domingo, 11 de fevereiro de 2018

Uma Borinzada a Zero Grau



Uma Borinzada a Zero Grau

“Help! I need somebody, help” – eu gritava da varanda da nossa casa! Não queria parecer estúpido para ninguém, ali sozinho, a zero grau. Mas como não? Eu não tinha escolha! O jeito foi apelar para os versos de uma famosíssima canção existencial dos Beatles, de 1965. A persona criada por John Lennon e Paul McCartney está se sentindo só e insegura, então pede ajuda! Diz ela que passada a juventude, veio o bode. Agora o eu-lírico se encontra muito mal, mas resolveu abrir as portas da mente e procurar uma saída  ̶  para pôr de novo os pés no chão e tocar a vida. Abrir as portas literalmente e pôr o pé no chão do primeiro andar era o que eu precisava agora. Do segundo andar eu gritava, e gritava, em inglês, como os Beatles, com pequenas variações ao tema principal:
̶  Socorro, por favor! Sou Dário Borim Jr., seu vizinho da rua Anthony! Estou trancado na varanda da minha casa! Tá frio aqui! Um telefonema é só o que eu peço. Por favor!
Essa mensagem eu cortei, recortei, embaralhei e repeti umas cem vezes, durante mais ou menos uma hora e quinze minutos, entre 10h30 e 11h45 da manhã de ontem. Enquanto isso, eu dançava com marchinhas e sambas na cabeça, daqueles clássicos que toquei no meu programa de rádio, ontem. Ou, para variar um pouco, eu mexia as pernas e os pés como se estivesse me aquecendo e me aprontando para um jogo de handball das Olimpíadas de Paraguaçu! Às vezes eu resolvia me distrair, cantando em voz alta:
̶  “Bandeira branca, amor, não posso mais. Pela saudade que me invade eu peço paz…”
Tudo começou quando eu acabava de preparar a casa para receber as faxineiras açorianas, Mônica e Maria. Não sei se são lésbicas, mas parecem. Não é da minha conta, mas se são, dou crédito especial a elas. O mundo precisa ficar cada vez mais aberto para as várias possibilidades do amor e da vida a dois  ̶  ou a duas! Saravá!
O fato é que a chegada delas, as açorianas, marcada para 11h30, seria a minha redenção. O frio de zero grau  já começava a me incomodar. Um conjunto de moletom fininho (calça e blusa) não seria suficiente para me garantir o mínimo conforto, ali em pé, durante horas, principalmente quando o vento soprava e a sensação térmica devia cair para uns cinco graus negativos!
Bom, eu dizia que a preparação para a faxina estava pronta. Isso acontece porque Ann, minha esposa, e eu não somos de deixar a casa bonitinha o tempo todo. Muita gente criativa acha que é meio perda de tempo passar a vida organizando a vida. Então, em dia de faxina, os donos da casa fazem um exercício preparatório que inclui a retirada de alguns items do chão, das mesas, do balcão e das pias da cozinha, por exemplo, para que a Monica e a Maria não percam tempo com essas atividades e saiam daqui de casa o mais cedo possível, depois de no máximo umas duas horas de limpeza pesada apressada.
Então, como última ação coercitiva pré-faxina, eu pus a cesta de roupa suja no piso de madeira da nossa varandinha, um espaço de uma única parede de madeira e o resto de tela, onde eu me encontrava. É uma área de aproximadamente 3 x 2 metros adjacente ao nosso quarto de dormir. Ali fora, sem saber do mal que iria me causar, fechei a porta entre a varandinha e o quarto, enquanto posicionava a cesta para fora do alcance da chuva. Ela anda caindo por aqui nesses dias de “veranico” em pleno inverno  ̶  quando, por exemplo, o termômetro sai da casa dos 10 graus negativos e sobe até os cinco graus positivos. Ontem rondávamos a marca do zero grau, como disse. Ainda bem que foi dia de veranico, porque se meu descuido tivesse acontecido duas semanas atrás, eu teria corrido risco muito maior, sob um frio capaz de matar ou alejar um ser humano em menos de uma hora!
Se para você, que lê essa crônica, nada do que eu disse lhe foi útil, aqui vai uma mensagem de alerta: cuidado, mas muito cuidado mesmo, com um tipo muito comum de tranca aqui nos Estados Unidos. Foi esse tipo que quase me jogou no abismo. Ela funciona assim: quando você deixa a porta trancada (não apenas fechada), essa porta pode ser aberta a qualquer hora, sem problema, pelo lado de dentro. Mas cuidado: quando você abre a porta desse modo, pelo lado de dentro, a tranca não destranca! Imagina que coisa louca, para muitos de nós brasileiros. Repito: mesmo com a porta aberta, a tranca continua trancada. Se você quiser, pode destrancar a porta por dentro, sem qualquer chave. Mas se antes de sair você se esquecer de fazer essa ação coercitiva (está na moda essa expressão no Brasil, por isso a repito), você fechar a porta e ficar trancado do lado de fora!
Foi exatamente aquilo o que aconteceu comigo naquela manhã de grau zero, e sem saída! Eu tinha por acaso verificado a previsão do tempo antes. Aqui no norte dos Estados Unidos levam-se muito a sério essas coisas, por causa dos riscos cridos pelo frio assassino, pelos furacões, etc. Por isso eu sabia que o frio não ia piorar nas próximas horas, e algumas horas exposto a zero grau eu não ia morrer, ou perder pés e mãos queimados pelo frio, como pode ser o caso de hipotermia nessa parte do mundo. Mas eu não queria ficar feito bobo, sem telefone, sem o que fazer, enquanto congelava o meu rabinho na varanda da minha casa!
Então pensei em minha mãe. Várias vezes ela me disse que meu Anjo da Guarda era forte! Sem dúvida! Já foram tantos os meus percalços e aproximações à morte! Por exemplo, aos sete anos, no antigo Cine Íris, caí de uma escada e fraturei um osso do crânio, o que me obrigou a tomar choques elétricos na face ao longo de seis meses, para consertar a minha boca torta e reverter uma terrível paralisia no lado direito da face. O anjo trabalhou muito, e fiquei bom, ou quase bom, exceto pela surdez parcial e pela loucura discreta. (Essa última parte é brincadeira, viu?)
De moto em Belo Horizonte, aos 20 anos de idade, eu bati em dois carros de uma vez: o meu joelho num deles, e a minha Honda (a Magrela) no outro. Voei um pouco, só por uns quatro ou cinco metros. Mas como estava de capacete, o único estrago foi uma fratura no joelho. Aquilo só deu em quarenta e cinco dias de gesso, do calcanhar à virilha, mas nada muito sério.
Por último, isto é, só para limitar essa ladainha de acidentes a apenas três eventos das múltiplas ações coercitivas (de novo?) do meu Anjo da Guarda, vale lembrar o dia em que eu jogava tênis em parceria com meu irmão, José Carlos, também conhecido como Tatau, ano e meio atrás. Nós apanhámos terrivelmente de seu filho, Daniel. Naqueles que teriam sido provavelmente os últimos segundos da partida (da coça), ainda que uma quase-tragédia não tivesse acontecido, corri de costas para o fundo da quadra na tentativa de rebater uma bola para lá forçada. Em velocidade, tropecei e fui caindo para trás a todo o vapor. Infelizmente uma parede de alvenaria estava no meu caminho. Cheguei a ela quando meu corpo já estava na vertical. A pancada foi forte. Levei 12 pontos no coro que antes já fora cabeludo. Perdi a consciência por uns cinco segundos. Assim disse meu irmão, que é engenheiro e sabe dos números. Ele e Daniel correram comigo para o hospital, depois de um balde d’água para sair do perigoso sono. Foram constatadas três fraturas no meu braço esquerdo. Nada pior, graças a meu Anjo da Guarda, claro.
Naquela varanda, o Anjo da Guarda também trabalhou para o meu bem. Havia ali a cesta de roupa suja. Fui verificar os ingredientes e, para minha imediata satisfação, achei uma camisa e uma blusa de moletom, além de dois pares de meia. Vesti os quarto itens rapidinho, para diminuir o incômodo do frio. Tinha até uma calça jeans, que tentei vestir. Mas não deu. Era do tipo apertadinho, estilososo, e a calça jeans que eu usava era do tipo soltadão, folgado. Teria que tirar uma calça para pôr a outra e depois repor a primeira. Muito trabalho, além de que a segunda calça já estava é muito fria pro meu gosto!
Ah, na verdade eu estava é muito bem, tranquilo, porque literalmente não morreria de frio, e a minha fuga aconteceria  mais cedo ou mais tarde. Mônica e Maria poderiam atrasar, poderiam até não vir por motivos de força maior, como doença, mas eu pensava positivo. Seria uma hora ou pouco mais de espera. Mole para nós! Mesmo assim resolvi pesquisar as minhas chances de quebrar a porta ou rasgar a tela e “fugir” para o telhado da casa. Essas alternativas não eram muito boas. A porta é do tipo francês, com vidro temperado. Uma nova ia custar uma boa nota. Do telhado do segundo andar para o chão era uma altura razoável. Ia quebrar as minhas pernas já meio frágeis de homem se aproximando dos 60 anos.
Por isso tudo era melhor eu gritar “help me, please” sem parar, na esperança de que algum dos vizinhos saísse de sua casa e me ouvisse e chamasse Ann para me salvar! Mas nada! Eu só conseguia assustar a Minnie, coitadinha, nossa cachorra da raça golden retriever presa na frente da casa há quase duas horas. Ela me ouvia mas não via, muito menos me entendia o drama!
Com as janelas hermeticamente fechadas por conta do inverno, ninguém me ouviu. Ninguém passou com seu cachorro em frente à nossa casa, tampouco. Lá do outro lado, naquela varandinha, eu poderia ver se alguma alma por caminhasse pela rua. Carregando um celular, a pessoa me daria a liberdade de volta com uma simples chamada. Tinha certeza que Ann teria piedade de mim e deixaria a sala de aula para vir rapidinho aliviar o seu marido avoado.
Enquanto eu dançava para esquentar e gritava para sair da jaula, as faxineiras chegaram! Que maravilha! Assim que ouviram meus gritos correram para o fundo do quintal para me achar vivo e saber como poderiam me salvar! Sorri um sorriso bem aberto, claro, bem iluminado! Eu mal consegui esconder minha emoção! Nunca o fim de algum samba ou marchinha me deu tanta alegria!
Mas espera aí, pensei! Havia mais um momento de tensão a me desafiar. Mônica e Maria não têm nenhuma chave da casa! E eu não sabia se pelo menos uma das duas portas, a da frente ou a do fundo, estava destrancada! Caso ambas as portas estivessem lacradas, Ann teria que vir da escola, para que as senhoras trabalhassem e o marido dela voltasse à sua típica alegria de viver!
E não é que o Anjo da Guarda me deu mais uma força? A porta dos fundos estava destrancada, e logo me vi “bem quentinho” dentro da minha casa, sob o calor do providencial aquecimento central a gás e das quatro roupas esquentando o peito, além dos três pares de meia (um de lã, viva!) e um boné preto, que desde o nascer do sol protegia a minha careca das perigosas intempéries do norte do Hemisfério Norte. Aleluia, meu Anjo da Guarda! Mais uma vez lhe agradeço a ajuda! E mais uma vez espero não precisar mais dela no futuro, aos dissabores de mais uma perigosa mancada, descuido típico de nossa família que há muitos anos simplesmente chamamos de “borinzada”!

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