer?


Minha carreira profissional se mistura a minha sede de lazer. Faz muito tempo que isso ocorre — desde 1982, quando troquei de roupa, de chapéu, ou melhor, me re-encarnei mesmo, sem ter morrido. Romanticamente abalado até o osso e decepcionado com a falsa ciência de se construir rápido e barato (mas cobrar caro), eu simplesmente me despi de uma fantasia: uma carreira na engenharia civil. Logo após o Carnaval daquele ano, imitei Che Guevara sem motocicleta. Juntei meus trapos e meus livros do Fernando Gabeira para logo encarar uma longa estrada pela América do Sul rumo à América do Norte. Atravessei por terra e ar sete países em quatro semanas. Depois tive que experimentar os primeiros sabores de três outros cursos universitários (psicologia, geografia e pedagogia) em três diferentes escolas americanas, até que a ficha caísse. Acabei virando outra pessoa quando percebi que tinha certa vocação para as letras.

Passaram-se muitos anos, mas na labuta ou no lazer, continuo me ocupando com palavras. Há um ano e meio assumi um difícil compromisso junto à Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos: ler 62 livros e escrever umas “coisinhas” para publicarem num livro bianual daquela instituição, a maior biblioteca do mundo. Estou frito, pois o prazo está acabando exatamente daqui a uma semana e ainda tenho três volumes a dissecar, além de um ensaio a redigir, e nem sei quantas sinopses a concluir para o mesmo projeto. Todos os livros são coletâneas de crônicas brasileiras, quase todos deliciosos de ler — entre eles um de nosso querido conterrâneo Jeferson de Andrade. Num só volume há 101 delas. Oh Gerarda, diria eu num agitado barzinho de Belo Horizonte, se por lá estivesse, neste momento, e não aqui, nesta madrugada cinzenta e úmida de Massachusetts.

Então me veio uma dúvida cruel: nas próximas horas devo ler mais uma dúzia de crônicas de Mário de Andrade ou escrever minha própria crônica para A Voz da Cidade? Labuta ou lazer? Quem sabe consigo fazer as duas coisas, com uma pequena ajuda dos meus leitores que vão aqui comentar minha crônica anterior, “Belos Horizontes”. Sem o saber — e sem querer me processar por plágio, espero — vocês estarão contribuindo, mesmo que anônimos e em forma de palimpsesto, para mais uma edição desta coluna. Vamos lá!

Ficou muito boa! Belo Horizonte agradece. Sou mineira de coração. A próxima vez que tu ficares perdido em Atlanta, chama a gente! A crônica ficou maravilhosa! Sabe que quando você termina a crônica dizendo do nosso privilégio de ficar aos pés da serra do Curral me vieram três coisas na cabeça, esse luar maravilhoso visto por lá, o Parque das Mangabeiras e o Parque Municipal. Sei que existem milhões de outros atrativos nesta grande cidade pra você escrever, mas é que estes três lugares são Darinho pra mim. Agradeci a Deus por ser belo-horizontina depois desse encerramento! Com o coração cheio de esperança que tudo ainda vai melhorar e dar certo pra mim! Ficou maravilhoso o texto, como sempre!

Eta trem bom..., nem me fala que delícia é a sua terra! Gostei! Como sempre um texto apaixonado e muuuito bonito. Para mim, Belo Horizonte é tudo o que diz o título. Acho a cidade muito bonita e foi um presente conhecê-la em uma viagem a Minas Gerais que também passeou pelos arredores dos Horizontes. É claro que, diante de tantas coisas lindas que foram ditas, ainda cabe ressaltar — porque indiretamente você trouxe o tema — a presença grandiosa dos autores que se relacionam aos horizontes belos e às gerais de maneira contínua. A cultura transborda e a gente aproveita!

Não é que o texto ficou bom demais, sô! Uai, mas você não se esqueceu de nada! Muito bom seu texto. Mais uma vez, a sua "mineiridade" transparece azul e leve, entre suas palavras. Uma crônica de "peso"! Passeei pelas localidades que você descreve, sonhei com as intuições e maravilhei-me com seu estilo... sem redundância... personalíssimo!

Legal e muito bem escrita. Ficou linda... Concordo com tudo, que paisagem linda e... que belo encerramento de seu trabalho! Nós e BH adoramos receber você aqui. E viva o céu de Belo Horizonte! Muito poética e inspirada. Apaixonante! Pude até ver este "céu-mar" cristalino e o grupo de dança Corpo (que adoro) dando o seu show lá na terrinha! O seu pai já havia me ligado e falado sobre esta sua nova cria! Ele gostou muito e falou todo empolgado sobre a mesma. Valeu, Dário. O legal é "ver" Belo Horizonte através dos seus olhos, que, compreensivelmente, são bem mais românticos do que os nossos que vivem aqui. Um abração e boa semana.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Belos Horizontes



Depois de 34 horas de viagem, cheguei a Belo Horizonte à uma da manhã de sábado, dia 26 de junho. Era para ter batido à porta da casa de minha irmã Silvinha e cunhado José Côdo no dia anterior, onze horas antes. Os tempos mudaram. Com os aviões sempre cheios e as companhias aéreas cada vez mais falidas (por que será?), não se viaja mais sabendo ao certo quando ou como chegar a nosso destino. Desta vez estava para sair de Boston e deveria seguir até Nova Iorque e de lá partir para São Paulo, rumo a Belo Horizonte. Ao invés de fazer esse itinerário, minha rota foi vítima de tempestades de granizo que caíram na capital de Massachusetts e na Grande Maçã. Estas me empurraram para Atlanta, onde perdi uma conexão para São Paulo. Fui parar em Santiago, no Chile. Depois de vislumbrar os maravilhosos Andes cobertos de neve, me aborreci, no aeroporto, ao ver a péssima partida de futebol que fizeram Brasil e Portugal. Terminei a jornada ileso, e é isso que importa.
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Naquela noite, meus simpáticos e generosos anfitriões ainda estavam de pé e me aguardavam com uma bela sopa de feijão preparada pela Maria, talentosa cozinheira que trabalha aqui nesta casa há várias décadas. A conversa logo se fez animada e se estendeu até as três horas da madrugada. Nosso assunto principal era a cidade de Belo Horizonte, sobre a qual me incumbi de escrever um texto acadêmico para um livro a ser publicado na Suécia. Não sei se darei conta do recado, mas com certeza me vi em boa posição para iniciar a pesquisa ao trocar idéias àquelas estranhas horas. É que meu cunhado é um amante e profundo conhecedor da história dessa cidade, minha segunda cidade do coração, perdendo apenas para Paraguaçu, é claro.
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No desenrolar de nosso colóquio sobre a capital levantei a questão principal para a elaboração do meu ensaio: como é que uma cidade como Belo Horizonte se posiciona culturalmente diante de duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro? A capital de Minas Gerais, nós concordamos à mesa, não se anula sob o poder das duas cidades que dominam não apenas a região Sudeste, mas todo o país. Muito pelo contrário, Belo Horizonte não deixa de se afirmar como um pólo cultural de alcance regional, nacional e internacional, apesar de estar geograficamente tão próxima daqueles poderosos centros.
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Temos aqui uma cidade para onde convergem artistas de todo o estado e de vários países. Entre tantos outros nomes de expressão, destaca-se o Clube da Esquina, formado por músicos da estirpe de Milton Nascimento, Toninho Horta, Lô Borges e Beto Guedes. Sem falar no grupo Uakti, ícone global de excelência musical, por tradição e inovação: das composições clássicas ao folclore do Vale do Jequetinhonha e à vanguarda ainda sem rótulo. Entre nós se encontra, também, o berço do grupo de dança moderna Corpo e o do grupo de teatro Galpão, ambos com altíssima reputação mundo afora. Enquanto isso, o Instituto Inhotim continua sendo o maior museu de arte contemporânea a céu aberto do mundo, e a cidade realiza, anualmente em julho e agosto, o seu enorme Festival Internacional de Teatro, acompanhado de pelo menos dois festivais de jazz de alto calibre.
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Uma das conclusões a que chegamos sobre as origens dessa força cultural é a de que a Terra do Pão de Queijo só poderia ser assim porque é a capital de um estado gigantesco com uma identidade distinta, ao mesmo tempo variada e coesa. Pode-se viajar mais de 830 km a partir do centro do estado, onde está a cidade inaugurada em 1897, e ainda se permanecer dentro de Minas Gerais. A começar pelo seu gosto por sofisticado artesanato, renomada culinária, e todo um etos de “mineiridade” imortalizado por seus escritores e contadores de “causos”, a terceira maior região urbana do país, planejada no final do século XIX ao redor da antiga vila Curral del-Rei, é “uma roça que deu certo”, segundo Cristina, uma amiga belo-horizontina. Ao nosso redor reúnem-se as múltiplas, fascinantes e peculiares características das regiões que a circundam geograficamente. Há quem diga, aliás, que o perfil étnico de Minas torna esse estado uma espécie de microcosmo do Brasil, e talvez seja por isso que produtos culturais como discos, filmes e espetáculos musicais sejam primeiro testados e lançados em Belo Horizonte.
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Minha estadia nesta cidade me tem oferecido várias oportunidades para discutir todas essas questões com familiares, amigos, motoristas de táxi e outras pessoas que se interessaram pelo tema. O melhor mesmo, porém, é ter tempo para desfrutar da beleza dos seus horizontes tão belos em incansáveis caminhadas pelas ruas e ruelas do Parque Municipal, da região da Savassi e dos bairros Mangabeiras e Serra. Isso sem contar o frescor e o balanço das noites de chopadas e baladas em vários de seus milhares de bares, cafés, e danceterias, do Armazém do Árabe, à Obra e ao Paco Pigalle.
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É fácil dizermos e sentirmos que amamos essa cidade, e que não nos faltam motivos para muito orgulho, a todos nós mineiros, de qualquer canto do estado, mas principalmente a nós que temos a sorte de ver a lua nascer atrás da serra do Curral e regozijar sob as estrelas, sob nossa parcela do mar de Minas, aquele que para Rubem Alves, não é no mar. Portanto, o mar de Belo Horizonte é mesmo no céu. É um mar para o mundo “olhar pra cima e navegar sem nunca ter um porto pra chegar”.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Copas do Mundo


Minha irmã Silvana, uma das duas psicólogas da família, me diz que ela e eu temos uma característica em comum: um “eu comunitário”. Já ouviram falar? A gente sente pelos outros, às até antes deles próprios. Somos esponjinhas dos sentimentos alheios e, por extensão, dos sentimentos das massas, que podem ser bem mais que “90 milhões em ação, salve a seleção”. Parece incrível, mas a população do Brasil dobrou desde a Copa do Mundo de 1970. Essa a primeira a que assisti, por já ter idade, quase 11 anos, e por ter sido ela a primeira Copa do Mundo mostrada pela TV brasileira em tempo real! Nesses quarenta anos, vencemos três das dez Copas do Mundo que entraram para a história. Agora, na África do Sul, repte-se o drama: queremos a todo custo ser novamente campeões.


Não vi nenhuma estatística a respeito, por isso não sei qual é a parcela da humanidade que tem essa característica de personalidade, o tal “eu comunitário”. Não importa! Vocês todos que estão lendo esta crônica devem ter algo parecido, se por acaso ficam arrepiados ao ouvir o hino nacional na hora do jogo. Ou se sentem vontade de abraçar e pular com estranhos na hora de um gol do Brasil. O fato é que para quem tem um “eu comunitário” e também para quem não o tem, as Copas do Mundo separam épocas das nossas vidas e fincam profundas marcas tanto nas nossas mentes individuais como nas nossas lembranças familiares, comunitárias, ou nacionais.


Daquela minha primeira Copa, por exemplo, ficou a lembrança de dois tios. Um deles, Dagoberto Pereira, me fez entender como que as emoções de um jogo podem ser pesadas demais para certas pessoas. Ele ficava caminhando nas ruas do quarteirão em volta da nossa casa. A cada dez minutos voltava e perguntava o placar de Brasil x Inglaterra. Outro também muito querido e muito fanático por futebol (e pelo Corinthians em particular) era tio Delmo, quem, na época, tinha um braço e o peito engessados. Sofrera um sério acidente de carro poucos dias antes dos jogos. Apesar do seu sangue italiano, ele dizia, com convicção, a todos reunidos na Praça Oswaldo Costa (onde uma TV exibia os jogos em branco-e-preto): “o Brasil vai ganhar da Itália de 4 a 1”. Poucos acreditaram nele, mas tio Delmo estava certo. Com Pelé, Jairzinho, Tostão, Rivelino, Gerson, Clodoaldo, Carlos Alberto (quase só tinha craque aquele time), o Brasil daquele ano deixou saudades.


Para mim, individualmente, foi inesquecível um determinado momento da Copa do Mundo de 1982. Era a primeira Copa que eu assistiria no exterior. Os dormitórios da Universidade de Mankato, no estado de Minnesota, tinham poucas TVs a cabo, e nenhum dos canais disponíveis mostraria os primeiros jogos do Brasil. Angustiado, tive que apelar para o rádio, onde talvez eu conseguisse ouvir uma transmissão em ondas curtas. Pouco antes da hora do início da partida contra a Nova Zelândia (ou teria sido Austrália?), achei uma rádio que transmitiria o jogo direto da Espanha, mas em espanhol. Pensei: melhor isso do que nada. O coração já estava um pouco apaziguado depois da frustração que sentira ao saber que não haveria transmissão por TV, quando me veio a idéia de apanhar meu rádio portátil e toca-fitas Sony (ver foto acima) e levá-lo para fora do prédio onde eu morava no campus: quem sabe o chiado diminuiria.


Foi obra do Anjo da Guarda, ou minha estrela-guia, como diz minha mãe. Jamais esquecerei o trovão de alegria que me atingiu no momento em que encostei a antena do rádio na parede externa do dormitório e liguei o aparelho. As primeiras palavras que ouvi me comveram: “Sob o patrocínio do seu Conhaque de São João da Barra, passamos a falar diretamente da Espanha...” Que maravilha! Eu mal podia acredita, mas agora passava a ouvir a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em bom, dulcíssimo português. Os gringos que jogavam voleibol nas imediações logo acharam que havia um louco entre eles naquele dormitório, porque só mesmo um maluco ficaria tão ligado e tão próximo a um aparelho de rádio, nele colando o ouvido e, de vez quando, dele se soltando, aos berros, em puro êxtase!


Pois é, esse é apenas o começo de uma longa série de recordações associadas ao Campeonato Mundial de Futebol, que a cada quatro anos vem sedimentar nossos laços coletivos e aguçar nossas emoções mais exaltadas de gozo e sofrimento, aflição e contentamento! Espero voltar ao assunto em breve. Não faltarão “causos” para outras crônicas. Ao encerrar por hoje, vale repensar como é bom ser brasileiro nesses anos mágicos que se ressurgem ciclicamente, momentos em que fãs de todo o mundo reconhecem e temem nosso talento, nossa criatividade, e nossa forma alegre de jogar. Enquanto isso nós, participantes de todas as Copas, sonhamos e choramos atrás de mais um caneco de ouro.
Dário Borim Jr.

domingo, 23 de maio de 2010

Fé e amor no que se faz



Quem trabalha com arte tem seus privilégios. São muitas as maneiras de que podemos unir vida e criação, lembranças e emoções. Podemos levar nosso carinho às pessoas a quem amamos (e muitas vezes a quem sequer conhecemos), compartilhando, por exemplo, uma bela e comovente melodia, ou aquele poema atilado e justo para descrever o que nos parece inexplicável. É assim, pois, que enquanto programador e apresentador de rádio, eu tenho o prazer de dedicar canções.

Ocasionalmente reservo uma parcela de meu programa para oferecê-la a alguém em forma de tributo. Esse foi o caso de três semanas atrás, dia 29 de abril. A data era significativa. Precisamente 75 anos antes, portanto, em 29 de abril de 1935, um jovem de 12 anos caminhava bem vestido pela rua Aureliano Prado, em Paraguaçu, Minas Gerais. Uma jovem, que se recostava a uma janela de sua casa, viu aquele menino de terninho branco e estranhou-lhe o traje:
— Onde você vai assim tão bem vestido, Darinho?

O menino respondeu logo:
— Vou trabalhar pela primeira vez na vida. Hoje é meu primeiro dia lá na Casa Oriente, na loja do Sr. Luiz Almeida Prado.

Entusiasmado, aquele futuro “caixeirinho” ouviu doces palavras que o seguiriam para o resto da vida:
— Vai com Deus, Darinho. Eu aqui vou rezar um Ave-Maria para que você tenha muita sorte no trabalho e na vida!

Aquele Darinho deixou de ser Darinho alguns anos depois. Apesar disso, até hoje acontece de eu estar visitando os meus pais e atender ao telefone quando alguém me pergunta pelo Darinho (mas não sou eu). Aquele Darinho teve muita sorte, sim, além de muita visão comercial, muita garra e muita perseverança. Nasceu em um lar de parcos recursos materiais, tanto é que somente usava sapatos aos fins de semana antes de conseguir aquele primeiro emprego. Teve pouca escolaridade, mas mesmo assim foi capaz de “vencer na vida” como homem de família, empresário e líder comunitário.

Aquela edição do Brazilliance, meu programa de rádio, caiu exatamente no dia 29 de abril. Eu não poderia deixar por menos. Tratei de reunir discos que tivessem pelo menos algumas das “clássicas” canções que meu pai mais gostava de cantar ao longo dos anos em que nos reuníamos em volta do piano de minha irmã Silvana. O tributo começou com o disco Omaggio a Frederico e Giulietta, uma gravação ao vivo em San Marino, região não muito distante de onde veio parte da nossa família italiana, os Borins. Com sua suave voz Caetano Veloso interpreta “Ave-Maria” (composição de Erothides de Campos): “Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor / Despertando no meu coração a saudade do primeiro amor! / Um gemido se esvai lá no espaço, nesta hora de lenta agonia / Quando o sino saudoso murmura badaladas da ‘Ave-Maria'!”

Na seqüência veio o disco de Renato Motha e Patrícia Lobato, Antigas Cantigas. Entre tantas pérolas, escolhi “Bodas de prata” (Mário Rossi e Roberto Martins) e “Eu sonhei que tu estavas tão linda” (Lamartine Babo e Francisco Mattoso), cujos versos assim se fecham: “Violinos enchiam o ar de emoções / E de desejos uma centena de corações / Pra despertar teu ciúme, tentei flertar alguém / Mas tu não flertaste ninguém! / Olhavas só para mim / Vitórias de amor cantei / Mas foi tudo um sonho... acordei!”

As três canções que iniciaram a homenagem a Dário Borim também são algumas das prediletas de minha tia Vilia, irmã de meu pai, que costumava acompanhá-lo nas cantorias lá em casa. Houve ainda tempo para outra música bem conhecida e estimada pela geração de meus pais e tios, “Chão de Estrelas” (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa). Para tocá-la consegui nada menos que uma versão ao vivo de um de seus compositores, o renomado Sílvio Caldas. Para encerrar, vieram lembranças dos inúmeros carnavais do Ideal Clube, onde meu pai, enquanto presidente daquela associação por 17 anos, teve que permanecer sóbrio para lidar com os exagerados do álcool e do lança-perfume. Era a vez, então, de um clássico de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, “Um Pierrot apaixonado”, na voz de Maria Bethania.

Poucas horas após o final daquela edição especial do Brazilliance pude falar com meu pai ao telefone. Ele agradecia a homenagem e também me contava, com seu contagiante alento, que naquele dia tivera tempo para visitar a jovem que lhe desejara boa sorte em 29 de abril de 1935. Em plena consciência, a sra. Otília Gonçalves o recebeu em casa, fazendo tricô. Ela, na casa dos 90, e ele, bem perto de lá, confirmavam sutilmente a noção de que a vida pode ser longa e compensatória para quem tem fé e amor no que faz.

domingo, 11 de abril de 2010

Esses avoados Borins



Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Batista, Alex, Geraldo, Henrique, DB, Tatau e Delson -- Turma da Eterna Saideira
Hoje não tem papo de Clarice Lispector nem Machado de Assis. Meu irmão, o Tatau, já me falou que gosta mesmo é das minhas crônicas sem muito laralará intelectual. Quem sabe esta sai do jeito que engenheiro gosta. Vou falar de gente que passa apertado de vez em quando simplesmente porque tem o perigoso hábito de fazer uma coisa pensando “profundamente” em outra(s). Não ajuda, é claro, quando o indivíduo passa por uma fase de muito estresse, muito trabalho e reduzidas horas de sono. Eu sou um desses “infelizes”. Aliás, dizem que é um problema de família, os Borins. Não quero julgar e condenar em público a lerdeza dos meus irmãos ou colocar a culpa nos nossos progenitores. Porém, não nego o boato: “alguns desses Borins são muito avoados!”
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Pra ser mais justo, acho que é sensato dizer que todas as pessoas têm os seus momentos de lerdeza, não é? Às vezes as anedotas não passam de invenções das más línguas. Por isso não sei se é verdade, mas já ouvi falar, por exemplo, algo sobre uma de minhas irmãs (não digo o nome para protegê-la da mentira que pode haver por trás desse “causo”). Ela partiu e chegou ao aeroporto de Confins com dinheiro e documentos, sim, mas tinha deixado em casa a única mala que deveria levar consigo.

É mole? Claro que não. Mas vocês ainda não viram nada. E como essa crônica ainda não apareceu publicada em jornal, vale tudo por aqui, até a interação de leitores e leitoras. Duas delas acabaram fazendo comentários que merecem intromissão intertextual numa narrativa que já está ficando muito pós-moderna para o meu gosto. A questão é que depois de ler a versão inicial deste texto, crônica que gerou 25 comentários publicados online em dois dias, minha irmã Silvinha me mandou um email querendo saber da tal irmã que foi para o aeroporto sem mala:

— Quem será? Ainda bem que não fui eu, porque EU fui a Lavras, de carro, só que esqueci a mala em BH. Ela, a mala, chegou de ônibus. Normal. É só uma questão de logística, como diz o mano Joseph [o vulgo Tatau].

Normal? Isso não é nem o único engenheiro entre nós. Por exemplo, Tatau achava, na época da ditadura militar, que muitas placas que víamos nas estradas indicavam a existência de mais uma companhia estatal, a EM-OBRAS. Uau! Por alguns anos ele se referia à avenida Álvares Cabral, no centro de BH, como se fosse avenida “A Cabral”, questionando quem era essa moça famosa, porque a placa dizia apenas “Av. A. Cabral”. Será que o ponto estava apagado? Fazia diferença para o engenheiro?

Que normalidade é essa da nossa família se anteontem chegou uma mensagem eletrônica da minha afilhada Cristina, filha da avoada que “viajou” sem mala para dar aulas na Universidade Federal de Lavras. E eles em Lavras aceitam professora de BH sem mala? Preparem-se, meus caros, porque isso que diz a Cristina não é ficção mineira não, como suspeitou com humor o distinto crítico literário e poeta Charles Perrone, através de uma recente mensagem publicada no FaceBook. Minha sobrinha não se segura:

— Hihiii, mas temos casos demais para contar! Tem aquela do vovô que foi consultar em Alfenas, mas a consulta era em Varginha. Tem a minha: eu estava aguardando minha hora num consultório de acupuntura quando deveria mesmo ter ido a um consultório de gastroenterologia!

Vejam que a própria sobrinha não escapa da carga genética que atravessa gerações. Houve época em que ela freqüentava assiduamente a casa dos meus pais em Paraguaçu, por isso pode contar mais dois causos que a maioria da família ainda ignora:

— A vovó chamou a polícia por causa de um barulho muito alto de música que chegava no seu quarto de dormir. Na verdade o som vinha do rádio-relógio dela! Essa agora para mim é uma das melhores. O funcionário da loja do vovô, Afonso, teve que ir à casa do vovô às pressas para desligar o micro-ondas, porque programaram a máquina para 4 horas de ação e ninguém na casa sabia como desligar! Eh... Borinzada danada!

Eu digo tudo isso sobre minha família antes de confessar: eu provavelmente sou o pior de todos. Vamos viajar cronologicamente, então, e visualizar este cronista em dois de seus momentos de maior apuro ou embaraço. O primeiro foi lá pelo ano da graça de 1985. Eu ensinava num cursinho de inglês de Belo Horizonte, o MAI, e, infelizmente para aquele jovem de 26 anos, tinha que dar aulas aos sábados de manhã. Certa vez eu saí de casa atrasado, mas, como morava na av. Francisco Salles, podia chegar ao trabalho, usando meu Chevette marrom, numa questão de quatro ou cinco minutos.
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Nesse tal dia pulei logo da cama quando percebi que tinha perdido a hora. A culpa certamente era da falsa “saideira”, a boêmia e inocente garrafa de cerveja que era logo seguida de outra “saideira” e, depois, muitas outras, consumidas sob o mesmo rótulo de “saideira”. Na Casa do Kibe, a “metragem” de garrafas em linha sobre a mesa crescia quase ad infinitum, até que já era tarde demais para quem tinha que trabalhar cedo no dia seguinte.

Quando, naquela nefasta manhã, eu passava em frente ao Colégio Arnaldo, senti que o motor do carro perdia força rapidamente. De fato, veio a morrer em questão de segundos. O bom é que o sinal estava verde e passei por ele no embalo — podendo, graças a Deus, chegar ao MAI, na av. Brasil, naquele mesmo sopro de cilindros em seca, também de ressaca! Eu tinha me esquecido de pôr gasolina, é claro, e agora o tanque me dava dor de cabeça, pois tinha “desidratado”. O santo foi forte, não é, e me empurrou até meu destino. Só que meu santo se esqueceu de me avisar: bobagem pentear o cabelo ou escovar os dentes se não dava tempo, mas era preciso ter trocado de roupa, uai! Quando eu entrava no prédio foi que me dei conta: ainda estava de pijamas.

Passaram-se 25 anos e o “desligado” sr. Dário Borim Jr teve lá seus outros problemas, mas o espaço aqui é curto. Então, pulemos no escorregador do tempo até a quinta-feira passada. Eu tinha que devolver à Central de Polícia da Universidade de Massachusetts Dartmouth a chave da WUMD, estação de rádio onde faço o Brazilliance, meu programa semanal de música luso-brasileira. O colega radialista David Nader, apresentador do show Mediterranean Café, que vinha logo depois do meu, estava na Espanha. A entrega da chave era coisa muito importante e fora da minha rotina, por isso representava um risco para um homem “desligado”. Para eu não ir para casa sem antes deixar a chave na policia, fiquei com a dita-cuja na mão esquerda o tempo todo. Essa era minha estratégia para um desmiolado não dar vexame!

Cheguei bonitinho ao meu carro, um velho Kia Sephia verde, com a chave da rádio na mão, e logo me dirigi para onde deveria. Quando eu estacionava em frente ao prédio da policia, passou no seu carro um técnico de futebol, Gene Bergerson, meu amigo. Ele parou por um instante e perguntou sobre o meu filho Ian. Fiquei pensando no menino por uns instantes e conversando com o Gene. Enquanto isso eu fechava a porta do meu carro sem perceber que, daquele jeito, eu estava trancando a danadinha. Ainda agi como desligado mais uma vez, trancando em seguida a porta de trás do motorista.

Caminhei até a polícia, e somente quando voltei foi que vi que tinha trancado o carro inteiro, mas a chave continuava na ignição e, o motor, ligado! Minutos mais tarde o policial de plantão me informou que não podia me ajudar. Era contra o regulamento! Então liguei para o serviço AAA, de auxilio a motoristas. Chegariam em 30 minutos, por se tratar de um caso de emergência: “motor ligado!” Senão, levariam 50 minutos para aparecer! Huh! Não fiquei contente, e vi que uma janela estava com dois cm de abertura. Fui para o lote da polícia, sem qualquer permissão dos bacanas. Procurei e achei um tubo metálico de 2 metros e tal, que talvez desse para abrir a tranca da porta do outro lado do carro. Mas que diabo, eu não conseguia finalizar o “arrombamento” do meu próprio carro porque o tubo era pesado e chegava a menos de um centímetro da tranca, sem poder movê-la.

Bem, aí vi uns cinco rapazes alegres caminhando em minha direção. Com toda a humildade contei-lhes meu “causo” de homem avoado e pedi-lhes ajuda. Minha falta de orgulho-próprio foi recompensada. Um deles tinha os dedos mais fortes que os meus e conseguiu levar o tubo mais a frente um pouquinho e abrir a tranca. Lição final: com jeitinho e santo forte, não há cabeça avoada sem proteção. Bem, eu já ia esquecendo. (Estou sempre esquecendo algo!) Cuidado: tem nó que nem pai de santo desata. Por exemplo, é melhor tirar os pijamas antes de ir trabalhar.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sopros de vida

Sopros de vida 

Mais um fim de mês vem chegando. Uma amiga de Belo Horizonte, leitora assídua deste blog, já me havia escrito um email reclamando mais uma crônica. Escritor vive disso – não é? – da impressão de fazer alguma diferença na vida de alguém. Podemos não chegar a tanto, mas sonhamos com a pequena importância que pode ter o nosso gesto criativo, nossas horas de reflexão e diálogo conosco mesmos, que desejamos estender a todos que por eles se interessem – tanto o leitor conhecido quanto o desconhecido, o real ou aquele apenas sonhado. 

Enquanto questiono qual tema devo, aqui, abordar, um livro não me sai da cabeça: Why This World, de Benjamin Moser. Lançado para o mundo de língua inglesa pela Oxford UP, a obra foi traduzida para o português por José Geraldo Couto e publicada no Brasil pela Cosac Naify com um título que inclui uma vírgula matreira, Clarice,. Esse maravilhoso misto de biografia e análise literária anda mesmo presente no meu cotidiano desde o momento em que o apanhei na estante de uma livraria em Providence, Rhode Island. 

É sobre algo em torno desse livro que hoje quero refletir, embora não me sinta plenamente preparado. É que receio que não se possa falar bem, no espaço de uma crônica, de uma vasta e questionadora obra como aquela, de uma vida tão interessante e chocante como a de Clarice Lispector, de uma ficção tão complexa e intrigante como a que ela nos deixou ao falecer aos 57 anos de idade, e muito menos da brilhante análise e exposição que Moser faz das relações entre a arte de vanguarda genial e o drama pessoal de uma artista imortal. Aceito, entretanto, o desafio de instigar a imaginação do leitor com alusões à experiência surpreendente que foi me aproximar da mente e da criação de uma das escritoras que mais me fascinam. 

Não há como escolher o ponto certo para o início dessa jornada que me proponho. As referências de Moser ao primeiro romance de Clarice, Perto do coração selvagem, por exemplo, me surgem quase aleatoriamente. Fazem-me recordar que essa também foi a primeira obra que li da romancista judia que imigrou da Ucrânia para o Brasil antes de completar um ano de idade. Em 1942, ano anterior ao seu casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, seu colega de faculdade de direito, a escritora de apenas 21 anos elaborava naquele romance um profundo questionamento das possíveis dificuldades da vida matrimonial: a perda da privacidade, o peso da cumplicidade, a restrição da liberdade, e, talvez, ainda mais atemorizante, a definição de um destino certo, previsível, e acético para a mulher, principalmente se esse destino era o de exemplar esposa do lar. O casamento da autora duraria 16 anos. Quando o ex-marido lhe escreveu uma carta buscando reconciliação, utilizou-se exatamente das duas protagonistas de Perto do coração selvagem, Joana e Lídia, para expressar sua forma de ver o comportamento da autora/ex-esposa, uma mulher claramente atormentada pelo medo de amar, por depressão, e por uma desesperadora saudade do Brasil, país que nunca lhe saía da mente, onde quer que fosse – Itália, Suíça, ou Estados Unidos. 

As relações entre a vida e a arte dos artistas são assuntos que há anos me fazem ponderar o preço da fama. Nos últimos 12 meses minhas dúvidas se avolumaram ao ler sobre Vinicius de Moraes, Gibran Kahlil Gibran, D. H. Lawrence, Machado de Assis e Graham Greene, entre outros. O que me parece especialmente revelador e inusitado no caso de Clarice Lispector é que a autora pareceu viver uma vida em que a própria experiência empírica continha fortíssimos elementos da ficção que ela ia criando ao longo de três décadas. Era como se a escrita determinasse os caminhos da autora pelo mundo afora, desde o primeiro romance até os dois últimos. Em um destes, a pseudo-autora/narradora quer morrer, como ela própria, Clarice, parece ter desejado também, apesar do sucesso financeiro das vendas e o valor simbólico da glória no seu último ano de vida, 1977. Aquele novo momento de luz – repetindo a celebridade efêmera que lhe chegara após o lançamento do romance de estréia, 33 anos antes — talvez a fizesse se sentir um tanto redimida da ansiedade e da frustração acumuladas em longos períodos de sua carreira profissional. 
 
Ao final da vida Clarice Lispector havia desenvolvido grande cinismo diante do poder da própria literatura. Pensava que com ela, com a sua obra, não salvaria ninguém. Na melhor das hipóteses, poderia salvar a si mesma. Ela escrevia por sentir necessidade visceral de fazê-lo, forma irrecusável e insubstituível de se sustentar emocionalmente. Quando já não mais podia contar com o salário do marido, depois da separação, em 1959, a literatura também passou a constituir seu único ganha-pão, profissão esta que, em certa medida, desejou abandonar. Em Um sopro de vida há uma personagem-escritora cansada de escrever e de viver. Por isso desejava fazer com que uma de suas personagens, Ângela Pralini, morresse de câncer. Pois, assim, a vida da autora, Clarice Lispector, seguiu a arte da autora dentro da arte. Clarice posteriormente contraiu um câncer nos ovários, como se eles estivessem secos, como os de Macabéa, a protagonista de A hora da estrela (uma nordestina, como ela própria se sentia, por ter nascido e vivido até os 15 anos no Recife). 

Uma das lições de vida que me passa a obra de Moser (e a literatura de Clarice Lispector, naturalmente) é que nos tornamos muito vulneráveis ao colocar toda a nossa fortuna, por maior ou menor que seja ela, numa ficha só. Assim aconteceu ao protagonista de Scott Fitzgerald, no seu festejado romance O grande Gatsby, para quem o amor desenfreado por Daisy o separou do real e do plausível. Quando apostamos tudo o que temos numa única fonte de seiva, tal como uma determinada pessoa ou uma determinada ocupação, e esse sopro de vida absoluto se esvai, o vazio poderá não nos deixar crer em outra razão de viver. Viver, assim, sem razão, é um inóspito sofrer, é meio caminho à morte. Paradoxal como sua própria obra, Clarice trilhou esse meio caminho, mas resistiu como pôde à outra metade. Até as últimas horas de sua sofrida existência, quando já se encontrava sedada, ela não parou de escrever, ditando suas últimas palavras a Olga Borelli, uma fã de sua literatura que se tornou sua amiga, editora, governanta e, praticamente, figura-de-mãe-adotiva. 

Era como se Clarice Lispector agora escrevesse as últimas linhas de seu último romance, o romance de toda uma vida. Depois de uma severa hemorragia, ela sabia do seu iminente fim naquela na manhã de nove de dezembro. Levantou-se da cama, quis fugir do hospital e, irritando-se com a enfermeira que a tentava deter ali mesmo, derramou sua cólera: “Você matou minha personagem” (Moser 383). Esse longo e belo relato da existência e legado da maior estrela da literatura brasileira do século XX se encerra, apropriadamente, evocando as palavras do jornalista Paulo Francis: “Ela se tornou sua própria ficção” (Moser 383).

domingo, 31 de janeiro de 2010

Yumi Faraci

Yumi Faraci em Dartmouth, Massachusetts Junho 2009 Gostaria que minhas cinzas Fossem jogadas no ar, Do alto de uma montanha e no mar. Quando sentirem saudades minhas, Respirem, estou presente no ar. Quando sentirem saudades minhas, Mergulhem, estou presente no mar. Estou presente no mundo, Estou presente no coração De cada um de vocês... --Yumi Faraci Não há palavras para descrever a dor de se perder um filho. É o que dizem por aí os que o sabem por experiência própria. Não tive e espero não ter que passar por isso, mas é o que imagino ser a verdade nua e crua do que parece ser, mas não é, pura estupidez e crueldade do destino. Em dois momentos da minha vida já estive muito perto e sensível a tal dor. Em 21 de junho de 2001 meus pais perderam sua linda filha caçula, Ana Beatriz, quando ela tinha apenas 36 anos. Não fui e não sou capaz de me ver naquela desconcertante condição de pungente amargura e quase desesperação que marcaram as vidas de seres a quem tanto amo. Agora, um mês atrás, o destino ceifou a vida de mais um belo ser, Yumi Faraci. Filha única, de apenas 18 anos de idade, ela era muito querida pelos seus pais, meus grandes amigos Geraldo Faraci e Sônia Imanishi Faraci, e por toda a enorme e zelosa família mineira dos avós paternos, e toda a tradicional e solicita família japonesa dos avós maternos. Yumi faleceu em meio a uma sequência de eventos trágicos que afetaram a muitas pessoas no sul e sudeste do Brasil entre os meses de dezembro e janeiro: enchentes, deslizamentos de terra e desabamentos em larga escala. Como eu me encontrava no Brasil nesse período, pude fazer companhia e levar meus abraços a Geraldo e Sônia em três ocasiões em que se fizeram tributos à curta, mas definitivamente encantadora, vida de sua filha. Em todos eles, preferiu-se ver e salientar a beleza de uma vida ao invés de apenas se lamentar seu fim. Yumi e seus pais estiveram aqui em casa em junho de 2009, quando ela recebia deles um prêmio por ter passado no vestibular. Era a sonhada viagem aos Estados Unidos para assistir a um concerto de sua banda favorita, a Coldplay. Numa das noites que passaram conosco em Dartmouth, Yumi e meu filho Ian fizeram um dueto de violões. Foram instantes mágicos, em que o olhar penetrante daquela jovem cantora e a voz um pouco rouca e muito adocicada daquela futura estudante de arquitetura nos deixaram enternecidos, com uma pré-saudade de uma ocasião tão especial para nós todos ali reunidos. Para Yumi, música era uma paixão quase sem rival, por isso lhe fiz tributo dez dias atrás em meu programa de rádio e internet, o Brazilliance, ao tocar alegres gravações de Lisa Ono, outra talentosa nissei. Lembrei-me então de histórias que seus pais me contaram: a magia de sua filha ao cantar para seus familiares japoneses, quando os três visitavam o Oriente. Ela mesma me passou, sorrindo com um pouquinho de orgulho contido, os detalhes do dia em que tocou violão numa estação de metrô em Londres. Para sua surpresa, moedas da valiosa libra esterlina começaram a cair no estojo de seu instrumento. Yumi, aliás, não apenas tocava. Também compunha canções em inglês e japonês, além de português. A jovem Yumi, inspirada poeta, exímia nadadora e precoce faixa-preta de judô, tinha de fato invejável senso de humor e contagiante otimismo, mas também dedicava tempo a questionamentos sérios, até mesmo aos mistérios da vida e da morte. Por isso ficaram conhecidos seus desejos para quando fosse ela chamada aos céus. Queria ser cremada e que suas cinzas tivessem três destinos específicos: que fossem espalhadas pelas montanhas de Minas (como as da serra da Moeda, de sua declarada escolha); o mar de Ilha Grande e Angra dos Reis (por onde passara quase toda a vida); e a casa centenária de seus antepassados no Japão (cuja cultura milenar ela sempre amou). No dia 9 de janeiro passado tive a chance de assistir à cerimônia em que suas cinzas eram preparadas para descerem de uma asa-delta branca. Em tarde ensolarada e transparente, esta partiria em longo e ritmado vôo, abaixo e sobre nossas cabeças, tudo sob os acordes compostos e gravados pela própria Yumi. A comoção e deslumbramento dos presentes diante da delicadeza daquela homenagem eram evidentes. Para isso contribuíram algumas das cenas naturais mais belas de Minas Gerais, ou mesmo de todo o Brasil, as vastas vistas verdejantes de um pico da serra da Moeda, junto ao restaurante Topo do Mundo. O sorriso, a simpatia, o talento e o amor de Yumi pela família, pelos pais, pelos amigos e pela vida não voltam mais. Não voltam porque nunca estarão afastados daqueles que a conheceram e que preferem pensar na grande honra e prazer de tê-la conhecido. De ter com ela convivido e aprendido sobre a arte de viver em plena graça e contentamento. O destino não lhe foi cruel nem tampouco sem sentido. Proporcionou-lhe a oportunidade de trazer uma pletora de luz e carinho a todos nós que a conhecemos, um benévolo alento de fé na espécie humana de que jamais esqueceremos.

Prazeres, Riscos e Danos

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