quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Peixe fora d’água


“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, diz Chico Buarque de Holanda em “Roda-viva”. Cruz-credo – ainda não cheguei lá não, mas confesso: tem dias que eu me sinto feito peixe for a d’água, isso sim. É o que me acontece aqui onde moro de vez em quando, apesar de eu já ter passado nos Estados Unidos 21 dos meus 51 anos de vida. O engraçado é que em certos momentos minha condição de brasileiro não é bem o que me traz conflito diante da minha própria família com três americanos (fora o gigante peludo Sam, nosso adorável golden-retriever). É outra, então, a origem da minha sensação de gauche em Massachusetts. Aliás, era esse,  gauche, o termo que Carlos Drummond de Andrade, um filho de Itabira instalado num prédio de apartamentos no Rio de Janeiro, aplicou a si mesmo: era um gauche enquanto “fazendeiro do ar”.
Na verdade, papo de migrante ou imigrante não assumido não é meu assunto hoje. Quero falar de um peixe de verdade, que fora d’água foi cair nas mãos da única pessoa que gosta de peixe na minha casa: o autor dessas mal traçadas linhas. Antes de pôr a mão na massa e contar a história de um real peixe vivo que não conseguiu viver fora d’água fria (viva Jucelino Kubitscheck), preciso fazer justiça a minha admiração pela cidade onde moro. Em função da natureza viva e embreada no meio e nas margens de South Dartmouth, digo que esta é a cidade mais linda em que já morei. As suas enormes e frondosas árvores de verde pomposo no verão e multicoloridas a cada outono, os seus jardins bem cuidados e aromatizantes até a alma – e, principalmente, as águas transparentes do mar e da belíssima baía repleta de barcos a vela a apenas quatro quadras desta casa – não dão chances às inúmeras concorrentes, cidades em que morei no Brasil ou nos Estados Unidos. 
Naquele sentido, sou peixe muito bem ajustado a sua água, pois de sobra tenho ainda as estrelas como companheiras de vida. É que por causa da crise financeira de 2008 a prefeitura desligou muitos dos holofotes públicos. Há anos nossas ruas se vestem de um mesmo breu que a todos nos envolve, oferecendo-nos as estrelas e a lua de plantão mensal como excelentes alternativas à claridade cara e artificial que antes vinha dos postes de madeira.
Há quase dois anos, quando resolvi encerrar um longo período de negligência para com minha saúde e aparência, tornei-me um andarilho urbano.Essa formosura de cidade à beira-mar muito contribuiu para que eu adquirisse o hábito de fazer diariamente longas caminhadas por suas ruas e por sua orla marítima. Numa dessas “viagens” noturnas, ao embalo da melhor MPB que possuo, eu passava pela nossa ponte giratória sobre a baía, quando um dos pescadores me abordou. Pensei que queria brincar ou fazer carinho no Sam, minha companhia assídua. Não. O tal rapaz, de forte sotaque hispano, muito generosamente me perguntou se eu gostava de peixe. Logo me ofereceu um blue fish de um quilo e meio que ainda se mexia sobre o passeio de concreto, aos seus pés:
— É seu então. Só precisa de um saquinho para levá-lo.
Olhei para os lados e vi um saquinho plástico sendo tocado pelo vento sobre a pista de rodagem. Corri e o apanhei. Agradeci ao jovem pescador porto-riquenho (Juan é seu nome, disse-me ele), e passei a matutar: o que fazer com esse peixe numa casa onde todos os seres (menos o Sam) detestam peixe? Pior, eles nem toleram cheiro de peixe!
O jeitinho brasileiro tinha que funcionar. Logo pensei nos três sacos de gelo que havia no congelador. Tinham sido comprados em preparação aos possíveis apuros de um furacão que nos ameaçou, mas se esquivou, dois meses atrás. Eu deixaria o peixe do lado de fora da casa. Eu entraria na cozinha em silêncio e pegaria os sacos de gelo e uma caixa plástica. O peixe e o olfato dos ultra-sensíveis co-habitantes estariam protegidos até a manhã seguinte, quando os gringos da casa estariam na escola e o mestre-cuca mineiro transformaria aquele blue fish em belo risoto para um solitário almoço. Diga-se de passagem que Ann, Ian e Zach não almoçam em casa. Eu teria tempo para grelhar e comer meu peixe sem deixar o ar da cozinha impregnado daqueles cheiros deliciosos que só a mim me apetecem nesse lar bi-cultural.
Deu tudo certo, pensei. Desfrutei do sabor extra especial de um peixe retirado daquelas águas azuis pelas quais passeio todos os dias. Que luxo! Tive uma sensação de plenitude, de interação completa ao meu meio-ambiente, como um bom peixe em águas cristalinas. Qual foi minha surpresa e decepção, entretanto, ao voltar para casa à hora do jantar! Fui logo lavar umas panelas e ouvi de Ann, que estava em pé logo atrás de mim, a pergunta que denunciou o fracasso parcial da minha missão:
— Você comeu peixe hoje?
Ra-ra-ra’, diria o colunista da Folha, José Simão. Eu ri, meio sem jeito, mas ri sim. Só pude perguntar a ela se foi o cheiro da panela já lavada há muitas horas que de alguma estranha forma... “me entregou”. Ela riu também, disse um “talvez” amarelo, mas não reclamou.
Algumas pessoas para quem já contei esse “causo” me disseram:
— E por que você não manda esse pessoal às favas?
Sou mineiro, uai, e bem diplomático. Prefiro continuar cozinhando em surdina e reservar as favas para quando eu não puder mesmo comer meu peixe, ou para quando eu me sentir, mais dolentemente, um peixe fora d’água.


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