Tudo Positivo
Dário
Borim Jr.
Duas
palavras ganharam força nesses tempos de pandemia do coronavírus: o desejado
“negativo” e o abominável “positivo”. Chegou o dia em que eu mesmo tive que
encarar o segundo termo depois de um teste rápido feito em Belo Horizonte, logo
depois de passar três maravilhosas semanas em Paraguaçu. Era o tipo de
resultado que pouco tempo atrás engendrava muito medo e apreensão, além de boas
chances de sérias complicações médicas, isolamento em hospitais, grande desconforto
físico e mental, e, em tantos casos, óbito. Porém, vieram as vacinas no início
do ano passado, mesmo que no Brasil chegariam com muito atraso por conta da
ignorância (e mau-caráter) de alguns de nossos governantes.
O fato é
que nesse fim de ano, em quase todos os cantos do planeta, as festas agruparam
amigos e familiares saudosos e ávidos por alegria e carinho, e o resultado foi
muito negativo, no sentido de que tantos testes que fizemos desde então deram
positivo, marcando a presença, no nosso organismo, de daquele mesmo vírus letal.
Ainda bem que ele passou a ter que lutar contra o gênio da ciência humana,
capaz de desenvolver tão rapidamente os antídotos que o reduziriam os seus
poderes maéficos àqueles de um fracote, como se o COVID fosse o agente de uma
leve e temporária gripe, na maioria dos casos.
Como dizia,
em poucos dias entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, o abominável
“positivo” se espalhou pelo mundo afora, e nossa casa em Paraguaçu não foi
exceção. Em poucos dias, como comentamos brincando, “ficamos tudo positivo”:
meu pai, de 99 anos, três de suas cuidadoras, um enfermeiro, meu filho Ian e
eu! Fim do mundo? Não, mas foi desconcertante – e foi preciso nos adaptarmos!
De repente, a casa de meu pai na Aureliano Prado virou uma espécie de Hospital
Borim, com muito exagero, claro! Então, vamos dizer, aquilo virou uma Casa Borim
de Repouso e Quarentena, pois nós, seis dos sete infectados, incluindo
Terezinha, Queila e Jonathan, passamos a morar juntos. É mole?
Ainda bem
que a casa é grande, tinha um quarto para cada um dos “covidados”, os
convidados a viver juntos pelas circunstâncias, enquanto durasse a nossa
quarentena. É claro que nos preocupamos muito com o Vô Dário, por conta de sua
idade avançada e saúde debilitada, e ele foi o foco de nossas atenções e
carinhos. Mas nem só de drama e medo vive uma comunidade atacada pelo
coronavírus! Foram muitos os momentos de intensa descontração e alegria, de
pura amizade e prazer em estarmos juntos. Várias vezes curtimos as abundantes
mangas e as uvas do nosso quintal, comemos todos juntos na cozinha, após
encaminharmos o Dário para os seus aposentos. E a conversa fluía leve, longa e
reveladora. Conversamos muito sobre nosso passado, nossas aventuras, nossas
viagens, nossos percalços, nossos planos e nossos dilemas enquanto pessoas de
idade, escolaridade, e origem socioeconômica muito diversas. Foi
particularmente interessante ouvir causos sobre como era a vida de uma outra
Paraguaçu que nunca vi, a Paraguaçu das festas de fim de semana nas roças, nos sítios
e na periferia.
Alguns
momentos foram de fato comoventes e inesquecíveis. Destaco as cenas de
paciência e de jeitinho doce das cuidadoras e enfermeiros em horas difíceis,
quando, por exemplo, Dário saía um pouco do seu consciente e se mostrava intransigente
e indelicado na recusa aos remédios. Em outras ocasiões, era divertido e
gratificante ver as cuidadoras e o infermeiro sairem de manhã das próprias
camas e dos próprios quartos onde normalmente pernoitava a família do patrão.
Veio também a hora de eu retirar do forno e servir pães de queijo recém-assados
para eles, enquanto eles assistiam televisão. Numa das noites, Ian preparou uma
massa (que aprendera a fazer quando morou na Itália) e a serviu para os nossos “covidados”
com muita satisfação.
Para ser
bem sincero, Ian também foi protagonista da hora mais bela de todos aqueles rememoráveis
momentos que vivi nesta viagem ao Brasil, que para mim termina daqui a poucas horas
em voo sem escala para Nova York. Ele, aliás, já está a caminho da Big Apple. Saiu
pelo fim dessa manhã. Portanto, nos ares há um bom tempo, Ian sobrevoou há
pouco o esplendor da mata amazônica, como indicava um aplicativo informativo
sobre voos em tempo real.
Para
encerrar esse retrato de dificuldades mas também de superação de adversidades
em tempos de doença e confinamento, volto meus olhos para quando eles se enevoaram
de orgulho e gratidão ao meu filho mais velho (em seis dias completando 29
bem-vividas primaveras). Estávamos os três à mesa de jantar: avô, filho e neto,
ninguém mais. Foi quando Dário começou a clamar de dores no corpo, repetindo
uma ladainha curta, mas perfurante, nos nossos peitos: “Tem misericórdia de
mim, meu Deus, tem misericórdia de mim”! Então logo o neto se levantou e se pôs
em pé atrás do avô para iniciar uma gentil massagem pelas costas e ombros
tensos do nosso querido nonagenário.
O olhar de
meu pai, que estivera assentado e cabisbaixo de frente pra mim, rapidamente
mudou da água pro vinho. Havia a luz de real alívio no seu semblante cansado.
Foi quando ele alterou o enredo de sua cantilena. Olhando para mim, enquanto se
deliciava do amor e do carinho do neto de um metro e noventa de altura (que
permanecia massageando-o em pé, às suas costas, sorrindo para mim), meu pai
passou a repetir outro canto: “muito obrigado, menino Jesus, muito obrigado”. Sentindo
uma emoção sem par e sem explicação naquela hora, eu apenas desejei imortalizar
aqueles minutos de integral contentamento e gratidão por um gesto tão singelo,
mas tão transformador. É o que faço agora, e agradeço a Deus pela chance de
valorizar o ato tão simples que tanto nos mostra o poder do amor, da empatia e
do bem-querer.