sábado, 24 de outubro de 2015

Pra Frente, Sempre!



Dário Borim Jr.

Pra Frente, Sempre!


Correr para trás, isto é, de costas e sem ver o que pode aparecer no caminho, não é boa ideia. E o que não é boa ideia pode dar em péssima ideia, ou quase tragédia, ou mesmo uma tragédia completa. Pior ainda é correr assim depois de certa idade – digamos, 50 anos – e tropeçar nos seus próprios pés. Pior ainda é esquecer que uma quadra tênis coberta geralmente tem paredes, e que uma delas, de tijolos, pode aparecer bem na rota de uma correria em marcha-ré!

No meu caso, exatamente oito semanas atrás em Belo Horizonte, a extravagância de correr de costas para rebater uma bola de tênis no fundo de quadra não deu em tragédia, mas quase. Ao cair do tropeço entre meus pés me apoiei na mão esquerda, que não me aguentou e pediu ajuda ao braço, que tampouco tolerou meus 90 kg e se partiu em três pontos junto ao pulso. Foram três fraturas fragmentadas, ou, “complexas”, como disse o ortopedista Guilherme Gontijo: duas quebras no rádio e uma no úmero. Doeram muito, e ainda doem até hoje!

Para complicar mais, também havia uma parede de tijolos no meu caminho, contra a qual caí, jogado pelo impulso da correria retrógrada, batendo ali a parte mais alta do crânio. A barreira de tijolos me aguentou, mas me fez muito mal. Além da forte pancada na cabeça, ela esmagou o couro (originalmente, muitos anos atrás) cabeludo, abrindo três cortes em forma de um K para trás (mais uma ironia da marcha-ré). Fez-me perder os sentidos e ficar de olhos arregalados por cerca de cinco segundos. Ainda levaria aproximadamente 30 minutos para poder "relaxar" e deixar de lutar contra outro desmaio que me provocava o cérebro abalado, algo que talvez me pudesse levar a um nefasto coma.

Depois de ler, muitos anos atrás, uma reportagem sobre o gravíssimo acidente que sofera o piloto austríaco Nikki Lauda, jamais esqueci que é extremamente perigoso se deixar adormecer logo após acidentes muito sérios. Tive a sorte de contar com a generosa e sábia ajuda de meu irmão José Carlos e meu sobrinho Daniel, com que eu jogava. Eles me deram os primeiros socorros, inclusive um belo balde d'água fria para me acordar e lavar os ferimentos. Como se sabe, cortes na cabeça sangram muito e minha aparência geral devia ser assustadora.

Transportaram-me, em seguida, para o Hospital Madre Teresa, onde um médico e um enfermeiro (meio assustado) me engessaram o braço. Também recebi doze pontos na cabeça, depois das devidas sessões de raios-x e tomografias. No total foram seis horas no hospital, e de lá saí com o braço imobilizado e a cabeça decorada com um turbante branco. Daniel e José Carlos me levaram, então, para a casa de minha irmã Silvinha, no bairo da Serra, onde me hospedava. Dei-lhe um susto com um visual de homem atropelado por um trator, mas eu logo estaria de muito melhor visual. Após um bom banho com sacos plásticos protegendo as partes avariadas, me sentia tão bem que fui com ela e meu cunhado José Codo a um concerto de Toquinho e João Bosco, no Palácio das Artes.

Aqueles que me conhecem, mesmo que minimamente, sabem de meu entusiasmo pela vida. Exemplo disso é que mesmo no hospital, antes e depois de saber que meus ferimentos não eram tão graves, eu pensei várias vezes no festival de jazz que ocorria naquela tarde em Belo Horizonte, onde planejara estar com os amigos Vinicius, Lídia e Marina Bueno. Quando saí do Madre Teresa, eu vislumbrei e fotografei a lua cheia sobre a cidade e me vi genuinamente feliz e agradecido por ter sobrevivido àquela estranha aproximação da morte. Incrível, mas foi por uma questão de segundos que o destino não me teria trazido àquele precipício, pois pela pontuação do ultimo game, aquela bola no fundo de quadra terminava a partida de tênis, que já durava quase uma hora e meia. Parece que o tropeço tinha mesmo que acontecer e me ensinar algo.

Lembro-me que a um ou dois segundos após o impacto contra a parede, com tristeza e medo pensei em meu saudoso amigo e orientador de tese de doutorado, Roberto Reis. De modo muito semelhante, ele tropeçou na bola, chocando-se contra uma parede numa quadra de futsal coberta, e faleceu 21 anos atrás, quando tinha quase a mesma idade que tenho hoje. Em 1994, em Minneapolis, quando se acidentou, lá estava eu jogando a seu lado. Sua partida me trouxe um estado de depressão que perdurou meses.

Como disse uma amiga ao ver-me de volta nos Estados Unidos, aquela não era minha vez de desencarnar. Quem sabe, sugeriu Tracy McCree, tenha sido a pedido de Roberto, lá no ceu, que minha partida ficou para outra partida de tênis, de carro, ou de avião. Quem sabe nada disso virá, e será de alguma doença ou de velhice que vou para outro mundo. Porém, enquanto puder pensar e sentir, sei que jamais deixarei de ser grato pela chance de seguir vivendo, agora sempre para frente, e sempre agradecer pelas minhas mãos, minha consciência, e meu entusiasmo pela vida.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

O Pé de Cabra em Marrakech


O Pé de Cabra em Marrakech 

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Dizem que a maior ponte do mundo é a que liga Fall River ao arquipélago português dos Açores, a tal de Ponte Braga. Moro nas redondezas e por isso entendo a brincadeira. São tantos os portugueses na costa sul de Massachusetts que essa ponte afetiva com a terra da infância ou da ascendência familiar é mesmo fácil de se imaginar.

Bem, pelos Açores passei rapidinho na rota que me trouxe a Casablanca, a mais rica cidade marroquina, também às margens do Atlântico, como Fall River e a ilha Terceira, onde troquei de aeronave e pude vislumbrar um pedaço do mar a um ponto muito distante de qualquer continente. A sensação desde que cheguei ao norte da África é a de que o mundo não passa mesmo de uma kitchenette, nas palavras de minha amiga Elizah Rodrigues. Ainda no aeroporto de Boston tive a primeira experiência das muitas coisas que nos unem, isto é, um certo gosto pela desordem, ou uma dose de desprezo pela ordem, como queiram.

O embarque daquele voo Boston-Terceira foi, digamos, um cômico caos! As pessoas se aglomeravam sem esperar o seu devido momento de embarque. Fila era uma passageira ausente. Em seu lugar, berros de brincadeira ou de frustração. Até mesma a agente da aerolínea SATA, dos Acores, ria-se do comportamento geral dos passegeiros. Disse-me assim: "ninguém sabe ler o número do assento no cartão de embarque".

Ao chegar a Lisboa, minha segunda troca de aviões, tive que lidar com o inconveniente cancelamento de meu voo para Marrocos. Recebi uma notificação da vendedora da minha passagem na noite anterior ao meu voo. Bem tarde, sim, mas a agente da aerolínea portuguesa de meu próximo voo, a TAP, retrucou: "Sentimos muito, mas avisamos a agência de viagens americana três semanas atrás". Sem outro voo para Casablanca no mesmo dia, tive que pernoitar em Lisboa. Ainda bem que o Tejo é tão lindo e os peixes, como diz uma canção do grupo Deolinda, não param de sorrir. Deixei a chateação de lado e curti a noite lisboeta de uma nova perspectiva, aquela de uma região moderna da cidade, onde nunca estivera, bem perto da impressionante estação de metrô Oriente.

Em Casablanca, um abraço apertado e emotivo de meu filho Ian me recebeu! Logo depois das nossas primeiras conversas, passou-me uma advertência: "cuidado ao embarcar no trem". As pessoas que aguardam não tem paciência nem educação para deixar os que chegam sairem do comboio antes dos novos viajantes embarcarem. A consequência é um perigoso caos. Dessa vez, nenhum acidente parece ter ocorrido, e seguimos felizes rumo ao centro de Casablanca, uma espécie de São Paulo de um país que tem a bela Rabat como sua "Brasília" política e burocrática.

Logo ao desembarcarmos do trem, recebo nova advertência: "cuidado, porque os motoristas geralmente não respeitam nem os sinais, nem os pedestres". É claro que esse comportamento ao volante não nos é estranho, a mim que morei 15 anos em Belo Horizonte, quando lá havia muito menos respeito no trânsito do que há hoje, ou ao meu filho, quem no ano passado se adaptou bem ao trânsito mais caótico que já conheci na vida, o da cidade do Cairo, a poerenta capital egípcia.

Em poucas horas os sabores da comida marroquina e o charme da arquitetura colonial francesa de Casablanca me fariam esquecer a desordem do trânsito. Primeiro, Ian me convidou para um ensopado com carne de camelo. Delicioso! Depois me mostrou os prédios brancos do centro colonial. A seguir fomos a um pub bem europeu, o Bar du Titan, onde se tocavam belas canções de Edith Piaf. Uma cervejinha marroquina, uma Flag bem gelada, desceu bem, mas logo Ian descobriu on-line um concerto de rock marroquino na beira da praia, numa casa de shows alternativos chamada Brock.

A banda Hoba Hoba Spirit fez um sucesso tremendo naquela noite. Lotada de quase 20 homens para cada mulher, Ian e eu nos sentimos em casa. Os presentes dançavam e cantavam juntos numa harmonia e alegria que poucas vezes presenciei em eventos musicais realizados no anonimato das grandes cidades. A simpatia dos músicos era tanta que varias vezes os vocalistas aceitaram filmar, do palco onde se apresentavam, a dança e o canto do público que os assistia, através dos smart phones que os entusiasmados fãs lhes passavam.

Algumas novidades "étnicas" eu teria que perceber, afinal estava (e ainda estou) em um país muçulmano ao norte da África. Por exemplo, num ambiente roqueiro como aquele, não vi ninguém beijar ninguém na boca. Muito menos qualquer "atrevimento" maior. Ian – agora assentado aqui do lado – me diz que uns beijinhos na boca bem rápidos e discretos são tolerados. Disse que deu uns desses lá mesmo. Os vigias fazem vista grossa, talvez. Mas "malhar" ou "ficar", nem pensar.

Beijinhos no rosto como forma de cumprimento rolam entre pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto. Como no Egito, ali vi muitos homens de braços dados com outros homens, sem qualquer indício de que fossem necessariamente gays. Mulheres com mulheres, também. Bela e pura liberdade de expressão de carinho, acho eu.

A noite traria surpresa muito maior para mim. E também para meu filho. Meio tarde da noite, talvez pelas duas da manhã, apanhamos um táxi . O motorista, logo que saímos, perguntou em árabe marroquino se havíamos bebido. Ian respondeu em tom neutro mas em palavras que provavelmente soaram ríspidas para o motorista muçulmano: "sim, mas isso não é da sua conta". Erro estratégico de quem é sincero. Aos berros, o homem começou a pregar. Dizia que depois de certa hora era ilegal transportar bêbados, mulheres grávidas e não sei mais o quê.

Ian disse que desconhecia tal lei e que queríamos descer do taxi. O marroquino não parou o carro, mesmo quando Ian abriu a porta e lhe entregou algum dinheiro. O motorista mudou de tom quando soube que éramos brasileiros. Começou a falar de futebol, e os nomes de Neymar, Roberto Carlos, Pelé e Ronaldinho ajudaram a suavizar o clima.

Mas a tensão voltou a subir quando chegamos ao destino e o taxista cobrou quase o dobro do que era de se esperar. Ian não deixou passar. Contestou a conta. O marroquino se enfureceu novamente, até que com raiva saiu do carro e disse que não cobraria nada de nós. Ian mesmo assim deixou moedas no banco do carro, que, segundo me disse, provavelmente cobririam o valor do taxímetro, nunca ligado pelo esquentado marroquino.

Os vários países desse mundo afora têm de fato muito em comum, mas basta estar vivo para se vivenciar o ultra-caótico ou o plenamente inusitado, aqui ou ali. E se pudermos viajar, muito maior será a chance de encontrarmos o que parece absurdo entre humanos fanáticos, ou simplesmente contraditórios, como um sujeito a pedir esmolas e ao mesmo tempo falar ao celular. Até mesmo os animais podem nos chocar. Extremamente disciplinadas, por exemplo, quinze cabras fazem um espetáculo ao ar livre entre as cidades de Essaouira e Marrakech. Ficam horas e horas trepadas numa árvore, comendo castanhas e quase sorrindo para os turistas que, ao vê-las da rodovia entre folhas e galhos, a nove metros de altura, descem dos carros para apreciar de perto aquela imagem surreal. Na verdade, surreal é apenas a nossa impressão de inocentes turistas. Aquela cena faz parte de uma sofisticada e delicada estratégia de produção industrial de uma espécie de azeite, que vem do fruto comido e depois evacuado por aquelas alegres cabras, acreditem se quiserem.

sábado, 7 de março de 2015

Entre a Pera e a Maçã


Entre a Pera e a Maçã

Dário Borim Jr.

Em versos de uma divertida e astuta canção de 1984, “Língua”, o eu lírico de Caetano Veloso diz que “a poesia está para a prosa/ Assim como o amor está para a amizade/ E quem há de negar que esta lhe é superior?” A poesia tem mesmo muito em comum com o amor romântico. Nem sempre, é claro, mas tantas vezes a poesia faz-se expressão figurativa, conotativa, e ambígua dos sentimentos em forma de desejos, sonhos, ilusões, ciúmes e paixões. Ela brota do “eu” do escritor e o relaciona com o mundo externo, onde vive, principalmente, a pessoa a quem ama. A ficção em prosa, por outro lado, tende a ser menos simbólica, mais denotativa, e menos ambígua do que a poesia. É mais voltada para a retratação das ações de várias personagens. A prosa brota da necessidade de se contar uma história num mundo onde várias pessoas agem segundo uma multiplicidade de interesses e imperativos, entre os pragmáticos e os emocionais.
O amor romântico geralmente existe por apenas um ser de cada vez, e a poesia brota na voz de um só eu lírico a expor suas próprias emoções e reflexões. A amizade, por outro lado, é o que nos une a várias pessoas queridas, da mesma forma que a prosa (muitas vezes sem mesmo um único narrador a viver no mesmo mundo dos personagens) perfila e dá voz a várias personagens através de diálogos.
Mas há uma coisa em comum entre o amor romântico e a amizade. A compreensão e a experiência de ambos são diferentes de cultura para cultura pelo mundo afora e vêm-se modificando ao longo dos milênios. O amor romântico, especialmente o do tipo amor-paixão, por exemplo, não foi praticado por muita gente antes da era do amor cortês, o da poesia trovadoresca da Idade Média.
Outro dia, o Ian, filho atualmente morando no Marrocos, dizia que a amizade lá e em outros países árabes é quase como que um contrato social. Há muita lealdade e muita expectativa entre amigos -- do mesmo modo, entre amigas, por outro. Estive no Egito e pude constatar que muitos homens andam pelas ruas de braços dados com outros homens, e mulheres passeiam de mãos dadas com outras mulheres. Entretanto, naquela cultura não se pode externar o amor romântico em público. Não se pode dar as mãos e nem se beijar no rosto do sexo oposto, nem mesmo entre pessoas casadas, ou entre pais e filhos adultos.
As diferenças também podem ser individuais. Ninguém tem um círculo de amizades igual ao de outra pessoa, muito menos os mesmos sentimentos pelas mesmas pessoas. Sei, porém, que valorizo intensamente minhas relações com vários amigos e amigas, pessoas que carrego no lado esquerdo do peito há muito ou há pouco tempo, sem que essa marca do tempo determine a intensidade daquelas afeições.
Na minha mais recente viagem ao Brasil vivi momentos preciosos na companhia de novos e de velhos amigos. Aliás, essa é outra característica deles em conjunto: podem ser 5, 10, 20, ou até mesmo 30 anos mais velhos ou mais novos do que eu eu. Lembro-me de Carlos Prado Campos, o Carlitos do Cine Íris. Nossa diferença de idade era de pelo menos 30 anos, mas eu o considerava um amigo. Jogávamos xadrez, tomávamos cerveja, falávamos de literatura e abríamos os corações. Aqui nos Estados Unidos, um de meus melhores amigos é Rick Hogan, um professor de filosofia aposentado, quinze anos mais velho que eu.
Então, de passagem por Belo Horizonte, dois meses atrás, fui convidado pelo meu queridíssimo amigo Geraldo Faraci para curtir um fim de semana na sua casa de campo, localizada no charmoso condomínio Retiro do Chalé, perto de Belo Horizonte. Para lá iria também outro amigo do peito, João Batista Vaz Xavier. Nós três já vimos curtindo nossa amizade há nada menos que 35 anos! Também foram convidados para o almoço de sábado naquele recanto edênico, entre as belas montanhas de Minas, o meu mano, o Tatau, e sua esposa, Jac, a quem conheço e estimo como irmã faz bem mais que 30 anos!
Para elevar ainda mais o astral da ocasião – o reencontro de velhos amigos – tive a ideia de convidar uma pessoa que pudesse levar para a festa o dom que mais aprecio, desde que me entendo por gente: a música. Eu já tinha ouvido a jovem Marina Bueno tocar violão e cantar uma vez, alguns anos atrás, numa festa de Natal na casa de D. Walderez Mignacca. Achei fenomenal que uma adolescente conhecesse tantas canções de múltiplas gerações e pudesse interpretar tão bem e tão despretensiosamente diante de dezenas de amigos e parentes. Filha de Lígia e Vinícius Bueno, um amigo dos tempos do Juvenato também apaixonado por música, a jovem Marina encantou a todos naquela tarde em Paraguaçu.
Um dos elementos que sustentam as amizades ao longo dos anos é o gosto pelas mesmas coisas, e ali, no Retiro do Chalé, a música era um dos mais fortes elos. Na espera do almoço, sob o comando e sob o delicioso atraso do grande mestre-cuca Batista, o menu musical incluía canções de Tom Jobim, Jorge Benjor, Rita Lee, Raul Seixas, Tim Maia, Cazuza e muito mais. Com sua voz afinada, Marina parecia não se importar com os desafinados ao redor, cujo entusiasmo subia mais um pouco a cada golo da verde (caipirinha) ou da amarela (cerveja). Ao longo de algumas horas de cantoria, estava claro que todos viam ali se formando novos elos do coração. Era óbvio que a química entre os velhos e novos amigos fazia coro do que há de mais agradável na vida: a paz e a alegria entre as pessoas que se apreciam.
Na cadência do samba ou do rock’n’roll, ouviu-se uma verdade tácita – mas extravasada – no brilho dos olhos de cada um dos presentes. Não tenho dúvida: ao lado do amor, a amizade se sustenta no topo das experiências humanas. Na casa de Geraldo e Sônia Imanishi, Marina também foi capaz de ajudar esse casal a reviver momentos que jamais deixarão de habitar o âmago dos seus seres. Os dois compartilharam com a nova amiga as partituras das canções que sua filha Yumi mais tocava e cantava.
Apesar de breve, Yumi viveu uma intensa e fascinante vida de viagens, esportes e, principalmente, música, que tocava muito bem ao violão e cantava em português, espanhol, inglês ou japonês. Ela faleceu tragicamente em Ilha Grande quatro anos atrás, quase à mesma idade que Marina tem hoje. A magia de ver Marina percorrer, comentar e interpretar as cifras de Yumi não teve par. Seu talento, sensibilidade e carinho fizeram com que pais e amigos presentes sentissem que Yumi ali estava também. E quem poderia dizer que ela não estava?
As analogias podem ser verdadeiras, mas jamais esqueci uma advertência que ouvi de Ronald Souza, o professor luso-americano que me orientou num dos dois mestrados que fiz na Universidade de Minnesota: “cuidado, as analogias podem ser perigosas e enganosas”. Gosto e concordo com o que dizem os dois primeiros dos versos citados acima. Já sobre o terceiro, tenho dúvidas. Como posso afirmar que a pera é “superior” ou “inferior” à maçã? Nem uma coisa nem outra, são como amizade e o amor, que têm mais uma característica em comum: operam milagres nos corações daqueles que amam e/ou cultivam as formas mais sinceras e profundas de amizade. Essas, para mim, constituem-se no prazer maior de viver.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Olhar de Quem Voltou




 Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

 

Em certa fase da vida até pensei em ser psicólogo, mas mesmo antes disso – e, claro, antes de deixar disso – eu já lia alguma coisa ou outra dos grandes nomes desse maravilhoso campo do saber. O suíço Carl Gustav Jung, discípulo favorito de Sigmund Freud, ficou famoso com sua teoria de arquétipos. Esse termo vem de duas palavras gregas: archein (original, antigo) e typos (modelo, tipo). Para Jung, o ser humano age dentro do esquema de adaptação constante da sua consciência a esses arquétipos, facetas de um inconsciente coletivo que a humanidade traz desde milhares de anos atrás, desde seu passado mais remoto.

Bem, chega de ciência. O fato é que para Jung um desses arquétipos é nossa ligação muito forte com a terra onde nascemos. Para mim e outras milhares de pessoas, essa terra é Paraguaçu, para onde volto sempre que posso, apesar de morar no exterior há 25 anos, o que significa quase a metade de minha vida. Não sou o único paraguaçuense expatriado, é claro, e gostaria de saber o que pensam os demais, mas sei que pelo menos três, seres também expatriados há mais de 20 anos, já expressaram algo parecido ao que hoje tenho a dizer. São Maristela Dunn, que mora  e sempre roleta de bicicleta na Califórnia (portanto, a pouco mais de 5 mil km de mim, que moro em Massachusetts), Rosa Mignacca (uma talentosa artista morando em Londres há décadas), e Tânia Marques (uma bela representante romana da Terra do Marolo na Terra do Macarrão). O que acontece é que sempre que voltamos a Paraguaçu, ficamos bobos ao ver tanta beleza natural na nossa região, o que muita gente nem percebe porque a vê todos os dias, mas sem realmente conseguir ver como a vê quem volta à terra, quem não mais está acostumado às tais belezas.

É claro que pode parecer exagero esse entusiasmo de paraguaçuense do estrangeiro. Pode até parecer piada. Aliás, pode virar piada. Num de meus passeios pela nossa região, não faltou quem fizesse pilhéria do deslumbramento dos ilustres visitantes de além-mar ali dentro do carro, isto é, o queixo caído dos expatriados temporariamente retornados. A gozação veio de um nativo, Adélio Mignacca Filho, irmão de Rosa e de Juliano Leite Mignacca, um “paraguaçuense ausente” residindo em São Paulo há muitos anos.

“Ah, Darinho, você com essa câmera que não para de clicar, e essa minha irmã que não para de ‘gemer’ aqui do lado… que esse verde ali é lindo demais, que aquela árvore lá é simplesmente fascinante. Qual é? Daqui a pouco vocês vão começar a tirar fotos de estrume de vaca e postar no FaceBook. Tô cansado de ver isso gente. Bobeira!”

No carro, não vi o semblante do Rodrigo Morais Leite, primo desses irmãos com quem eu revisitava o distrito de Guaipava depois de pelo menos 45 anos, mas imagino que ele, mesmo não sendo um expatriado, é um urbanóide, como Juliano, que também achava aquilo tudo maravilhoso.

O visual que juntos curtimos naquele passeio foi de fato fantástico. Quem duvidar é só procurar meus albunzinhos de fotografias no FaceBook. No fundo, o próprio Adelinho se contagiou pelo entusiasmo de quem se encantava com as curvas harmoniosas de tantas colinas que se desdobravam em enorme área visível a cada subida da estrada de terra batida, linda, soberana, por onde passávamos. Por ali nos víamos embasbacados diante da variedade de tons verdes do pasto, do café, do milho, da banana, do bambu e do feijão, entre muitos outros. Variedade dos tons de azul, branco e cinza do céu, que ameaçava fazer chover. Variedade do marrom-pastel das casas de tijolos expostos, dos cupins, ou das fornalhas de carvão vegetal.

Na verdade, minha mais recente viagem a Paraguaçu nessa última passagem de ano me trouxe o maior prazer que já tive até hoje em termos de redescoberta das belezas de nossa região -- da própria cidade e de suas vizinhanças, como o distrito do Pontalete. É uma vergonha, mas acredito que eu não tivesse ido, uma vez sequer, ali ao outro lado da represa de Furnas, desde que ela fora criada. Mas em duas semanas para o Pontalete eu me dirigi nada menos que três vezes – e que posso dizer? O caminho, que tem na sua rota o excepcional Restaurante do Diógenes, com sua vasta vista de 250 graus da região, é simplesmente imperdível, incomparável e inesquecível.

De fato, o trajeto agora é um tanto exótico, quase surreal, por conta da seca que não apenas fez ressurgir duas pontes que ficaram submersas ao longo de meio século, como também as tornou novamente úteis e necessárias para se passar sobre os rios Sapucaí e Verde, os leitos que formaram a desaparecida represa. Muitos foram meus passeios a pé pela cidade e arredores, pelas suas estradas de terra vermelha ou marrom, pela paisagem cartão postal deslumbrante para nenhum europeu, hispano-americano, norte-americano, asiático ou africano menosprezar. Para mim, fica, então, a lição: não deixemos de desfrutar do local onde vivemos, ou nascemos! E viva o arquétipo jungiano, porque de amor e consciência do que é de fato belo, não deixemos de ver nossa terra na sua maior aura de luz, cor e formosura.



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