Nos
tempos do Cine Íris
Dário
Borim Jr.
A praça
Oswaldo Costa é do povo, assim como o céu é do avião. Caetano Veloso que me
empreste seu delicioso verso em "Frevo novo", sobre a lendária praça
Castro Alves em Salvador, para eu iniciar essa "crônica nova" em viagem,
no céu da memória e da imaginação, até minha querida Paraguaçu. Convenhamos,
poucas cidades pequenas têm uma praça tão charmosa como a nossa, e pouquíssimas
têm na sua história um cine-teatro como o Cine Íris. Como falar, no curto
espaço de uma crônica, desse enorme palco de recordações? Por onde começar e
onde terminar? Acredito que será necessário escrevê-la em duas partes para
resgatar apenas algumas das histórias que ainda estão por serem registradas.
Então, se chegarem ao fim dessas mal traçadas linhas—brincadeira,
né, pois elas estão certinhas por culpa do computador—e se quiserem mais, podem esperar porque virá uma segunda crônica incluindo mais "causos"
daquela inesquecível era de cinema em nossa cidade.
Nos anos 1960 e 70 o Cine Íris era mesmo a alma e o coração daquela
praça, e ela, por seu turno, era um microcosmo de toda a nossa Paraguaçu. Os
autofalantes tocariam centenas de vezes umas dezenas de versos, como
"Dio, como ti amo, non e possible/ Avere tra le braccia, tanta
felicita" na voz da italianíssima Gigliola Cinquetti. Eu particularmente
me emocionava quando o antigo laguinho e todos os bancos da praça ouviam comigo
o Roberto Carlos cantar "Como é grande o meu amor por você". E lá
vinham sucessos estrondosos de Wanderléia, Os Incríveis, Jerry Adriani e Rita
Pavoni. Na verdade havia música para gente de toda idade e gosto, inclusive
melodramas de Agnaldo Rayol, Nelson Ned e Nelson Gonçalves. O fato é que desde
o fim da tarde até as primeiras horas da noite, podia-se andar de bicicleta ou
fazer o footing na praça
deliciando-se ao som que saía das duas ou três poderosas gargantas de ferro do
Cine Íris. Quantos namorados sonhavam juntos e quantos casais se casariam
depois de um flerte por ali, onde o romance também se nutria dos aromas das
flores de um jardim tão belo e bem cuidado.
De fato, o cinema se fazia
presente por todos os cantos da cidade não só por conta daqueles poderosos
autofalantes fixos, mas também por conta do autofalante móvel que circulava pra
baixo e pra cima nas mãos do competente cantor e animador de shows chamado
Airton, aquele fanático torcedor do Palmeiras que tantas vezes passou pela Casa
Dois Irmãos só para gritar bem perto das orelhas do meu tio Delmo: "Cê
viu? O Parmeira meteu o fumo no Corintia". Quando Airton não se vangloriava
do time dos periquitos, ele cantava a todo vapor e vendia broas de fubá ao anunciar
as atrações do cinema pelas ruas da cidade. A pronúncia que ele tinha dos nomes
das estrelas de Hollywood era especial: "Não perca. É hoje, no Cine Íris: Ben Hur, com Xarton Reston. Amanhã tem
mais, o sensacional O dólar furado,
com Giuliano Gemma!"
Aquele era o tempo das balas Chitas compradas no cinema (um pouco mais
caras) ou no bar mais famoso da época, o Shangrilá. Época dos beijinhos escondidos
e prazeres atrevidos da mão boba, dos tagarelas que não calavam a boca por nada
desse mundo. Muitos já sabiam os diálogos (depois de ver o mesmo filme meia
dúzia de vezes) e falavam alto antes dos atores na tela. Mais comuns ainda eram
as guerras de pipoca, e mais temida era a figura do "lanterninha",
que tentava apaziguar os ânimos da rapaziada excessivamente namoradeira ou bagunceira.
Difícil manter a ordem, claro, se o filme arrebentava muitas vezes ou se o
maquinista levava muito tempo para emendar as pontas da película e reiniciar o
filme. A vaia era de deixar a gente surda. Dependendo da gravidade da zorra,
era hora do famoso e saudoso Carlito (Carlos Prado Campos), dono do cinema,
descer e subir o corredor central com um olhar de fera e uma voz impaciente
(coitado), às vezes ameaçando de chamar a polícia e expulsar os mais exaltados.
A magia dos filmes vinha de nossos maiores ídolos, um Alain Delon, uma Brigitte
Bardot, un Rin-Tin-Tin, uma Sophia Loren, um Zé do Caixão e, também, um Mazzaropi,
que um dia visitou nossa cidade. Eu estava lá e mal acreditei: o quê, nosso grande
herói caipira em Paraguaçu?
Pois é, nossa cidade não era nada "típica" não. Havia algo de
muito especial no ar, na água, sei lá. Alguma coisa metafísica que dava um
gosto tão especial àquilo tudo. As escolas tinham campeonatos de futebol. O
Fabril tinha um nome a zelar. Vários circos nos visitavam. A cidade tinha duas
ou três boates, por exemplo. Lembro-me da Super Plá e da Tesão. O bar do
Vatinho era um ímã para todos nós que ali passávamos tardes e noites regadas a
muita Antárctica. Havia animadíssimos bailes nos três clubes, o Democrata, o
Ideal e a Liga Operária. Tínhamos também um dinamismo cultural impressionante,
com festivais de música semanais e com peças de teatros apresentadas por
crianças sob a direção da (tia) Selma Sólia Nasser. Lembro-me de um musical que
fizemos, com os personagens de Walt Disney. Que festa!
E que festas animadas tinha a própria igreja. Os leilões de prendas e
comestíveis eram disputadíssimos. Nós pirralhos sonhávamos com um frango assado
embalado em papel celofane. Aquelas festas tinham até partidas de futebol de
garotinhos de cinco anos organizadas pelo Múcio Prado Campos e Cícero Viana,
jogadas ali mesmo no adro da matriz.
Em poucas palavras: éramos felizes— e sabíamos!