quarta-feira, 27 de julho de 2011

O espírito americano


O espírito americano

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Países extensos como os nossos, Brasil e Estados Unidos, oferecem-nos o mito dos campos abertos, das matas sem fim, e das estradas que não acabam mais. Parece que fica mais fácil sonhar com longas viagens em que veremos o desconhecido por infindáveis dias, semanas, ou até meses. Sonhar é uma coisa. Pegar no volante ou colar o traseiro num banco de passageiro por muitas horas, dia após dia, é outra. Chamo isto de espírito americano porque vejo mais desse fenômeno por aqui, ao norte do equador, do que aí, do Oiapoque ao Arroio Chuí.
Engraçado: será que o fenômeno é genético ou cultural? É que mês e meio atrás meu filho mais velho pôs em prática aquele espírito americano. Sei que Ian é filho de gente que gosta de estrada, gente que já mudou de casa, cidade, estado e país muitas vezes (sete vezes entre 1995 e 2001, por exemplo). Mas sendo ele filho de homem brasileiro e mulher americana, e tendo ele vivido tanto na América do Sul quanto na América do Norte, torna-se difícil atribuir a origem de tal espírito exclusivamente aos seus genes ou aos seus diferentes ambientes de criação.
O fato é que o rapaz convidou-me para acompanhá-lo numa longa viagem de carro até Manchester, uma cidade no estado do Tennessee, situada a 1.700 quilômetros de onde moramos, Dartmouth, Massachusetts. Haveria o famoso Bonnaroo Festival. Eu estava bem disposto a fazer-lhe companhia e desfrutar de um belo festival de música pop de quatro dias e quatro noites. Muita gente boa subiria ao palco, inclusive o canadense Neil Young. Por conta de um inevitável compromisso junto à universidade naqueles dias, não pude aceitar o convite. Ele não se intimidou,
“Problema não, pai. Vou sozinho.”
Com certeza não havia nem como tentar despersuadi-lo. Ele mesmo já tinha comprado ingressos que não eram nada baratos. Sobretudo, sabíamos muito bem como sua personalidade é muito forte e sua determinação (pra não dizer teimosia) era conhecida desde os tempos em que ele nem sabia falar direito o inglês ou o português. Naquela época em que ele e eu passeávamos de mãos dadas pelas ruas de Minneapolis, o danadinho já queria me mostrar em que ruas e em que direção nós deveríamos seguir. Sem exagero, aos dois anos e meio de idade o rapazinho já queria decidir o que seus pais deveriam comer quando íamos os três a um McDonald’s.
Então o que podíamos fazer, fizemos. Dono de um belo, mas velho carro, um Volvo verde 1999, Ian estaria mais seguro se viajasse na nossa van, a Entourage, da Hyundai, feita para sete passageiros. Com os bancos de trás embutidos, ele poderia dormir cinco noites muito bem utilizando um sleeping bag. O jovem prometeu que nos mandaria pelo menos dois torpedos diários. Assim o fez, e deu tudo certo. Seis dias depois de partir, cá estava de volta à casa. Aliviados e orgulhosos de sua bravura e sucesso, nós o recebemos repleto de sorrisos e de histórias.
Pais de filho-peixe, peixes também os são, não é? Chegou a nossa hora: Ann e eu, mais o nosso cão gigante, Sam, faríamos uma viagem de carro até Duluth, no estado de Minnesota, que fica a pouco mais de 2.200 quilômetros daqui de Dartmouth. Lá veio de novo o espírito americano. Ann decidiu que dava para fazer direto, dirigir sem parar a não ser para comer e usar o toalete. Sendo eu apenas um ex-rapaz de Paraguaçu, achei aquilo muito estranho, mas topei, porque afinal de contas também adoro estrada, e parece que nasci com sede de aventura. E não é que foi uma ótima opção? Quando um conduzia, o outro dormia. Sam, o constante vigilante rodoviário, de vez em quando roçava o focinho frio nos braços do motorista de plantão e assim prevenia o sono fatal. Ele mesmo não comeu nem dormiu um minuto sequer durante todo o trajeto.
Tínhamos saído sexta-feira, dia 15 de julho, pelas seis horas da tarde na direção noroeste, rumo ao Canadá. Atravessamos a fronteira logo após a cidade de Búfalo, no estado de Nova Iorque, pelas duas da madrugada, depois de um desnecessário misto de susto, desconforto e perplexidade. O oficial de fronteira canadense nos recebeu como se fôssemos dois possíveis criminosos. Sisudo, rude e desconfiado desde o primeiro instante, o baixinho de farda e colete à prova de balas deu vazão a sua estupidez com essa pergunta:
“Vocês estão carregando um daqueles sprays de pimenta?”
Quando, espantados, dissemos que não, ele não se contentou, e soltou mais essa pergunta estapafúrdia:
“Vocês têm alguma coisa contra sprays de pimenta?”
Caramba, de onde é que lhe veio essa idéia de que poderíamos estar carregando esse tipo de pistola para auto-segurança? O homem era muito estranho. Parecia cuspir ódio pelos olhos. Deixou-nos entrar no seu belo país, mas antes nos atirou mais essas duas perguntas:
“Vocês estão carregando armas? Vocês têm armas em casa?”
Na noite de sábado, vinte e seis horas depois da partida, nós chegávamos à aconchegante Duluth, cidade que, entre todas, mundo afora, possui o cais comercial mais distante da costa. A cerca de 2.000 quilômetros, seu cais recebe navios transatlânticos. No Canadá eles descem o Canal do Rio São Lourenço, atravessam os cinco Grandes Lagos, e assim transportam minério de ferro e grãos para o resto do planeta. Com certeza Duluth também recebe outros viajantes que vêm de muito longe, como nós, que vimos nove veados mortos à beira do asfalto. Por ali também encontramos dois lindos ursos negros— livres, alegres e aventureiros filhotes a salpicar sob um escaldante sol de verão pelas estradas da vida.

15 comentários:

rose marinho prado disse...

Nessa narrativa bem saborosa - viajei junto, até com esse cachorro, que evitava que o motorista dormisse, que gracinha ( gração que é grande!).
E essa sua mulher é companheira pacas! E fica claro que deve ter sido bem divertido criar o Ian, um companheirão também...
A paisagem que me interessa é a humana, sempre é. E nessa história vale mais que mil florestas.
Adorei.

Rosa disse...

hello, there--
i really enjoyed reading your cronica, about ian's strong mind... it really must be an american thing
-- all this driving craziness...... rsrsrsrsrs

Cris disse...

Que aventura!!!! Bela cronica!
Este espirito aventureiro `e bom demais! Tbem adoro pegar estrada, da` vontade de viver cada dia em um lugar, ne?

Que dia vem pra Pcu? To indo embora amanha, vou tentar vir no ultimo final de semana de agosto pra pegar o restinho da festa da cidade e pra uma festinha que a Monica vai fazer pra minha afilhada, Sabrina, aqui na casa da vovo`. Quem sabe nos encontraremos!!!

Um bj pra vc e boooooooooooa viagem! Uhuuuuuuuuuuuuuuuu!!!
Cris

Wania disse...

OI DARINHO !!! QUE DELÍCIA DE TEXTO, VIAJEI JUNTO COM VCS E COM SEU FILHO.
VC PERDEU O NEIL YOUNG ???? NÃO ACREDITEI NISSO !!!
FAZER O QUE , COMPROMISSOS PROFISSIONAIS INADIÁVEIS, É SEMPRE ASSIM!!!
MAS IMAGINO QUE O PASSEIO COM A ANN A DULUTH DEVE TER SIDO UM SONHO BOM QUE VC REALIZOU, COMPENSOU A PERDA DO FESTIVAL
ADOREI O TEXTO !!
BEIJO ENORME
WANIA

Carla disse...

Que delícia de leitura! Parabéns pelo filhote também! Beijos,
Cacá.

Maristela disse...

Agradeço pela "viagem".... maravilhosa... beijocas

Geraldo Faraci disse...

Amigo Darinho
Amei a sua viagem, e recordei a que fizemos eu, Sonia e Yumi por toda a California ( + de 3.000 km ), sorte a nossa ter realizado essa travessia em uma belíssima estrada vendo o mar e com ótimas lembranças tb. Deus existe cara.Tio Bob Marley falou " A vida é para quem topa qualquer parada, e não para quem para em qualquer topada". Continue com suas boas crônicas. abs. Tilado.

Kiki disse...

Bota espírito aventureiro sô!!! O Ian foi corajoso demais!

Pena que aqui no Brasil não temos umas estradas tão lindas e tão bem cuidadas como aí, realmente deve ser um prazer uma viagem como essas...

Zé disse...

Darinho
ótima a crônica. Quando chegar ao Brasil darei a você um molho de pimenta para presentear o guarda. Explique que o uso é outro.
Quando você vier, chegará em BH ou São Paulo ? Qual o seu planejamento ? Parece que o dia dos pais é o segundo domingo de agosto.
Congelei uns bolinhos de feijão da festa do Xandi. Leva pimenta também.
Dê noticia

Irene disse...

Adorei! Eu também tenho dificuldade em lidar com a falta de inteligência de alguns guardadores de fronteiras, mas é a vida!
Irene

Frederico disse...

Seu espírito já bem americano meu amigo !!!
Parabéns pelo seu filho.
Um forte abraço do amigo
Frederico.

Sé disse...

Oi Darinho!
Pelo visto, você, Ann, Ian , Zack ( embora este não conste na crônica) e Sam, estão todos muito bem.
Fico feliz por isso.
Foi muito gostoso ler a sua crônica. Você escreve muito bem e convida mesmo a "viajar" com vocês. Acredita que até "vi" os dois ursos...
Um grande abraço, Sé-

Di disse...

Que loucura!!Ian viajando sozinho.... Esse menino vai longe. Juventude, animação e espírito "bão"....
Muito bom de ler.
Beijos,
Di

MF disse...

Meu Deus! Suas crônicas são espetaculares! Mas que aventura hein!? Dá inveja. Abraços.

Glória disse...

Oi, Dario,

Você está certo. É o espírito americano sair pela estrada, como resquício da conquista do oeste.
Sabe o que contribui muito para que ele se mantenha? As boas estradas, talvez tão boas por causa desse espírito.

Você passou por Buffalo . Morei lá pertinho, em North Tonawanda. Ia sempre a Niagara Falls. Na época, os guardas não faziam as feiuras que você contou. Também, o mundo era bem outro. Será que ele pensou que você e a Ann eram Bonnie and Clyde?

Enfim, que aventura dirigir tanto de uma vez só. A volta foi igual? Sempre tenho preguiça na volta das viagens, agora limitadas a Minas Gerais. De Mariana eu volto contente. Quando o ônibus faz a curva de onde se vê a cidade, é uma alegria. Estou chegando em casa.

Parabéns pelo filho corajoso e confiante. Isto significa que ele foi bem criado.

Um abraço com muitas saudades,
Glória

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