quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Nefasto desejo de fim de ano

 

Nefasto desejo de fim de ano

 

Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu  

Nesta quarta-feira em que um amigo muito especial já se encontra em outro plano de existência, acordei mais triste do que esperava estar. Quase uma semana depois de sua partida, tive, há poucos minutos, um desejo de fim de ano. Precisei escrevê-lo para compartilhar com alguém a minha angústia. Juro, não é uma questão de vingança. Desculpem a franqueza do que vou-lhes dizer!

Hoje ainda é dia 30 de dezembro. Portanto, o ano de 2020 ainda não acabou. Mas, pelo que mais o marcará na história da humanidade, o drama desses terríveis meses não vai acabar com a passagem do ano. Eu tenho certeza disso, e muitos de vocês também, por vários motivos, mas mesmo assim já tenho um desejo para a entrada do ano novo, sempre tão comemorada por muitas e diversas culturas mundo afora e muitas vezes tomada como momento para pedir benesses e redenções pessoais. Muitas comemorações desse ano, claro, vão ser, infeliz mas inevitavelmente, diferentes. E isso é mais do que preciso. Porém, sabemos: muita gente não vai colaborar. É principalmente para essas pessoas que agora escrevo.

Em meus dois países do coração, nada menos que meio milhão de pessoas já sucumbiram ao coronavírus desde março (quase 200 mil ao sul da linha do Equador, e quase 300 mil ao norte). Tenho muito amor pela terra e pelo povo que mora ou no maior país da América Latina, ou na nação mais populosa da América do Norte. No primeiro, vivo existencial, emocional e intelectualmente desde o meu nascimento ao fim da década de 1950. Vim ao mundo lá pelas verdes colinas do Sul de Minas, de onde nunca saí, tanto pela forma com que ganho a vida quanto pelos sentimentos e preocupações constantes com a gente que mais amo. No segundo país, me vejo presencialmente desde o meu renascimento educacional, pessoal e profissional, mudança radical que tomou seu maior impulso junto às Montanhas Rochosas do Wyoming, trinta e oito anos atrás. É mesmo uma segunda vida, não?

Mas vejam bem: a questão não é nacionalismo, como querem equacionar nossos dois atuais presidentes, Jair Bolsonaro e Donald Trump, que em comum tanto têm de ignorância, insensibilidade e maquiavelismo. O problema é maior, é mundial, é da espécie humana. Os hospitais de todo o planeta, com poucas exceções, estão sofrendo de uma hemorragia que não vai se estancar em tempo de evitar novos milhares de mortes a cada dia, sim, a cada dia, pelos próximos meses, até que as novas vacinas nos salvem de uma tragédia coletiva muito maior do que a já causada pela atual pandemia.

Enquanto isso, milhares ou, possivelmente, milhões de indivíduos negaram e ainda negam a existência ou gravidade da tragédia, e, os mesmos (ou quase os mesmos) milhares ou milhões também se opuseram e ainda se opõem ao uso de máscaras e distanciamento social. Agora, mais recentemente, muitos deles são contra e fazem propaganda para descrédito das vacinas que já começaram e vão algum dia salvar todo o mundo.

Então chegou a hora e vou direto ao meu mais nefasto – mas sincero – desejo de fim de ano. Naturalmente não sou Deus, nem com maiúscula, nem com minúscula, mas por uma questão de justiça cósmica, e por uma questão de lógica sanitária e evolutiva da espécie humana, desejo que nesse ano que se inicia, em menos de 48 horas, que morram primeiro os tais milhares ou milhões de indivíduos que citei acima.

Sim, eles merecem pelo menos se infectarem e então terem que torcer muito pelo seu Deus, com maiúscula ou com minúscula, pois, se o caso da doença for sério e eles precisarem de tratamento hospitalar, então não será nem minimamente justo que tais indivíduos tenham acesso às CTIs de nenhum hospital do planeta! Desejo que não se salvem do vírus algoz (pois foram amigos dele), se para sua sobrevivência tenham que se afogar ao léu e falecer por falta de atendimento médico outros milhares ou milhões que pensaram e agiram tanto em proteção da própria pele quanto na preservação da saúde da família, dos vizinhos e da humanidade como um todo. 

Mas, esperem. Tenho uma ressalva: não quero ser maniqueísta. Desejo então que no fim (ou, até com mais clemência, fora) dessa fila dos condenados sigam aqueles indivíduos que adotaram tal atitude negacionista, as pessoas que negam ou não aceitam como verdadeiros os conceitos comprovados cientificamente, por uma questão de desconhecimento ou inocência diante do discurso político sedutor de nossos dirigentes e seus comparsas, gente que tragicamente confunde liberdade com irresponsabilidade.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Aproximações de Clarice Lispector

Aproximações de Clarice Lispector:

Um depoimento à Fundação Joaquim Nabuco

 

Clarice Lispector

Luta sangrenta pela paz, 20/maio/1975

Óleo sobre madeira (Acervo Fund. Casa de Rui Barbosa)


Minhas conexões com a obra de Clarice Lispector se iniciaram na adolescência, quando, poucos anos antes de ela falecer, decifrei e me deleitei com alguns dos enigmas de Perto do coração selvagem. Na época eu lia, sem saber, vários dos títulos que a tinham influenciado profundamente naquela mesma fase instável de formação, que Clarice passou entre o Recife (de onde saiu aos 15 anos) e o Rio de Janeiro (onde floresceu como escritora). Eu mesmo me mudara, também aos 15 anos, de Paraguaçu (cidadezinha no Sul de Minas), para Belo Horizonte (a moderna capital dos mineiros). Absorvemos, os dois, ela nos anos 30, e eu nos 70, um bom número em comum de narrativas inesquecíveis, como Crime e castigo, de Mikhail Dostoiévski, e Siddhartha, de Herman Hesse.

Clarice, que essa semana completaria 100 anos, infelizmente nos deixou muito cedo, um dia antes de completar 57 anos, isto é, só um pouco mais jovem do que estou eu, no momento. No ano de sua morte, também partiu deste mundo um dos grandes amigos-poetas de Clarice, Carlos Drummond de Andrade. Naquele mesmo ano de 1977, eu me formava em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, e logo me sentiria um tanto desnorteado intelectualmente diante de enorme perda, a de dois dos maiores poetas brasileiros, ele, do verso, e ela, da prosa.

Enquanto professor universitário, minha ligação com a poeta-em-prosa Clarice Lispector tem passado por modestas, mas, afáveis experiências. A primeira vez que utilizei seus textos em sala de aula foi quase 30 anos atrás. Eu dava meu primeiro curso de literatura na vida. Foi na Universidade de Minnesota, no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Tratava-se de uma disciplina eletiva da graduação voltada para a criação poético-musical de Caetano Veloso, autor sobre o qual Clarice exerceu significativa influência. Naquela ocasião lemos Laços de família, meu favorito entre os seus livros 27 publicados em vida.

Até recentemente, enquanto pesquisador eu não tinha dedicado muita atenção à obra de Clarice Lispector, mas desde os tempos de Minnesota tenho trabalhado com o seu legado em cursos de bacharelado. Enquanto isso, foram surgindo oportunidades de fazer algumas palestras na Europa e nos Estados Unidos e de escrever algumas crônicas sobre a autora. Também publiquei, no Peru, um ensaio acadêmico sobre a linguagem figurativa no conto “A imitação da rosa”.

Atualmente ministro um seminário na pós-graduação, aqui na Universidade de Massachusetts Dartmouth, que é todo voltado para a crônica brasileira. Clarice já teve um grande destaque nos nossos debates. Nos últimos dois meses tenho pesquisado essa parte do seu legado, suas inusitadas crônicas. Ademais, há duas semanas fiz uma palestra sobre o tema no Colóquio Laços com Clarice, um evento organizado por três instituições: a nossa, o Instituto Federal de Pernambuco, e a Universidade Federal de Alagoas.

Resta-me confessar que me encontro mais apaixonado do que nunca pela obra de Clarice Lispector. Acredito que esse entusiasmo e prévios estudos que fiz sobre a crônica enquanto gênero híbrido para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos nos últimos dez anos poderão resultar em um novo livro. A cada dia não vejo a hora de explorar a audácia, complexidade, criatividade, inovação e profundidade dos escritos claricianos que inicialmente apareceram em jornais e revistas do Rio de Janeiro. Espero, assim, contribuir para amenização do preconceito que ainda subexiste, em geral, contra a crônica enquanto expressão artística, e, em particular, contra aquela vasta e fascinante – porém, pouco estudada – porção da obra de uma imortal da literatura mundial.

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