Estrelas luso-afro-brasileiras
[Mariza, fadista portuguesa, no Consulado de Portugal em New Bedford (foto de D. Borim, 6/out/2007) ]
O teatro Zeiterion não é mais o mesmo. Desculpem-me pela falta de modéstia, mas depois de quatro eventos ali protagonizados por estrelas do mundo lusófono, até as paredes do distinto centro artístico já conhecem melhor a nossa cultura musical e a nossa alma. Em menos de dois anos, fomos contemplados com os exuberantes concertos de Dulce Pontes, Gilberto Gil, Lura e, no último fim-de-semana, a grande fadista dos nossos tempos, Mariza.
Alguns aspectos se destacaram nesses espetáculos: o alcance e maleabilidade das vozes, além da simpatia e leveza performáticas de cada artista. Uma sedutora e acrobática Dulce Pontes, por exemplo, dançou e simulou emoções com seu corpo ágil e redobrável de cantora-bailarina.
Gilberto Gil, com sua poesia sutil e filosoficamente precisa naquele que foi seu único show em toda a Nova Inglaterra, não apenas pareceu atingir o âmago do ser etéreo e sonhador de cada um dos presentes. Ele também se fez de maestro para que milhares de pessoas criassem o que talvez nunca tivessem nem mesmo tentado na vida: um lúdico e inacreditável falsete. Vi muita gente chorando, de êxtase e pele arrepiada. Ou era de orgulho, por saber que um artista brasileiro da estirpe de Gil ali estava e cantava, carne e osso, como se estivesse numa roda de samba no boteco da esquina, ou numa reunião de família, no fundo do quintal.
Sim, era Gil, o mesmo dos nossos sonhos e paixões dos anos 60, 70, 80 e 90, que prosseguia viagem pelo século XXI esbanjando saúde, bom-humor, otimismo, e muito lirismo. Com seus longos cabelos trançados e amarrados atrás, ele vestia bata e calças de algodão branco -- mais parecia um anjo afro ou, talvez, um filho de Ghandi, um bloco de Carnaval de Salvador.
Lura chegou ao palco do Zeiterion exalando energia criadora, encantando-nos em crioulo cabo-verdiano, inglês ou português. Entre os quatro artistas do mundo lusófono, foi ela quem atraiu o público mais jovem àquela casa de espetáculos. Lura é muito lírica também, e seu charme ao evocar múltiplas tradições e dramas cotidianos de Cabo Verde levava-nos a um animado passeio pelas ilhas do seu país. Quando dialogava com a platéia em cabo-verdiano, Lura parecia reforçar, sílaba por sílaba, a legitimidade da existência cabo-verdiana enquanto povo dono seu próprio idioma e de uma identidade diversificada, entre nativos e estrangeiros, por exemplo, ou habitantes de Santiago e São Nicolau.
Mariza fechou com chave de ouro essa seqüência de espetáculos luso-afro-brasileiros. Nascida em Moçambique, filha de mãe africana e pai europeu, essa estrela de 33 anos deixou lembranças indeléveis na mente de todos os que tiveram o privilégio de poder comprar seus (caros) ingressos. Foi capaz de entreter os amantes do fado tradicional sem se conter no improviso e na liberdade que sua voz potente e pluritonal lhe proporcionava. Ela, que já morou no Brasil alguns anos, que já se expôs profundamente às inovações vocais e rítmicas do gospel, blues e jazz norte-americanos, e que já descobriu o borbulhar inspirador das suas raízes africanas, reiterou duas ou três vezes, em conversa com os seus ouvintes, a sua ligação visceral com Portugal, um Portugal popular, dos bairros da Mouraria e Alfama.
Metaforicamente, Mariza aludiu à dupla semântica do termo “fado”: “gênero musical” e “destino”. Ela, por assim dizer, fez glosa do fado do seu fado, isto é, do seu destino enquanto cantora de fado, e, também, do próprio fado enquanto música do seu destino. Esse tal destino lhe empurrou o fado quando ela morava no Brasil e ainda nem sonhava em ser fadista, apesar de ter sido criada desde os três anos em ambiente de taverna, quando seu próprio pai possuía uma dessas casas na área mais boêmia de Lisboa. Finalmente, parece-me de suma importância que Mariza faça seu fado como o faz, eletrizando os corações dos patrícios sem deixar de reiterar a origem transcontinental do seu talento ou a identidade multirracial do seu ser. Saravá, Mariza!
[Mariza, fadista portuguesa, no Consulado de Portugal em New Bedford (foto de D. Borim, 6/out/2007) ]
O teatro Zeiterion não é mais o mesmo. Desculpem-me pela falta de modéstia, mas depois de quatro eventos ali protagonizados por estrelas do mundo lusófono, até as paredes do distinto centro artístico já conhecem melhor a nossa cultura musical e a nossa alma. Em menos de dois anos, fomos contemplados com os exuberantes concertos de Dulce Pontes, Gilberto Gil, Lura e, no último fim-de-semana, a grande fadista dos nossos tempos, Mariza.
Alguns aspectos se destacaram nesses espetáculos: o alcance e maleabilidade das vozes, além da simpatia e leveza performáticas de cada artista. Uma sedutora e acrobática Dulce Pontes, por exemplo, dançou e simulou emoções com seu corpo ágil e redobrável de cantora-bailarina.
Gilberto Gil, com sua poesia sutil e filosoficamente precisa naquele que foi seu único show em toda a Nova Inglaterra, não apenas pareceu atingir o âmago do ser etéreo e sonhador de cada um dos presentes. Ele também se fez de maestro para que milhares de pessoas criassem o que talvez nunca tivessem nem mesmo tentado na vida: um lúdico e inacreditável falsete. Vi muita gente chorando, de êxtase e pele arrepiada. Ou era de orgulho, por saber que um artista brasileiro da estirpe de Gil ali estava e cantava, carne e osso, como se estivesse numa roda de samba no boteco da esquina, ou numa reunião de família, no fundo do quintal.
Sim, era Gil, o mesmo dos nossos sonhos e paixões dos anos 60, 70, 80 e 90, que prosseguia viagem pelo século XXI esbanjando saúde, bom-humor, otimismo, e muito lirismo. Com seus longos cabelos trançados e amarrados atrás, ele vestia bata e calças de algodão branco -- mais parecia um anjo afro ou, talvez, um filho de Ghandi, um bloco de Carnaval de Salvador.
Lura chegou ao palco do Zeiterion exalando energia criadora, encantando-nos em crioulo cabo-verdiano, inglês ou português. Entre os quatro artistas do mundo lusófono, foi ela quem atraiu o público mais jovem àquela casa de espetáculos. Lura é muito lírica também, e seu charme ao evocar múltiplas tradições e dramas cotidianos de Cabo Verde levava-nos a um animado passeio pelas ilhas do seu país. Quando dialogava com a platéia em cabo-verdiano, Lura parecia reforçar, sílaba por sílaba, a legitimidade da existência cabo-verdiana enquanto povo dono seu próprio idioma e de uma identidade diversificada, entre nativos e estrangeiros, por exemplo, ou habitantes de Santiago e São Nicolau.
Mariza fechou com chave de ouro essa seqüência de espetáculos luso-afro-brasileiros. Nascida em Moçambique, filha de mãe africana e pai europeu, essa estrela de 33 anos deixou lembranças indeléveis na mente de todos os que tiveram o privilégio de poder comprar seus (caros) ingressos. Foi capaz de entreter os amantes do fado tradicional sem se conter no improviso e na liberdade que sua voz potente e pluritonal lhe proporcionava. Ela, que já morou no Brasil alguns anos, que já se expôs profundamente às inovações vocais e rítmicas do gospel, blues e jazz norte-americanos, e que já descobriu o borbulhar inspirador das suas raízes africanas, reiterou duas ou três vezes, em conversa com os seus ouvintes, a sua ligação visceral com Portugal, um Portugal popular, dos bairros da Mouraria e Alfama.
Metaforicamente, Mariza aludiu à dupla semântica do termo “fado”: “gênero musical” e “destino”. Ela, por assim dizer, fez glosa do fado do seu fado, isto é, do seu destino enquanto cantora de fado, e, também, do próprio fado enquanto música do seu destino. Esse tal destino lhe empurrou o fado quando ela morava no Brasil e ainda nem sonhava em ser fadista, apesar de ter sido criada desde os três anos em ambiente de taverna, quando seu próprio pai possuía uma dessas casas na área mais boêmia de Lisboa. Finalmente, parece-me de suma importância que Mariza faça seu fado como o faz, eletrizando os corações dos patrícios sem deixar de reiterar a origem transcontinental do seu talento ou a identidade multirracial do seu ser. Saravá, Mariza!
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