Anjo
Loiro de Pé Sujo:
Uma
Minibiografia de José Carlos Borim
Não
se sabia o sexo do próximo rebento a nascer naquela época, lá pelos fins da
década de 1950. Menina ou menino, chegaria mais um bebê ao lar de Lucci Prado
Mendes Borim e Dário Foresti Borim. Já tinham vindo três meninas. Uma, a Vana
Lúcia, faleceu acidentalmente na primeiríssima infância. As outras duas
vingaram: Silvana, a mais velha, e Silvinha, a segunda mais velha, de uma
família que seria de cinco filhos.
Deus ia ajudar: era a hora de um macho! A reza
foi tanta que veio um varão muito especial, que se tornaria um bom partido: um
jovem engenheiro eletrônico de 25 aninhos de idade pescado por uma mocinha
também muito especial, uma estudante de Edificações. Essa é Jaqueline Santoro
Quintão, esposa dedicada de mil e quinhentos talentos, uma adorada figuraça que
organizou esta súper festa e me convidou para redigir essas mal traçadas linhas
sobre a vida de meu irmão.
Mas esperem aí. Muita água rolou antes daquele
dia chuvoso de novembro, quando os dois prometeram fazer uma forte trança das
cordas de seus destinos e juntar os trapinhos na bela Igreja de Lourdes.
Vamos então voltar a 1958. José, sim – José se
chamaria o neném em homenagem ao santo marido de Maria, o pai-adotivo de Jesus
Cristo, que segundo a Igreja Católica, tem o papel de intervir a favor dos que pedem
uma importante graça a Deus. Aliás, “acúmulo de bens nas mãos de Deus” é o
significado de “José” em hebraico. De
acordo com certas passagens bíblicas, São José teria sido um sujeito exemplar:
muito trabalhador, cheio de fé, e grande protetor de sua família. Por estas razões,
São José tornou-se venerado como padroeiro universal, não só pelos católicos,
mas também pelos cristãos anglicanos e ortodoxos.
Aquele José de
1958 não estaria sendo moldado para ser santo. Isso não! Talvez o fosse, se não
fosse o Carlos, seu segundo nome. Muito mais laico e prosaico, “Carlos” é de
origem franco-germânica e significa “homem livre.” Homem livre e santo não
combinam muito bem para a beatificação. Deve ser por isso que José Carlos, ou,
ZECARS, no dialeto de Paraguaçu, virou Rei em terras mineiras e capixabas! Rei
por quê? Uai, tô aqui é pra contar isso mesmo. Resumindo já de cara: o meu
irmão é loiro, alto, magro, calmo, inteligente, marajá, simpático e de coração
muito bom, e de olhos muito verdes! Quer mais?
Tem mais. Nossos
pais o ajudaram muito, sempre. Seus irmãos o amaram muito, sempre. Amava-o de
modo muito especial a nossa irmã que veio na raspa do tacho, a Ana Beatriz, uma
estrela saudosa que hoje muito brilha lá no céu. E olha que ele ainda tem um
irmão, de quase a mesma idade, que muito se inspirou nele. A reza pra nascer um
“macho” extrapolou um cadim e logo chegou mais um, o Dário Borim Jr., o vulgo
Darim que lhes dirige a palavra, um contador de histórias meio-boêmio e
meio-poeta – pior ainda, meio-gringo. A felicidade de nossos pais era tão
grande com a chegada do loirinho, que mandaram brasa: comemoram muito bem o
presente de Deus e seis meses depois daquele dia 4 de junho de 1958, bingo: lá
estava encomendado mais bichinho pro ninho!
Tatau, assim
apelidado pela avó paterna, Drosiana Foresti Borim, e eu, que carrego a honra
do nome de nosso pai, passamos por muita coisa juntos pela proximidade da
idade. Mais da metade não dá pra contar aqui não. Não passa na tesoura da minha
auto-censura ou no filtro do bom-senso. Zecars já é aposentado, mas isso não quer
dizer que chutou o balde, né? E eu preciso manter a classe e preservar o meu
ganha-pão de professor universitário da Universidade de Massachusetts por mais
uns seis ou sete anos, antes de eu também pendurar as chuteiras. A outra
quase-metade das nossas travessuras eu vou tentar resumir aqui pra vocês, sem
exagero, que é pra não nos comprometermos além do inevitável.
É claro que a
história aqui é a dele, e vou ter o cuidado de proteger a imagem do meu
irmão-herói, até certo ponto. Afinal de contas, contador de causo gosta de pôr pimenta
na sopa, e estamos todos aqui é para rir e sorrir juntos, na mesma onda de felicidade
desse cara muito bacana, um sujeito que chega aos sessenta anos com cara e
corpo de rapazinho e com sede de viver e caminhar por todo esse mundaréu velho
sem porteira.
Então chega de
nhenhenhém. Vamos aos particulares. Zecars teve uma infância cheia de imaginação
e aventura. Gostava de brincar com os indiozinhos de plástico que vinham no
fundo dos vidros do gostoso achocolatado Toddy. Até os quase treze anos ele imaginou
e criou partidas de futebol sobre uma mesa entre os tais indígenas de 4 cm de
altura!
Tatau também tinha
seu jeito de se divertir mais radicalmente! Lá em Paraguaçu, no sul de Minas,
onde passarim canta assim, pir-pir-pir, ele e eu tivemos alguns ímpetos de
sadismo infantil, muito na moda nos velhos anos 60. Juntos com nossos amigos, caçávamos
e, algumas vezes – que vergonha – matávamos alguns dos pobres passarinhos a
tiros de estilingue. Às vezes um gato ou outro também era sacrificado, em nome
de uma pele que não era pra fazer tamborim. Sei lá pra quê que era. Deus nos
perdôe!
Futsal e futebol
de campo faziam parte do nosso dia a dia, é claro. Lá em casa, rolava uma
espécie de academia de futebol. No fundo do quintal, a garotada, às vezes um
grupo de 14 ou 15, jogava por horas a fio. Tatau sempre foi um bom jogador, e
se destacava. Era orgulhoso dos seus dribles e chute forte. Nossos times às
vezes jogavam em cidades vizinhas e disputavam as olimpíadas em Paraguaçu. No
meio de carinhas cheios de manha, Tatau era honesto, mas achava que eu era
ainda mais honesto nas horas de disputa sobre o que teria acontecido e o que
não teria acontecido no jogo. Ela falava assim: Darim não mente; é Lobim. Nós
dois fomos lobinhos, uma curta passagem inicial pela carreira de escoteiro que não
vingou. Aquilo era certim demais para o nosso gosto.
Além do futebol, o
talento de Tatau foi de grande destaque em partidas de xadrez. Éramos tantos os
aficcionados pelo jogo, que
realizávamos campeonatos também lá em casa. Um bom número de adolescentes, como
nós dois mesmos, disputavam os torneios que incluíam feras mais experientes,
homens nas faixas dos 50 e 60 anos. Tatau era um dos melhores e se tornou
campeão em muitas ocasiões.
Por essa época o
Zecars também já vivia uma tremenda paixão por eletricidade e eletrônica. Quando
criança, brincava com vitrolas quebradas e dizia que um dia seria engenheiro
eletrônico. Tinha uma boa dose de inspiração para essa carreira em tenra idade
por conta do nosso tio Savinho, irmão de nossa mãe, que estudava eletrônica em
Santa Rita do Sapucaí, onde ele mesmo, Tatau, foi estudar aos 15 anos. O meu
irmão levava muito jeito, vocês precisavam de ver! Juntava peça de equipamento
quebrado daqui e dali, botava os neurônios pra funcionar, e de repente aparecia
com um novo amplificador de som para as nossas brincadeiras dançantes, que
também tinham coloridos holofostes estroboscópicos sob sua maestria.
Nossos pais tinham
tanta paciência e confiança na gente! Era impressionante! Nas férias e
feriados, dançávamos de rostinho colado, uma galera de 12 a 15 adolescentes, ao
som dos Bees Gees, Marvyn Gaye, Roberta Flack, Pink Floyd, e um forrozinho do Alceu Valença e do Zé
Ramalho. O pessoal da cidade de Paraguaçu fazia fofoca. Falavam que rolava
muita droga naquelas nossas festinhas nos anos 70. Mentira pura! Éramos de uma tremenda
inocência, gente! Apesar do tesão arretado, ainda vivíamos sem sexo e sem
drogas, apesar de muito rock’n’roll! É claro que isso mudou quando mudamos para
a cidade grande. Mas esse é outro capítulo. Chegaremos logo lá.
Antes, vamos
visitar Santa Rita do Sapucaí. Aquela cidade nunca mais será a mesma depois que
meu irmão e companheiros da eletrônica estudaram lá. A turma era séria nos
estudos, mas muito alegre e bagunceira! Faziam coisas que assustavam a
população, como no dia em que compraram caixas e mais caixas de sabão em pó pra
jogar na fonte da cidade. Quando já era noite, e chegava a hora de acender a
fonte, os aventureiros estavam de tocaia. E foi aquela explosão de espuma na
praça, sem que nenhum dos nativos soubesse por quê.
Tatau adquiriu o
apelido de Gambá foi naquele ambiente, vamos dizer, insalubre. A turma não
gostava de varrer ou lavar nada, e o par de tênis preto dele fedia adoidado. Os
amigos não perdoaram e lhe deram a alcunha de Gambá. Na verdade, o convívio no
alojamento só de homens deixou o meu irmão um pouco desumanizado, foi minha
conclusão quando eu já morava com nossa mana Silvana em Belo Horizonte. Graças
a ela, sempre paciente e gentil, eu já tinha aprendido a ser um pouco menos
“selvagem” do que fora nos tempos de Paraguaçu, mas Zecars ainda tinha um longo
percurso pela frente. Nada melhor do que morar com mulher pro homem saber que
não pode limpar o nariz na toalha de mão! Nem deixar o vaso moiadim depois de
uma visita ao sanitário. Paro por aqui nesse capítulo!
O outro capítulo foi
mais apimentado, com outros resquícios, em Beagá, da vida do aventureiro de
Santa Rita. Já na faculdade de engenharia, e já trabalhando como técnico de
eletrônica, Tatau ainda achava tempo pra fazer pura sacanagem pelas ruas de
Beagá. Por exemplo, quebrar e coletar antenas de carros e mandar rolar pneus
velhos morro abaixo na avenida Afonso Pena. Cruz-credo! Ainda bem que passou
essa fase!
Veio a fase seguinte,
em que meu irmão instalava antenas de rádio para comunicação em fazendas
isoladas do resto do mundo. Tatau era dono de um fusca verde, ao qual deu o
apelido de Alfredo. Certa vez fomos nele a uma vila no interior do Bahia.
Tivemos que seguir uma caminhonete em que fazendeiros carregavam gasolina para
eles próprios e para nós, porque os militares tinham decretado a proibição da
venda de combustíveis aos domingos. Que dureza tentar não perder de vista a
pick-up dos homens naquelas estradas empoeiradas, sem placas e iluminação, em
pleno sertão!
Tatau foi se civilizando
com rapidez na capital, ao ponto de ser convidado para dar aulas de eletrônica
numa escola de ensino médio profissionalizante, a UTRAMIG. Lá fez nome de
excelente professor, e lá conheceu a tal namorada que lhe inspirou outra
atitude na vida. Mais jovem do que ele, mas muito esperta e determinada,
Jaqueline foi fundamental para exigir e solidificar o amadurecimento do
namorado mais velho. Morávamos ele e eu numa república na rua Ceará, quando se
conheceram. Isso foi em 1980, depois de termos feito dezenas de festas de
arromba numa outra república onde moramos alguns anos, na Avenida Augusto de
Lima, perto da praça Raul Soares.
As festança tinham
sido homéricas e às vezes escandalosas, lá no Barro Preto. Foram com grandes
amigos do peito, como os presentes aqui, como Henrique Prado, Mairon Leite,
Geraldo Faraci e Batista Vaz. Outros de nossos amigos, menos queridos e menos disciplinados,
chegaram até a ser declarados, oficialmente, pessonas non-gratas pelos administradores do condomínio. Tatau
ainda era um tanto rebelde nessa época e liderou uma campanha anticoercitiva
junto ao administradores do condomínio para que não fôssemos expulsos do
prédio. Saímos, sim, mas por pura e espontânea vontade de morar melhor do que
lá. Assim passaríamos um ano alugando outro apartamento, no nobre bairro de
Funcionários. Ali nosso comportamento foi um pouco mais decente, mas com
certeza longe de qualquer expressão de nobreza.
Da rua Ceará,
Tatau se mudou para a Cidade Nova. Já ganhava bem e tinha condição de pagar
aluguel sozinho, sem a desorientação ou outras más influências dos companheiros
de farra. Todos estavam começando a virar gente, afinal de contas. Eu mesmo precisei
sair do país para virar gente! Nessa época de redenção geral, o início dos anos
80, meu irmão concluiu o curso de Engenharia Eletrônica na Universidade
Católica de Minas Gerais, curso que sempre fez à noite, com extremo esforço e
dedicação, após cada jornada integral diurna de trabalho.
Diplomado, ou
quase diplomado, não me lembro, Tatau quase conseguiu um excelente emprego. Foi
finalista para uma posição na IBM. Passou em tudo e muito bem, mas a psicóloga
o reprovou. Quando lhe perguntaram o que ele mais queria num futuro próximo, ele
disse, bem humorado, que nada menos do que passear numa van lotada de mulheres
bonitas e simpáticas. Acharam-no um pouco imaturo, acredito.
Logo veio o dia em
que Zecars abriria uma firma de conserto de aparelhos eletrônicos. Não deu muito
certo, e não faltaram algumas irresponsabilidades ecológicas no tratamento do
lixo tóxico, especializado. Deixemos isso pra lá. Tá na hora de falar de mais coisas
boas. E são muitas!
Tatau e Jac logo se
casariam. Todos nós gostávamos muito dela, e nossa mãe punha muita fé no poder
da norinha na hora de salvar o filho da farra. O mesmo –
ela, d. Lucci – pensaria em relação a minha namorada
e futura esposa, a gringa Ann. Jac conseguiu, sim, e muito bem, realizar o
sonho de d. Lucci! Tatau foi contratado por uma mineiradora alemã, a Ferteco, com
planta perto de Ouro Branco, e logo se tornaria um super-star daquela poderosa
empresa. Chamado de José ou de Borim, meu irmão só crescia ali dentro. O homem
era um gênio na hora de desenvolver circuitos eletrônicos e achar soluções
eletro-mecânicas para os problemas seríssimos e caríssimos de uma companhia de
grande porte e capital multinacional.
Mesmo ainda muito
jovem, Tatau tornou-se chefe de muitos engenheiros. Assumia cada vez mais pesadas
responsabilidades nas costas o rapaz que tanto se modificou naqueles anos. Com
relativamente pouca colaboração dos patrões, ele concluiu – e com muito mérito –
um Mestrado em Automação pela UFMG. Nessa específica área do conhecimento
tecnológico, meu irmão caminhava a galope rumo a uma posição de destaque no
panorama nacional. Muitas glórias profissionais estavam pela frente e lá
chegaria aquele dedicado – e quase chato de tão fanático – engenheiro
eletrônico de minas. Tatau se tornara para alguns de nós um verdadeiro Gambá
eletrônico!
Tatau e Jac
viveram muito bem (e por muitos anos) numa vila daquela mineiradora e, claro, vieram
os filhos. Daniel e Flávia trouxeram muito agito e muita alegria para o casal.
Era um tempo de dedicação a eles e à exigente Ferteco, mas havia muitas horas
para boas partidas de tênis e algumas festas bem comportadas naquela
confortável casa, em aconchegante condomínio nas montanhas de Minas. Vieram
outros tipos de festas, também, algumas delas patrocinadas pela mineiradora. Tatau
gostava de cantar, embora meio desafinado, e de contar “causos” de zombaria ao
microfone. Às vezes se excidia no grau etílico e fazia sinistros elogios aos
patrões alemães. A pequena fornalha rebelde do meu irmão estava sob controle,
quase apagada, mas ainda assim emitia algumas raras faíscas bem divertidas e
sardônicas em inesquecíveis churrascos de confraternização entre funcionários e
amigos.
Um dia a gigante
Vale comprou a mineiradora alemã, e logo Tatau e Jac foram morar por vários
anos na beira de uma praia de Vila Velha, Espírito Santo. A carreira dele
seguia de vento em popa. Com olho no grande potencial do jovem engenheiro, a
Vale lhe recomendou e incentivou a fazer mais um mestrado, esse em
Administração de Empresas, um MBA. Zecars na verdade já tinha atingido grande
distinção profissional não só no plano nacional, como também grande autoridade
em Automação no plano internacional. Agora ele fazia palestras e coordenava
importantes projetos de expansão ou de reparos técnicos em plantas espalhadas
pelo Brasil de cabo a rabo, e pelo resto do mundo, entre América do Sul e Ásia,
África Oriental e Oriente Médio, ou América do Norte e Europa Central.
Quando podiam
estar juntos, apesar de serem tantos os compromissos dele fora do Espírito
Santo, Tatau e Jac se divertiam naquele delicioso ambiente de cidade praiana. Algumas
das lembranças mais fortes que o casal deve ter daqueles anos, penso eu, advêm
das caminhadas pelas montanhas da região e dos sabores de peixes frescos que
comiam junto à orla, especialmente o peruá frito do Antônio.
E foi por lá mesmo
que aos poucos o casal Jac e Tatau foi se tornando mais viciado em caminhadas
quilométricas. Um dia voltaram, então, de mudança para Belo Horizonte e se logo
filiaram a um grupo de caminhantes de quase só mulheres, o que deixa o meu
irmão se sentindo como se fosse dono de um harém. Seria agora a realização
daquele sonho de uma van lotada de beldades? Jac não liga não. Aliás, adora – a
mulherada é ainda mais amiga dela do que dele, e todos se divertem pra valer.
Agora o nosso ilustre
biografado pendura as chuteiras, e assim entra para o panteão dos sexagenários
aposentados bem de vida. Como ele e Jac merecem esses privilégios! Tatau já está
pronto para muitas caminhadas nacionais e internacionais! Enquanto isso, é
muito feliz e faz muita gente feliz ao seu lado. Na condição de irmão e
cunhado, só tenho elogios para esse casal nota mil! E nem tenho como agradecer a
Jac, por salvar o nosso anjo loiro de pé sujo, e também ao Tatau, pelo tanto
que já fez por mim. Este Contador de causo, apesar de tudo o que se disse antes
sobre o irmão mais velho, ainda era um pouquinho mais farrista e mais aventureiro.
Sobrevivemos os dois, uai, e de letra! Então, gente: benze a Deus! E saravá!