As formas das pessoas se comunicarem mudaram radicalmente nos últimos anos. Houve o tempo de se usar o serviço de correio via lombo de burro para se enviar notícias. Que transformação passou a humanidade entre aqueles dias imemoráveis e perdidos na história e os atuais, quando pelo sistema Skype, por exemplo, as pessoas separadas por rios e mares se falam e se vêem na tela de computador, ou até mesmo no visor de um telefone!
O telégrafo e as locomotivas trouxeram novo impulso à velocidade das comunicações interpessoais. Mais tarde, os automóveis e os aviões, também. Com o desenvolvimento da eletrônica, porém, a revolução foi radical. Primeiro vieram os satélites, mas as chamadas telefônicas eram muito caras. Depois passamos a trocar longas “cartas” por meio de fitas cassetes. Filhos e pais, namorados e amigos do peito, agora podiam contar longos casos, compartilhar de música e poesia, e enviar essas gravações por meio de um serviço postal que podia levar entre dois dias e duas semanas. Tomava um tempo, mas a comunicação chegava, levando a voz dos entes queridos, as emoções e muita “vida” que assim se fazia possível entre amantes, amigos e parentes afastados fisicamente.
Eu sempre gostei de escrever e receber cartas. Até sonhava com elas, e acabei virando colecionador de selos postais. Antes de completar 14 anos já tinha correspondentes internacionais (na Argentina, Canadá, Colômbia, Grécia, entre outros países), e me deliciava com o privilégio de praticar o inglês e o espanhol e ainda aprender sobre aquelas culturas via correio. Tanto gostava de me corresponder por cartas que guardo na casa de meus pais, até hoje, um acervo de mais de 500 correspondências. Que mundo e que vida estão lá preservados! Em meio a elas também possuo varias dezenas daquelas tais fitas-cartas, inclusive valiosas gravações feitas por meus pais a partir do dia em que eu vim estudar e trabalhar nos Estados Unidos, em março de 1981. Não havia limite para o quê, como ou quando gravar uma carta-cassete, já que os gravadores portáteis podiam nos acompanhar a qualquer lugar. Lembro-me de ter feito gravações daquele tipo até enquanto caminhava pelas ruas, curtia uma festa, ou me encontrava com amigos num bar.
Hoje, em plena era do e-mail, das comunidades virtuais como o Orkut e o FaceBook, e das ligações baratas ou gratuitas entre pessoas morando em regiões tão distantes do planeta, acabo de receber uma mensagem de um modo bem antigo, certamente o meio de comunicação mais ancestral de toda a história da humanidade: o boca-a-boca. Aquele recado foi de outro modo ainda mais significante, um tipo de mensagem que eu jamais recebera. Aconteceu na segunda-feira passada na biblioteca central da Universidade de Massachusetts Dartmouth, onde trabalho há 11 anos.
Antônio, um senhor de meia-idade, me procurou após assistirmos a uma palestra de Salwa Castelo-Branco sobre a história da música portuguesa do século XX. Perguntou-me o nome. Quando soube quem eu era, disse que estava muito satisfeito por me ter encontrado. Trazia uma mensagem, mas talvez eu não me lembrasse mais da pessoa que a enviara. Quando Antônio mencionou o nome de seu irmão, Luís, tive a forte sensação de que eu sabia quem era o tal Luís, apesar de eu não ter recebido ainda nenhuma indicação de quem se tratava. Eu estava certo.
Antônio disse-me que seu irmão, Luís Cabral, pediu-lhe para me dizer, quando me encontrasse, que ele, Luís, tinha gostado muito de ouvir o Brazilliance, meu programa de rádio. Confirmada a minha suspeita de que tal Luís era o mesmo que eu imaginara, imediatamente disse a Antônio que eu também tinha ótimas lembranças daquele ouvinte assíduo, tão interessado em música brasileira, portuguesa e luso-africana, e tão gentil ao ponto de me escrever emails após cada programa, comentando o repertório tocado naquela quinta-feira ou sugerindo novos títulos para o programa da semana seguinte. Eu que nunca encontrei Luís pessoalmente tinha agora a oportunidade de saber mais sobre aquele ouvinte leal, de quem eu não recebia mais emails desde 2004.
Antônio narrou um pouco da história do irmão. Sua voz já se encontrava alterada, mais suave e emotiva. Disse que não queria reclamar da vida ou do destino, mas isso era difícil, pois seu irmão falecera em julho passado, aos 65 anos de idade. Formara-se engenheiro com a primeira turma graduada no novo campus da nossa universidade. Amava música. Tocava violão e violoncelo. Participou de uma banda de jazz por aqui, na região de Rhode Island, e depois na Carolina do Norte, onde foi morar por ordem da marinha, para a qual trabalhava. Na marinha ele chegou a tocar numa orquestra sinfônica e até a dar aulas de violoncelo.
Quando Luís mudou-se para a Carolina fez questão de comprar uma casa próxima a um hospital, pois sua esposa era diabética e passava por crises de saúde bem amiúde. Mal sabia ele que nesse hospital ele passaria muito mais tempo do que ela. Antônio disse-me que seu irmão era cheio de vida, cheio de entusiasmo e amor pela música, mas que seu fim foi muito rápido. Um câncer no intestino ceifou-lhe a vida apenas noves meses após os primeiros sintomas.
Aquela conversa de dez minutos não me saiu da mente até hoje. Ainda me pergunto muitas coisas depois de receber aquela mensagem de um ser que já tinha partido desse mundo. Senti um misto de prazer e dor naquela hora, o que se repete neste momento. Fiquei tão honrado por receber tal recado quanto incomodado pelo fato de não mais possuir suas mensagens eletrônicas e, pior, não ter feito nada para me encontrar com aquele ouvinte-amigo. Ficou-me mais uma lição sobre a fragilidade da vida humana e da necessidade de não deixarmos para amanhã a chance de conhecer alguém que cruza nosso caminho e tem afinidade com nossa alma, com nosso modo de encarar e desfrutar dessa existência tão bela, por várias razões, mas também tão surpreendente, porque tão sinistramente injusta e passageira.