Sábado de
Carnaval em Tempos de Chumbo
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Eram oito minutos
para a meia-noite, quando meu filho mais velho, Ian, escreveu-me uma mensagem
via Messenger, do Facebook. Eu já dormia há pelo menos uma hora, sem sequer
lembrar, na cama, que era noite de Carnaval. Fora impensável que algum dia
antes da velhice aguda ou de qualquer caduquice precoce eu pudesse passar uma
noite dessas em branco, sem uma caipirinha ou um velho samba qualquer. Mas os
nossos tempos andam um tanto lúgubres, e isso, o tal lapso, de fato me
aconteceu sem choro e sem vela, pelo menos por enquanto. Neste momento,
entretanto, a melancolia e um profundo desapontamento com a raça humana são os
sentimentos que me fazem chorar por dentro, temer pelo futuro desse mundo
besta, dominado por ganância material, poder e egocentrismo. Pelas 10 horas, um
tanto antes de ir para cama (para mim algo tão ridiculamente cedo num sábado de
Carnaval), eu pedira a Ann, minha esposa, uma pausa ao assistirmos um belo e maluco
filme de Wes Anderson, The French
Dispatcher, com o qual tentávamos pôr de lado as notícias tão tristes que
chegavam dos milhares de refugiados e das bombas e mísseis russos caindo sobre
Kiev e outras cidades da Ucrânia.
Não respondi, assim que li, àquela perguntinha rápida, que veio em português, “Alô pai, tudo bem?”, porque eram quatro e pouco da manhã quando a vi, e o remetente deveria estar dormindo. Acabou que a mensagem dele me inspirou a assentar agora, às 5h26 da manhã, para me desabafar um pouco por essas mal traçadas linhas eletrônicas de um documento em Word. Diga-se de passagem, é muito bom ter um filho que de vez em quando me pergunta: “Quando vai sair a próxima crônica?” Foi mesmo assim que surgiu a anterior, “Tudo positivo”, de mês e meio atrás, sobre nós, uma família de três pessoas, mais três cuidadoras e um enfermeiro, vivendo sob o mesmo teto em quarentena por conta do coronavírus.
Desta feita,
não tenho muito motivo para alegria ou muita inspiração para o humor com o qual
tratei daquele tema sócio-sanitário. Bem, talvez. Como cronista, raramente me retrato
carente de umas pitadas irônicas ou pelo menos agridoces.
Então, como
estão vocês, que gostam da farra desregrada e da graça infantil que marcam a
Festa de Momo no Brasil? Eu gostaria de escrever aqui sobre muitas e memoráveis
ocasiões de total imersão nesse mundo da fantasia, em que as pessoas dançam,
bebem, comem e sorriem muito, deixando de lado por uns dias, ou pelo menos por
umas horas, as metafóricas pequenas dores de dente do dia-a-dia, ou mesmo os
desafios muito maiores, e nada poéticos, como os de minha realidade atual,
quando nos assolam alguns casos de câncer na família, ou a solidão deprimente e
a gradativa demência de nossos idosos.
Eu não queria
dedicar muito espaço nesta crônica às lembranças daqueles dias de quase êxtase ao
longo das décadas – mas quem sabe mais tarde algumas cenas de conversas
bem-humoradas e de festas e blocos de fantasias com os amigos poderão me visitar
o espírito. Nesta noite em Dartmouth, Massachusetts, o intenso frio, o gelo e a
neve ali do lado de fora, por exemplo, poderiam me levar a relembrar as fantásticas
noites de Carnaval que passei aqui mesmo em casa alguns anos atrás. Bem, aqui
vai o filme – não resisti. A lista de convidados tinha mais de 30 pessoas, mas
só quatro tiveram a coragem de vir comemorar comigo essa tradição brasileira
que tanto amo. É que naquele sábado de Carnaval de repente caiu uma enorme tempestade de
neve. Se quase trinta pessoas não vieram, outras quatro que se aventuraram a
dirigir para cá ficaram presas, ilhadas na alegria por três dias, até que as
ruas fossem desbloqueadas e o mundo das dores de dente pudesse levá-los de
volta para suas vidas normais, sem batucada e sem fantasia.
Infelizmente, vivo o que muita gente pode estar vivendo neste Carnaval 2022: uma angustiosa mistura de pessimismo e medo, empatia e dor, diante do ocorrido no mundo nos últimos dois anos, com a morte de pelo menos seis milhões de vidas, e diante das cenas deploráveis do momento na Europa, onde um governo engana uma nação de dimensões continentais e, assim, justifica, através de sofisticada produção de fake news e outras técnicas de propaganda em massa, uma guerra sangrenta e sem sentido numa invasão brutal sobre as terras de um país vizinho com o qual compartilha muita história, afeto e DNA.
Nesses mesmos tempos de guerra e sofrimento na Ucrânia, entretanto, é alientador ver
a ajuda que milhares de refugiados estão recebendo na Polônia. Pessoas na
estação de trem expõem placas com os nomes de cidades poloneses maiores, aquelas que têm
como oferecer melhor infraestrutura de apoio, e para onde eles oferecem caronas. Também é incrível que pessoas que estão indo para a Ucrânia nos mesmos
trens que trazem os refugiados. Muitos vão de volta para o seu país para lutar,
como voluntários. Vi que uma senhora com mais de 50 anos, e que mora em Londres,
tinha cruzado a Europa e estava a caminho de Kiev para cuidar da mãe de 90
anos. Vi ainda mulheres e suas filhas fazendo coquetel molotov nas ruas de Kiev: para resistir aos ataques, vale a pena! São momentos que nos trazem um pouco de esperança e nos fazem um pouco
menos envergonhados de sermos seres humanos, da mesma espécie de tipos como
Putin e outros líderes idiotas egocêntricos.
Resta-nos recordar que esses tempos passarão, que há novos
protestos surgindo contra os russos por todo o mundo, até na Rússia. Que um dia
a verdade e a maldade sempre são descobertas. E que uma característica que nos
destaca, enquanto brasileiros, é a esperança e a capacidade de sorrir e fazer
festa mesmo que com pouco, mesmo que incialmente acanhados, frustrados ou
desconfiados, para depois, como dizia Sérgio Sampaio em outros anos de chumbo,
de muita violência política e manipulação oficial, nos anos de chumbo da diatura
militar, “eu quero é botar, meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer... gingar, pra dar e vender”.