Um Delicioso Caos no Cairo e Istambul
Camelos no Cairo
Dário
Borim Jr
dborim@umassd.edu
Há dias tão intensos de emoções e estímulos para reflexões e, ao mesmo tempo, tão repletos de aventura e de novidades, que nos vemos incapazes revivê-los e avaliá-los em retrospectiva organizada e sensata. Vivemos então um delicioso caos de momentos memoráveis.
Há dias tão intensos de emoções e estímulos para reflexões e, ao mesmo tempo, tão repletos de aventura e de novidades, que nos vemos incapazes revivê-los e avaliá-los em retrospectiva organizada e sensata. Vivemos então um delicioso caos de momentos memoráveis.
Ainda à espera de uma conexão no aeroporto de Istambul, em
viagem de volta a Massachusetts, tento encontrar uma síntese para um turbilhão
de experiências. Impossível! Até mesmo escolher um tópico para essa crônica, a
primeira sobre minha viagem de uma semana a Turquia e também de uma semana ao
Egito, parece-me tarefa além de minha capacidade. Viajar para países muito
distantes de onde vivemos, sociedades de costumes e línguas muito diferentes
dos nossos e dos que conhecemos, é algo extremamente desafiador e gratificante.
Em Istambul, a quinta maior cidade do mundo, ocorre o meu
primeiro contato com uma sociedade acentuadamente muçulmana (talvez 50% de seus
habitantes reverenciem Alá). Para cá viajei com o principal propósito de
apresentar um trabalho acadêmico sobre a canção “O que Será,” de Chico Buarque
de Holanda, e o filmeDona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto,
baseado no romance homônimo de Jorge Amado. Aqui encontrei uma belíssima cidade
em profunda e acelerada transição, marcada tanto por prosperidade e acentuados
contrastes sócio-econômicos quanto por ativismo politico e violência policial
sob acirrados conflitos ideológicos.
No cerne desses conflitos, de uma parte se quer uma cidade e um
país moderno, de muitos shopping centers, e uma Istambul recortada por viadutos
e autopistas. Por outro lado, preocupa-se com a preservação do patrimônio
cultural, a efetivação de transporte público de qualidade, a manutenção de ruas
e avenidas arborizadas (tomadas por gente, e não por velozes carros), a
sustentação e expansão de muitos parques e praças, e a imagem de uma cidade
onde os arranha-céus têm que se restringir a determinas áreas apenas. Por conta
dessas diferenças, protestos e confrontos com a polícia têm deixado manchas
sangrentas na história do país.
Após uma semana na maravilhosa Turquia, era hora de ir visitar o
Ian, o filhote mais velho, que acabava seu ano escolar na Universidade
Americana do Cairo naquele mesmo dia da minha chegada, 18 de maio. Na maior
capital do mundo árabe também tem havido lutas sangrentas entre manifestantes e
policiais. Se em Instambul há dinheiro sobrando, pois a economia do país anda
firme e forte faz mais de dez anos, aqui também há desentendimento sobre como
usar esses recursos. Na capital dos egípcios, entretanto é a falta de dinheiro
e as desavenças políticas entre religiosos e militares o que faz o barco balançar.
Sofrendo as consequências de dois golpes de estado em menos de quatro anos, o
país agora atravessa uma de suas maiores crises econômicas e sócio-políticas.
As forças militares e para-militares têm reagido com violência aos protestos
dos muçulmanos e outros descontentes.
Comparados com os da Turquia, os problemas do Egito são muito
mais vastos e profundos. Enquanto a antiga Istambul se tornou uma nova “moda,”
a cidade mais procurada por turistas europeus, o oposto ocorreu ao Cairo. A
cidade africana vive as nefastas consequências da sua péssima imagem na mídia
internacional. O chocante número de mortes nos conflitos políticos nas ruas
dessa e de outras cidades (duas mortes desse tipo ocorreram enquanto estive no
país) e o desconforto dos toques de recolher impostos por soldados carregando
metralhadoras por todos os cantos da cidade afastaram os turistas. Esse é um
peso enorme nos ombros de uma população que, em grande número, vive da economia
informal do turismo. Um quarto da economia do Egito, aliás, depende da presença
de turistas, e estes sumiram. A falta de dinheiro é recompensada por pães
distribuídos gratuitamente e por outros subsídios governamentais. Para muitos
egípcios, só mesmo Alá poderá dar jeito numa situação sufocante, e em nome de
Alá muitos vão às caóticas ruas do Cairo protestar contra a ilegitimidade do
governo instaurado à força, e contra a falta de liberdade e de emprego.
Apesar das marcantes diferenças entre as duas maiores cidades
daquela parte do mundo, ambas me encantaram. Lá vivem pessoas que adoram
conversar, descontrair tomando um chá, fumando suas shishas nos
seus narguilês (o tabaco por meio de cachimbos de água), ou jogando gamão, a
sorrir por quase nada e ajudar a quem precise. Ambas são, com certeza, fontes
inesgotáveis de surpresas para um viajante ocidental. É como se estivéssemos
nós mesmos em um filme que retratasse a vida como ela era milhares de anos
atrás.
Como esquecer o charme e a aventura de um cotidiano jamais
visto? São as roupas coloridas das mulheres ou suas burcas negras, ou mesmo
seus véus e cachecóis. São os turbantes de todos os matizes de homens e meninos.
É a roupa tradicional masculina do dia a dia – preta ou acizentada – que mais
parece a velha batina abandonada pelos padres no Brasil há várias décadas. São
as casas, palácios, igrejas e mesquitas de arquitetura inesquecivelmente
variada porque elevadas ao longo dos séculos por gente de origens e valores
muito díspares. São os cheiros das ervas e especiarias, dos peixes assados na
chapa, e de tantas outras comidas feitas sobre os passeios ou mesmo junto a
eles, mas nas próprias ruas.
São os animais, tais como camelos, cavalos, coelhos, galinhas,
bodes, gatos e cães – todos convivendo com gente deitada em camas em plena rua,
com transeuntes e seus telefones celulares (caros e baratos), com músicos,
artesões, pescadores e vendedores ambulantes de sucos e chá. Lá estão eles
entre centenas de barracas de toalhas, tapetes, frutas, pães e roscas, milhares
de antenas parabólicas, motos, bicicletas, lambretas, charretes, e carros de
todos os valores, de um BMW novinho em folha a um sedam russo caindo aos
pedaços. São todos os seres e coisas movidos ou situados em meio à forte
poluição do ar e aos sons de canções tradicionais, buzinas incessantes, sirenes
de carros da polícia e do exército, sem falar das melódicas chamadas para a
reza muçulmana cinco vezes ao dia através de altofalantes espalhados por todos
os cantos. O Cairo e Istambul nos levam a um mundo que tão fascinantemente
mescla os milênios enquanto desorienta e reorienta o ser ocidental rumo à
beleza da diversidade humana, com suas múltiplas culturas, hábitos e habitats.