Muitas agências de notícia exploraram o mesmo tema. A BBC de Londres,
por exemplo, deu, no dia 20 de março, que a presidente Dilma Rousseff
“reagiu com bom humor” a uma pergunta de um jornalista argentino, quando ele
questionara a opinião dela sobre o fato de o novo papa ter nascido em Buenos
Aires. "Vocês, argentinos, têm muita sorte… o papa é argentino, mas
Deus é brasileiro", assim argumentou a presidente em visita oficial ao
Vaticano.
Outras notícias vindas mais recentemente de Belo Horizonte vão além.
Deus não é apenas brasileiro: Deus é atleticano. Na pequena paróquia
de Nossa Senhora da Piedade, da comunidade de Piedade do Paraopeba, pertencente
ao município de Brumadinho, o carismático e genoroso padre Paulo
Eustáquio Cerceau Ibrahim incorporou uma trilha sonora bem especial aos ritos
sagrados da Festa do Divino: o hino do Galo! Sim, aquele mesmo, “Nós somos do
Clube Atlético Mineiro/ Jogamos com muita
raça e amor/ Vibramos com alegria
nas vitórias/ Clube Atlético Mineiro/ Galo Forte Vingador”.
Bem, convenhamos, aquele é um hino muito especial. Segundo o site
oficial do clube belorizontino, www.atletico.com.br, o primeiro hino da associação vigorou entre os anos de
1928 e 1968, mas em 1969 a diretoria atleticana encomendou ao compositor
Vicente Motta o "Hino ao Clube Atlético Mineiro". Segundo a mesma
fonte de informação, este hino é idolatrado pela torcida de tal modo
que se tornou o “mais cantado em estádios no Brasil”. Ainda de
acordo com aquele portal, em 1976, em Nápolis, na Itália, houve um concurso
mundial de hinos de clubes de futebol, e o do Galo foi o vencedor. Passou a ser
considerado o mais belo entre todos os hinos de clubes de futebol do mundo.
Não sei se padre Paulo tem paixão especial pelo Hino
do Galo, ou mesmo se outras vezes já pediu que a banda da paróquia o tocasse em
pleno rito religioso. O fato é que, João Batista Vaz Xavier, um
grande amigo meu, estava presente à procissão. Filmou o “fenômeno
religioso-esportivo” e postou o vídeo na maior rede social electrônica do
planeta, o FaceBook. É também curioso que naquele mesmo domingo da Festa do
Divino algo muito importante aconteceria no estádio do Mineirão, logo após a
procissão: a partida decisiva a consagrar o campeão do estado de
Minas Gerais de 2013.
Antes, um verdadeiro banquete popular -- com arroz,
feijão, frango assado, e muito mais -- foi servido aos fieis. Conforme explica
Batista, o padre é uma espécie de Robin Hood por conseguir doações junto aos
ricos e oferecer comida e outras dádivas materiais aos pobres daquela região
montanhosa de Minas. Após a comilança, todos regressaram à igreja e assistiram
à missa que, coincidentemente, ocorreu enquanto jogavam Atlético e Cruzeiro em
Belo Horizonte. Acabada a missa, disse-me Batista, o padre, ainda do
púlpito, se despedia dos fieis quando recebeu um sinal do sacristão: um gesto
muito conhecido, o polegar dizendo, “positivo”! Então padre Paulo não se
acanhou, “Meus caros, por último uma notícia que acabo de receber: a taça é
nossa!”
Esse “causo” mineiro eu ouvi, via Skype, na
quarta-feira, dia 22 de maio, véspera de uma palestra que eu daria no Dartmouth
College, uma bela e rica faculdade aqui nos Estados Unidos (do mesmo grupo da
Harvard, a chamada ivy league). O “causo” me levou a pensar nas
teorias do famoso antropólogo carioca Roberto DaMatta. Acabei iniciando minha
comunicação naquela escola aludindo ao tal “fenômeno” de mistura entre religião
e futebol. Todos nós rimos muito. O professor paulistano Rofolfo Franconi,
presente a minha palestra, me perguntou: “e os cruzeirenses, como se sentiram
na procissão, e ainda ‘pior’, na igreja?”
Nos seus trabalhos acadêmicos DaMatta enfatiza vários
aspectos que apontam para as particularidades do povo brasileiro. Como explica
o antropólogo no seu livro O que faz o brasil, Brasil?, o
brasileiro vive em um mundo de misturas de todo tipo, inclusive a mescla
daquilo que é individual com o institucional, religião com esporte, o publico
com o privado, o sério com o cômico.
A dúvida do meu colega tem fundamento. As estatísticas
poderiam confirmar, mas é muito provável que muitos dos fãs do padre Paulo não
torcessem para o Alvinegro. Eram fãs do Cruzeiro e, outros, do América. A ética
profissional -- ou clerical, como queiram -- foi para onde, nesse caso? Esse
“sutil” desrespeito à diferença, às margens do mundo
atleticano, teria alguma importância? Seria outra pitada de humor,
como a da presidente no Vaticano? Seria apenas uma pequena e inefável loucura
de um padre fanático? Ou seria um exemplo da enorme tolerância de quem não foi
incluído na reza -- aliás, daqueles contra quem se fez a reza oficial?
Pois, assim, a paixão individual do padre de Piedade
do Paraopeba não se separou do seu poder eclesiástico. Ela se incorporou no
rito institucional que ele administrava, com fé e formalidade, e se fez valer,
a revelia da anti-paixão de cruzeirenses e americanos. De modo semelhante, a
presidente do Brasil fez galhofa da superioridade do povo brasileiro sobre o
argentino. Afinal de contas, em termos de poder, a figura do papa está bem
abaixo daquela de um Deus, mesmo que brasileiro. Principalmente quando um papa
já disse que pecou muitas vezes e que os ateus também podem ascender aos céus.
Como vimos, para o deleite de muitos mineiros, tal
Deus também é atleticano de carteirinha. Será que foi com ajuda divina que o
goleiro atleticano Vítor Leandro Bagy defendeu um pênalti decisivo, nos últimos
segundos de um jogo tão importante como o da Copa Libertores da América na
quarta-feira passada? Apenas na manhã seguinte o heroi recebeu mais de 20
solicitações de entrevistas. “O Atlético não
poderia ter saído da competição daquela forma. Foi também uma justiça de Deus
pelo trabalho que estamos fazendo, por nossa postura”, disse o jogador ao
jornal Estado de Minas.
Confirmando a tendência do brasileiro a mesclar o
divino com o prosaico -- mundos da mesma moeda que, segundo DaMatta, “se
relacionam de modo complexo e simultâneo” -- o goleiro ainda declarou ao mesmo
jornal que após o jogo, ao chegar ao condomínio
em que mora, viu uma faixa bem simples, no portão, que o tocou forte no
coração: “Muito obrigado, São Victor”. Amém!