Dário Borim Jr.
Viajar é quase sempre bom. Quando a viagem é longa e
passamos muitas horas ao lado de alguém que nos enche de histórias
interessantes, melhor ainda. O acaso (será que isso existe mesmo?), então, reúne
pessoas que, se estiverem num avião, acabam almoçando ou jantando e tomando
umas biritas, como se fossem velhos amigos. Como gosto e, por causa de minha
profissão, posso viajar amiúde, tenho tido várias oportunidades de desfrutar de excelentes
conversas pelos ares, atravessando mares e matas, longitudes e latitudes de um
mundo vasto, mas cada vez mais acessível às pessoas de quase todas as classes
sócio-econômicas. Como exemplo, Creuza, uma simpática senhora que faz limpeza
na casa de minha irmã Silvinha há muitas décadas, foi recentemente a Lisboa
visitar o filho.
Em minha mais recente viagem internacional
também fui a Lisboa. No itinerário de ida, passei primeiro por Amsterdã. Na
rota sobre o Atlântico assentei-me ao lado de Frank, um engenheiro alemão com
quem conversei em inglês por horas a fio. Foram muitos os assuntos e, algumas,
as garrafinhas de vinho tinto. Soube que além de criar cavalos nos arredores de
Frankfurt, ele treina e chefia um grupo de vendedores e experts em assuntos ligados a seguros industriais operando em
diversos países. São engenheiros (que não trabalham exatamente com engenharia)
e outros profissionais. Não deixei de falar, com orgulho, de meu irmão Tatau,
também engenheiro e também empurrado pelas circunstâncias a mexer com muito
mais coisas do que engenharia ao atingir um alto posto na Vale, enorme empresa na
área de minérios. Além do mais, Frank ficou sabendo que Tatau trabalhou por
muitos anos para uma companhia alemã do ramo, a Ferteco.
Ao retomar esse assunto de longas viagens
aéreas lembro-me, claro, que já escrevi algumas crônicas sobre outros
excelentes companheiros que o destino me pôs ao lado. Ano e meio atrás foi a
vez de uma jovem catarinense, Gabriela, cuja história pessoal me tocou e me
inspirou a refletir sobre grandes mistérios, como o papel do amor, da amizade,
e da morte de entes queridos nas nossas vidas.
Hoje quero recordar um encontro tão
comovente quanto divertido, também em jornada rumo a Lisboa. Era minha primeira
viagem a Portugal, há oito anos. Antes de chegar à bela capital às margens do
Tejo, meu primeiro voo seguiria de Boston para Paris. Mal tinha eu assentado em
minha poltrona quando comecei a perceber o jeito alegre de quem estaria ao meu
lado pelas próximas oito horas. Wesley, um senhor de uns setenta e cinco anos,
fazia brincadeira com a aeromoça antes mesmo de decolarmos. Quando as
garrafinhas de vinho começaram a chegar, nós dois já levávamos um papo animado.
Já éramos meio amigos. Ao sabor delas, uma após outra, tínhamos nos tornado
dois meninos sorridentes.
A um dado instante, Wesley soube que além
de professor universitário eu era radialista, com ouvintes espalhados pelo
mundo afora. Ele se levantou e se voltou para trás para anunciar em voz alta a
toda a cabine: "Gente, que honra! Estou assentado ao lado de uma
celebridade da mídia!"
Logo quis saber de minhas pesquisas e tal.
Disse-lhe que o tema de minha dissertação de doutoramento era a narrativa
autobiográfica, assunto sobre o qual eu faria uma palestra na Universidade de
Coimbra dali a poucos dias. Quando eu lhe disse que minha tese estava ali
comigo, pediu para vê-la. E não é que esse senhor passou a ler ali mesmo, por
vários minutos, algumas partes do meu primeiro livro?
Houve bastante tempo para Wesley me contar
um pouco de sua longa história de vida. Nascido no País de Gales, tinha se
mudado para os Estados Unidos com os pais e mais nove irmãos, todos fugindo da
miséria que assolava certas partes da Europa na década de 1920. O destino
inicialmente lhes foi ainda mais cruel. Seu pai logo morreu, deixando a esposa
com dez filhos para criar em terra estrangeira onde, a seguir, chegou a Grande
Depressão: desemprego em massa, fome, etc. Em tais anos de escassez geral, o
governo do estado de Maine, onde moravam, não tinha pena de imigrantes: não
lhes concedia comida subsidiada. A família de Wesley sobreviveria à base de
peixes que todos pescavam. Eles os comiam ou trocavam por outros comestíveis.
O pior passou, e anos mais tarde Wesley
foi para a França, onde serviu à marinha dos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial. Disse que foi porque foi obrigado, mas foi com a determinação de não
matar ninguém. Mesmo na linha fogo não atirava no inimigo. Ocupou-se de carregar os colegas feridos ou
mortos. Para ele o horror maior foi ver tantos deles perderem a vida nos seus
braços. A seu modo, Wesley muito colaborou pela Tomada da Normandia, em 1944.
Por conta dos serviços prestados ao povo francês naquele Dia-D, ele agora
voltava à França, em viagem ao meu lado, para receber homenagens oficiais. Não
queria. Não gostava de comemorações por motivo de guerra, mas acabou cedendo
aos apelos vindos dos dois lados do Atlântico.
O tom de nossas conversas variou entre o jocoso
e o patético, até que exaustos acabamos dormindo um pouco antes de aterrissar
no aeroporto Charles de Gaulle. Antes, porém, presenciei mais um "causo"
de humor desse grande homem. Quando furtivamente lhe disse que os óculos
daquele professor-doutor à sua direita eram de marca Ph.D., ele disse que tinha
uma surpresa, algo análogo àquela marca inscrita na armação dos meus óculos.
Pediu que eu fechasse os olhos e que só os abrisse dali a segundos. Eu não
tinha a menor ideia do que me esperava. Quando pude olhar para ele novamente, o
ex-combatente pacifista estava com sua dentadura superior nas mãos: "Veja
aqui, Dr. Dário. Você tem Ph.D. comprovado até nos óculos. Eu tenho minha
identidade confirmada e nome registrado até nesse instrumento de minha
velhice". Pensei com meus botões: com um humor desses, vai-se longe na
vida, muito além da Normandia.