segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Décadas



Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de Ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
– Carlos Drummond de Andrade

O que é uma década? Todos sabem que é um período de dez anos, mas que surpresa tive eu numa fila de supermercado essa semana! Li a manchete numa revista semanal: “Acaba-se mais uma década!” Como é que é? Já estamos ao fim de mais uma? E como é que eu não me dei conta disso antes? Nem por um minuto nesses últimos doze meses pensei que estaríamos finalizando os primeiros dez anos do século XXI. Espera aí, não foi outro dia que tivemos aquela festa toda, depois de certo pânico com os computadores, pois eles entenderiam a chegada do ano (20)00 como a volta ao ano de 1900? É claro que também havia os grupos messiânicos e apocalípticos prevendo o fim do mundo em 2000.

O tempo é apenas uma referência em nossas vidas. Aquilo que de fato acontece em dez anos é o que nos marca e o que importa. Como referência, o tempo tem que ser vivido várias vezes durante certos períodos específicos para que possamos nos referenciar a ele corretamente, ter a uma razoável noção do que é um minuto, uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano e... uma década. Ninguém obviamente pôde ainda viver uma vida de mil anos. Portanto, é pela abstrata percepção do tempo histórico – a constatação de fatos que nós não vivemos diretamente – que podemos acreditar na veracidade de um milênio.

É muito mais fácil, porém, apreender o conceito por trás de uma década. Mesmo assim, essa idéia não é acessível a todos. Como pode um homem de 25 anos de idade entender bem o que é uma década? Ele só viveu metade de uma enquanto adulto! O problema maior, eu acho, é que na vida não há tempo para treinamento ou ensaio: antes de aprendermos a viver (se é que aprendemos) já estamos sendo testados pelas contingências do acaso, muitas vezes até pelos horrores da tragédia, que, aliás, nos chegarão, mais cedo ou mais tarde.

Agora, já vivendo na casa dos 50, tenho marcas na história da minha existência que me ajudam a entender o que é uma década. Estou aqui, morando mais uma vez nos Estados Unidos, há dez anos. Dez anos anteriores àquela mudança eu me casava. Entre hoje, o início de 2000, e o raiar da década de 1990, rolaram duas décadas – mas o que são 20 anos? Bem, mudei-me de casa umas 15 vezes, perdi ótimos amigos, uma queridíssima prima, e até uma irmã. Prefiro, pois, relembrar Fernando Sabino, para quem o “valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

Por outro lado, foram tantas coisas boas. Nasceram-me dois lindos e saudáveis filhos, mais gigante e apaixonante golden-retriever. Vi meu pai praticamente renascer depois uma cirurgia cardíaca, minha mãe sobreviver penosamente a um câncer, e quatro de meus sobrinhos e sobrinhas se formarem e se casarem. Foi o tempo em que descobri o email, o telefone celular (e, depois, as suas maravilhosas mensagens comumente chamadas de “torpedos”) e as conversas instantâneas por computador (os ditos chats). Conclui dois mestrados e um doutorado, escrevi três livros, publiquei uns 30 trabalhos acadêmicos em vários países, e nove artigos de página integral no Estado de Minas. Também criei um blog de crônicas, através do qual compartilho idéias e histórias ao conversar com amigos-leitores espalhados pelo mundo. Ah... viajei muito, também -- a pelo menos quinze países.

Então é isso aí – uma década é tempo para muitas realizações e eventos radicais nas nossas vidas, mas não é nenhuma eternidade. Mais difícil é pensar que sabendo bem como uma década é pouco tempo, o ser humano só pode, em média, desfrutar de algumas delas: pouco mais que cinco após se tornar adulto. Então, aos 50 anos, sabendo mais ou menos o que cabe e não me cabe numa década, quantas me restam? Três já foram para o espaço. Se for de sorte mediana (tendo em mente a expectativa de vida média perto de 73), terei mais duas décadas e uns quebrados pela frente, antes de bater as botas. Se concordarmos com o grande filósofo romano Sêneca, tudo isso é bobagem: “O importante é viver bem, não viver por muito tempo. Muitas vezes vive bem quem não vive muito”.

Como dizia John Lennon, “a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”. Millôr Fernandes também colabora: “quem mata o tempo não é assassino; é um suicida”. Por isso quero e vou renovar minhas esperanças e reconstruir sonhos agora e a cada fim de ano – saravá! Bem, o relógio está batendo. É melhor acabar logo esta crônica e tomar mais um trago de uma excelente cachaça, a Vale Verde, que recebi de uma amiga a quem conheço há quase três décadas. Com aquela água-benta, digo, aguardente, ela me desejava mais 50 anos de vida. Os Oscar Niemeyer e Manoel de Oliveira da vida existem, sim. Quem sabe tomaram dessa pinga ou de outra tão boa para alcançar os cem anos de idade mais que lúcidos – produtivos!
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sábado, 12 de dezembro de 2009

Outono de ciúmes

Outono de ciúmes


Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu



Ainda não sei bem de que vou tratar nesta crônica. Devido ao pouco espaço que temos nos jornais, é preciso ser objetivo. Por isso mesmo eu nem deveria tecer estas considerações, pois já estão utilizando três ou quatros linhas da parcela que me cabe nesta página de jornal. Este preâmbulo me faz pensar em certos acadêmicos. Ao iniciarem suas palestras falam que vão ser breves, mas acabam por gastar quase dez minutos antes mesmo de ler uma linha do seu trabalho.

Ao especular sobre o que escrever, lembranças da noite anterior me cutucam a mente. Então, como vai ficar esta crônica? Sobre o quê estou aqui para conversar? Meu leitor tem certa vantagem sobre mim. Você que agora lê estas “mal traçadas linhas” já sabe qual é o título desta crônica, mas eu ainda não. A primeira idéia que tive foi chamá-la de “Arqueologia do ciúme”, mas desisti. É muita ambição para pouco espaço que, aliás, vai acabar logo. Bem, já que as folhas por aqui caíram todas e o outono está quase por desaparecer por completo (nevou duas vezes esta semana!), resolvi intitular este texto de “Outono de ciúmes”.

São tantas as inspirações por trás dessa escolha que eu nem poderia sequer mencioná-las todas por aqui, muito menos as desenvolver a contento. Quem sabe começo pelo fim, como o faz Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas? Revisito as conversas de ontem à noite na casa do professor Frank Sousa, então. Estavam lá dois distintos convidados, Carlos Reis e João Cezar de Castro Rocha, críticos de peso no mundo da literatura de Portugal e do Brasil, respectivamente. Antes de começarmos a contar dezenas de piadas (ou anedotas, como dizem os portugas), demos prosseguimento informal às discussões que predominaram pela tarde adentro, quando tivemos um belo colóquio na Universidade de Massachusetts Dartmouth.

Organizado por Sousa, aquele encontro acadêmico enfocava a literatura de Eça de Queirós e Machado de Assis. Reis e Rocha foram as grandes estrelas, e dois dos assuntos que mais renderam análises foram adultério e ciúme. Sobre essas questões, Reis, mundialmente reconhecido como um dos maiores especialistas em Eça, discorreu sobre o romance A correspondência de Fradique Mendes. Por seu turno, Rocha, grande teórico da narrativa machadiana, fez instigantes alusões ao mais famoso livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, ao dissecar os percalços da crítica ferrenha com a qual Machado Assis condenara O primo Basílio, a obra do seu contemporâneo português.

Horas mais tarde, pouco antes do jantar, tive o prazer de apresentar uma pergunta aos ilustres convidados. A questão tinha surgido durante minha aula da última quinta-feira, sobre Dom Casmurro. Um aluno, Marc McCarthy, me perguntara se eu sabia por que razão, ou sob quais circunstâncias da vida real, Machado de Assis teria abordado tão bem os temas do ciúme e do adultério em Dom Casmurro e Memórias póstumas. Não foi Machado um homem de vida burguesa bem comportada, um homem apaixonado por sua casta esposa, Carolina, a portuguesa que, segundo João Cezar, tivera grande influência sobre a carreira do magistral escritor brasileiro?

Aconteceu-me de ter visto, recentemente, uma bela versão cinematográfica de um romance do escritor inglês Graham Greene, Fim de caso. Naquele triângulo amoroso criado por Greene, quem mais sofria de ciúme era o escritor ficcional Maurice Bendrix, o amante, e não a infeliz esposa, Sarah Miles, ou seu marido, Henry, um burocrata tão sem-sal quanto desapaixonante (serve o neologismo?). Tanto os colegas naquele jantar saboroso, intelectual e anedótico, quanto os meus alunos de literatura, ouviram de mim pouco mais que uma pergunta: haveria alguma relação entre a sofisticada e profunda tematização que Machado faz do ciúme em Dom Casmurro e a sua suposta paternidade do poeta Mário de Alencar, oficialmente registrado e reconhecido como filho de José de Alencar? Sabe-se que Mário de Alencar tinha mais que as mesmas iniciais do autor carioca, M. A. Havia também fortes semelhanças físicas com Machado, e ambos eram epiléticos. Ademais, argumenta-se que Machado de Assis teve conduta antiética ao promover o “filho” a membro da Academia Brasileira de Letras.

Infelizmente não há mais espaço para reproduzir aqui as discussões que se seguiram. Elas ficam para a fértil imaginação do leitor, imaginação esta que não faltou aos ciúmes de Maurice Bendrix, Brás Cubas, Bento Santiago e, talvez, Machado de Assis. Se foi assim, assim será. E salve-se quem puder.

domingo, 22 de novembro de 2009

Coisa Linda



Fins de semana podem ser de vários tipos. Alguns nos reservam enormes novidades. Outros são tão desanimadores que nos fazem questionar a própria validade desses dias que passamos distantes do local de trabalho. É verdade que com a internet (ou mesmo há muitos anos antes dela), podemos levar os afazeres profissionais para casa. Principalmente nós, professores, lutamos com a separação emocional entre labor e prazer em frente a uma tela de computador.

Para mim, há muito mais vida nos fins de semana do que nos demais dias. Apesar disso, desde que haja de fato tempo e oportunidade para as novidades, não me importo de trabalhar um pouco aos sábados e domingos. Em alguns dos meus fins de semana atípicos, as novidades inexistem ou se escondem. Talvez o que me falte, então, seja apenas o devido entusiasmo para buscá-las.

Em outros fins de semana, de repente chega-me uma abundância de possibilidades de entretenimento. Esse foi o caso da semana passada (13-15 de novembro), em que Gal Costa se apresentou no belo teatro Zeiterion, situado a menos de 15 minutos da minha casa. E que maravilha de apresentação acústica foi aquela numa prazerosa noite de sexta-feira, em meio a um outono de temperaturas bastante amenas!

A adorável sexagenária baiana, ícone de meus sonhos nos anos 70 e 80 (alguns deles sapecosos), cantou e sorriu ao lado de um exímio (e simpático) violonista brasileiro radicado em Nova Iorque há quase 20 anos, Romero Lubambo. Os dois artistas, alegres e bem-dispostos, conversavam entre si e com o público sem a menor inibição, entre canções que passeavam do samba de raiz à bossa nova e à MPB, sem deixar ninguém imune aos irresistíveis charmes de Ary Barroso, Chico Buarque, Tom Jobim, Noel Rosa, Caetano Veloso e outros gênios tupiniquins.

Em certo momento, eu que me encontrava ao lado de um dos meus melhores amigos, o filósofo Rick Hogan, sussurrei que a interpretação que acabávamos de ouvir de “Dindi”, uma pérola musical de Tom Jobim, era, e continuaria a ser até o fim do show, a mais graciosa canção daquele variado repertório. Logo eu reconheceria, entretanto, que errara, pois ao retornarem ao palco para cantar dois temas após ouvirem um retumbante “mais um”, Gal e Romero fascinaram a platéia com algo ainda mais formoso e encantador que “Dindi”. Era a vez de “Lindeza”, tema de Caetano Veloso originalmente lançado no seu disco Circuladô (1991).

Ao sairmos do teatro, voltei a sussurrar ao ouvido de meu amigo: “Riquinho, essa última foi ainda mais especial, não? E como se a beleza dessa canção por si mesma não fosse suficiente para me ‘derrubar’ emocionalmente e me fazer chorar um pouquinho, ela simplesmente foi a primeira canção que toquei no primeiro programa de rádio que fiz na vida, oito anos atrás”. (O aniversário do Brazilliance, aliás, é dia 4 de dezembro, e recordações de velhos shows me estão garantidas para os próximos dias!)

Como havia ainda mais um motivo para me ter emocionado ao final daquele show, novamente abordei meu amigo, o ouvinte mais fiel que Brazilliance já teve até hoje: “Tem mais, companheiro. Aquela música do Caetano se fez inseparável de uma velha história de amor que jamais vou esquecer”. Rick apenas sorriu. Sabia de quem se tratava. Também sabia que seu amigo era um dos últimos românticos, como ele próprio. Além de concordar com aquela avaliação de “Lindeza”, Rick não quis dizer mais nada senão algo assim, em bom português, “Ai, Darinho... você e suas paixões!”

Certas experiências pessoais, inclusive as paixões, podem se esticar por meses, anos ou até mesmo décadas afora, mas alguns fins de semana são tão interessantes, tão “longos” e recheados de novidades, que a gente se esquece que eles vão se acabar, e que teremos que voltar à rotina. O espaço desta crônica é limitado, como também é limitado o tempo entre uma sexta-feira e a segunda que nos empurra de volta à mesmice.

Por isso não terei meios para discorrer sobre a festa de degustação de vinhos da qual participei numa charmosa galeria de arte, logo na noite seguinte àquela do show da Gal. Tampouco poderei contar do fenomenal espetáculo que Milton Nascimento (o de Três Pontas), acompanhado de excelente banda, deu-nos no domingo em Boston (sim, naquele mesmo fim de semana), com direito a “Coração de estudante”, “Canção da América” e “Para Lennon e McCartney”.

Termino, pois, com alguns versos de “Lindeza”, que na voz de Gal Costa comoveram centenas de almas, fazendo história, numa sexta-feira-dia-treze, dia de muita sorte em New Bedford, Massachusetts: “Coisa linda/ É mais que uma idéia louca/ Ver-te ao alcance da boca/ Eu nem posso acreditar/ Coisa linda/ Minha humanidade cresce/ Quando o mundo te oferece/ E enfim te dás, tens lugar/ Promessa de felicidade/ Festa da vontade/ Nítido farol, sinal/ Novo sob o sol/ Vida mais real/ Coisa linda/ Lua lua lua lua”.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

D. H. Lawrence: Livros e perplexidades



Dário Borim Jr.

[Foto de Lawrence aos 21 anos]
Apesar de suas múltiplas conexões com a ciência, com outros ramos das humanidades, ou com as outras artes, entre as quais a pintura e o cinema, a literatura é um mundo em si, um sistema galáctico de emoções, sensações, e imaginação sem fim. Leio há muitos anos, é claro, e sou apaixonado por narrativas e versos de simbolismo inusitado, de plasticidade na linguagem e desafios nas idéias que me contorcem, massageiam ou revigoram a consciência. De palavra em palavra que leio ou escrevo, reavalio e reinvento o mundo dentro de mim.

A literatura reafirma, galvaniza, sugere, explica, e torna ainda mais misteriosa a vida e todos os seus mais controvertidos e mais enigmáticos segredos, inclusive o amor e a morte. Lembro-me agora de certo dia de abril, quando as belas e coloridas manhãs do outono em Belo Horizonte me fascinavam e eu vivia um fervor de sentimentos e desejos. Pensei que se eu perdesse todos os outros motivos para querer viver, eu gostaria de continuar vivendo pelo prazer de ler. Eu ainda não tinha a menor idéia de que em poucos anos me tornaria um professor universitário de literatura e outros irmãos mais nobres na maravilhosa família das artes, tais como o cinema e a música.

Muitos memoráveis livros eu já li por me encontrar embrenhado na carreira acadêmica. Também muitos outros livros eu pude desfrutar, apesar dos compromissos profissionais que ocasionalmente me empurram a obras que não necessariamente desejo ler (ou reler pela sétima vez). Recentemente, uma daquelas pérolas literárias que me caíram às mãos sem compromisso é sobre um dos mais intrigantes escritores dos últimos dois séculos, David Herbert Lawrence, nascido em 11 de setembro de 1885. Em D. H. Lawrence: Interviews & Recollections um pesquisador da Universidade de Alberta (Canadá), Norman Page, reúne uma variedade de textos que realçam as complexas reviravoltas da vida e inusitadas facetas da genialidade daquele escritor inglês, filho de um quase analfabeto operário de uma mina de carvão e uma orgulhosa intelectual feminista.

Certamente não há espaço aqui para se discutir com profundidade os dilemas de uma vida tão curta (mas tão agitada), ou tampouco as riquezas de um vasto legado literário. Apesar de ter vivido apenas 44 anos, em que sofreu com uma saúde debilitada por violenta pneumonia na infância e uma fatal tuberculose em idade adulta, Lawrence fez fama de conquistador de inúmeros corações e um incansável carpinteiro das letras. Tendo viajado por todos os continentes, ele residiu em oito países. Publicou em sua breve vida, nada menos que treze romances, nove coleções de contos e dez livros de poemas, além de seis peças teatrais e vários ensaios literários.

A obra de Norman Page inclui precioso material pelas suas curiosidades, lirismo e perplexidades expostos em notas e passagens de livros anteriormente publicados sobre o autor de Mulheres apaixonadas e O amante de Lady Chatterley. Alguns desses textos ou fragmentos são assinados por grandes nomes da literatura mundial, tais como Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo) e E. M. Foster (Passagem para a Índia). São também de enorme interesse os depoimentos, literários ou não, de membros de sua família e das mulheres com quem o extraordinariamente carismático Lawrence se envolveu. Não se encontra quase nada de clichê no decurso da sua vida, uma vida que na obra de Page, aliás, reluz através de eventos e imagens tratados por pessoas diferentes a expor, às vezes, diversos e conflitantes ângulos de interpretação.

Apenas para evocar uma dessas imagens mais desconcertantes, basta-nos relembrar que Lawrence tinha mesmo um enorme poder de fascinação e sedução. Em 1912, aos vinte seis anos de idade, fora convidado para almoçar na casa de um de seus professores de literatura na Universidade de Nottingham. O jovem escritor conheceu, apaixonou-se e fez apaixonar-se a esposa daquele professor. Tinha ela 32 anos e se chamada Frieda Weekley. Apenas seis semanas após esse primeiro contato, a aristocrática Frieda revelou sua nova paixão ao marido, despediu-se de suas três crianças, e mudou-se, com David, da Inglaterra para a Alemanha, sua terra natal. Casaram-se David e Frieda dois anos mais tarde, e nunca mais se separam até a morte do escritor, na cidade francesa de Vence em 1930. Apesar dessas circunstâncias, penso que não devemos julgar o comportamento do casal sem lermos um pouco mais sobre eles. Naturalmente, as surpresas da vida e dos livros publicados por aí não se esgotam com este ponto final.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guinness, graças a Deus



Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu

Nunca escrevi crônica assim: esboçando palavras no branco de um saquinho para pessoas que passam mal no avião. Espero que o leitor não se incomode com esse prelúdio. É que meu computador portátil encontra-se em um compartimento distante do meu assento neste vôo 133 da companhia irlandesa Aer Lingus entre as cidades de Shannon e Boston. De fato estou longe do computador em conseqüência de dois gestos generosos. Uma das aeromoças antes de decolarmos se prontificou a achar um passageiro que trocasse de assento para que um jovem casal viajasse junto. Não tive por que não lhe atender ao pedido. A generosidade das aeromoças irlandesas, especialmente a de uma morena de olhos azuis chamada Michelle Flannery, foi uma espécie de posfácio a um livro de prazeres que li nessa visita a Dublin, jornada que se encerra nesta tarde de 14 de setembro. Tenho algumas histórias pra contar, é claro, sobre essa viagem cujo objetivo fora a um congresso interdisciplinar sobre as culturas lusófonas na Universidade Nacional da Irlanda em Maynooth.

Pra dar uma idéia de como Dublin se difere de muitas cidades, digo que a única vez em que vi um policial por lá foi quando uma mocinha fardada, de bochechas rosadas e pequenos olhos azuis, veio me perguntar se eu precisava de ajuda ao interpretar um mapa. Até o sol esteve generoso desde o dia em que cheguei, cinco dias trás. Dublinenses não estão acostumados com tantos dias claros em seguida e se sentiam no céu. Certamente o céu azul os tornava ainda mais alegres e simpáticos naquela cidade de muita chuva e frio.

Minha impressão, porém, é a de que mesmo em tempo ruim Dublin deva ser uma das cidades mais fascinantes entre as que já conheci. Não conheço todos os quatro cantos do planeta, como alguns amigos meus, para quem a Ásia e a África não são mistérios, mas já pus os pés em um bom número de cidades famosas, como Amsterdã, Bruxelas, Chicago, Las Vegas, Lisboa, Londres, Los Angeles, Madri, Montreal, Nova Iorque, Nova Orleãs, Paris, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e Toronto.

Daquelas cidades, nem mesmo Rio ou Nova Orleãs se compara a Dublin em dois quesitos: número de bares animados (em uma mesma área de acesso a pé) e grau de entusiasmo por música (ao vivo ou em disco). Há muito tempo ouvira falar de Dublin através de obras consagradas da literatura mundial, como as de James Joyce e Jonathan Swift. Finalmente chegara a hora de lá presenciar o hábito irlandês que mais se parece com meu ideal de alegria: muita conversa animada e muitas emoções à flor da pele, entre amigos, ao som de boa música e na companhia de muita cerveja, vinho, uísque ou qualquer que seja a opção etílica do freguês.

Dublin é peculiar por oferecer milhares de pubs a seus habitantes, tão faladores e brincalhões, e a seus visitantes, em número ainda maior, gente que logo se vê acostumada ao falatório e a cantoria geral. Na realidade, o melhor que a cidade tem a oferecer ocorre nos pubs. Somente na capital são consumidos em média um milhão de copos de Guinness, a distinta cerveja irlandesa, aquela bem preta e forte, que neste mês de setembro está comemorando 250 anos de existência. Em 1759, isto é, 200 anos antes de eu nascer, tomava corpo essa preciosidade que regularmente deslumbra o paladar de milhões de pessoas mundo afora.

Neste setembro de luz e temperaturas amenas, mês em que me torno um cinqüentenário, sinto-me honrado pela coincidência de datas que me associa à lendária morena. Os milhões de flores que acompanham a arquitetura medieval e habitam os parques, ruas e pubs de Dublin eu gostaria hoje de oferecer a meus pais, Lucy e Dário, que há meio século me trouxeram a um mundo onde as pessoas são capazes de pôr de lado o amargo da vida para poderem apreciar, de corpo e alma, o deleite refrescante da cerveja preta mais amarga e magicamente mais deliciosa da terra, graças a Deus!

sábado, 22 de agosto de 2009

Esportes e remédio pro frio


Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

[Dir. tec. Seydina, natural do Senegal, e jogadores do CVU e do IC]


Então o futsal de Paraguaçu se fez internacional mais uma vez em julho de 2009. No seu ginásio poliesportivo o Ideal Clube recebeu a visita de um forte time de Los Angeles, Califórnia, com jovens de 14 a 16 anos: o CVU (Conejo Valley United). Em duas noites memoráveis para muitos de nós presentes, assisti com intenso interesse a quatro partidas, três das quais vencidas pelos norte-americanos, e a última, pelos paraguaçuenses. Para o técnico do Ideal Clube, meu amigo Sílvio Seppini, o resultado negativo às equipes de Paraguaçu se deveu a menor idade média de seus jogadores. Para mim foi uma experiência jamais vivida: jogos entre equipes de duas nações em minha pequena cidade. Além do mais, tive a chance de ouvir meu próprio filho, Ian, que de microfone na mão serviu ao evento como tradutor-intérprete no momento em que discursaram Sílvio, diretor de esportes do Ideal Clube, e Ângela Silva Santos, a presidente. Ian também colaborou para o brilho do evento ao liderar a interpretação a cappella do hino nacional dos Estados Unidos.

Nas arquibancadas, eu me assentava perto de Maristela Dunn, mãe entusiasmada de dois craques em campo, Christopher e Brian. Ela e eu temos as mesmas condições de expatriados e de pais de filhos com cidadanias duplas. Uma pessoa de invejável disposição e criatividade, Maristela é a grande responsável pela realização daquele evento esportivo, assim como de tantos outros eventos turísticos e culturais dos quais 14 meninos californianos desfrutaram em Paraguaçu, sítios e cidades vizinhas, e Bertioga, uma cidade praiana paulista onde os garotos trocaram as bolas pelas ondas tropicais.

Assistindo àqueles jogos no ginásio do Clube não deixei de pensar nos velhos tempos, quando a nova sede do Ideal dava os primeiros passos e nem piscina havia. Só tínhamos uma quadra externa e esta era controlada pelo sr. Neném Órfão. Bons tempos aqueles em que um pequeno caso de mau comportamento de um dos meninos levava o sr. Neném a clamar, “Respeitem meus 60 anos, meus rapazes”. Nostalgia por nostalgia, para mim nada é melhor que relembrar a época das grandes olimpíadas dos anos 70, quando mais de uma dezena de cidades do Sul de Minas aqui vinham para competir. Era tempo de fazer muito frio em Paraguaçu, o que criava mais uma justificativa para se tomar uma pequena dose de conhaque antes de entrar nas quadras.

Também gosto de relembrar uma noite em que nossa equipe de handebol jogava muito bem contra a equipe de Lavras, considerada a melhor do certame. Eu era o goleiro do Ideal Clube e de alguma forma fazia milagres impedindo uma esperada lavada sobre a nossa fraca equipe. Houve então o momento em que foram chamar as autoridades do Ideal para presenciar aquele fenômeno. Segundo as más línguas, o goleiro se fazia notar não apenas pelas suas magistrais defesas, mas, também, pela estranheza de seu uniforme, um agasalho (sob o calção!) que não lhe servia de tão pequeno e de tão revelador das canelas desabrigadas do frio. Ao chegarem os senhores da diretoria o desastre já tinha ocorrido. O placar, que inacreditavelmente fora de 1 a 1, agora expunha a equipe local a um ridículo 7 a 1. A causa do desengano nunca se soube. Houve quem dissesse que alguns dos atletas da nossa equipe tinham se excedido no remédio pro frio. Outros puseram a culpa no goleiro que, de repente, perdeu a figa da sorte e caiu na desgraça.

Resta pensar que se naquela época fazer uma partida de qualquer esporte contra uma equipe de Alfenas ou de Machado já era uma honra, pode-se imaginar a satisfação dos meninos do Ideal Clube ao enfrentar equipes estrangeiras, como as da Califórnia ou a da Austrália, visitante de poucos anos atrás. É assim que percebemos como que os privilégios do mundo globalizado de hoje têm suas vantagens sobre as limitações e provincianismo de ontem. Não nos esqueçamos, porém, que as noites frias da era das olimpíadas de Paraguaçu ainda não tiveram rivais à altura: com ou sem lavada no placar, nós atletas e nós torcedores sempre ganhávamos em termos de diversão e aprimoramento técnico, com muito ou nada de remédio pro frio.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O kaol é nosso

O kaol é nosso

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu


Quem diria que Paraguaçu também dá compositor, radialista e agente cultural de renome nacional? E quem diria que um de nós batizou o mais famoso PF (prato feito) de Belo Horizonte, o kaol? Quem me disse isso foi o Dr. José Côdo, meu caro cunhado, um amante de todas as coisas de Minas Gerais, mas principalmente as de Ubá, onde nasceu, de Belo Horizonte, seu segundo berço, e de Paraguaçu, pela qual também nutre especial afeição. Zé Côdo outro dia me falava todo entusiasmado desse tal de Rômulo Coimbra Tavares Paes (1918-1982), ou “o Lupicínio Rodrigues de Belo Horizonte”, como o chamava o compositor Gervásio Horta. Noventa e um anos atrás, Rômulo Paes não nascera na capital do Estado, mas, sim, na princesinha do Sul de Minas. Era então o dia da graça de 27 de julho de 1918.

Já passou da hora, pois, de sabermos todos que um paraguaçuense tem um monumento em sua homenagem em plena região nobre do centro de Belo Horizonte, exatamente na avenida Álvares Cabral junto à esquina com a rua da Bahia. Em minha mais recente viagem ao Brasil tive a oportunidade de visitar o monumento doado pela Usiminas à Prefeitura de Belo Horizonte em junho de 1995. Nele uma placa de bronze declara que, natural de Paraguaçu, Rômulo Paes “teve importante presença na vida cultural da cidade”.

Há poucas semanas homenageado em evento na Casa do Jornalista, Rômulo Paes representa um raro tipo de profissional, aquele ao mesmo tempo boêmio e empreendedor. Advogado, poeta, compositor, cantor, jornalista, radialista, produtor cultural, líder sindicalista, e também vereador da capital mineira, Paes fica na história como um grande freqüentador da noite belorizontina, especialmente das casas noturnas e cafés estabelecidos em eixos que atravessam o centro, desde o local do seu monumento até os bares da Lagoinha, e do Mercado Central até as imediações do bairro da Floresta. Durante aquela sessão solene foi lançado o disco Rômulo Paes e Coisas Mais, reunindo 14 canções de sua autoria interpretadas por vários músicos e cantores, inclusive Selma Carvalho, Helena Pena e o grupo Nós e Voz.

Na verdade as obras de Rômulo Paes, que incluem baião, foxtrot, marchinha, samba e toada, foram co-escritas por grandes nomes, como os de Adoniran Barbosa, Haroldo Lobo e Moreira da Silva, e gravadas por gente competente e famosa, como Dircinha Batista, Luiz Gonzaga e Orlando Silva. Tendo iniciado sua carreira de cantor de rádio em 1935, mais tarde Paes se tornaria diretor artístico da Rádio Guarani e diretor geral da Rádio Mineira, tendo lançado artistas de destaque, como Dalva de Oliveira. Alguns dos seus maiores sucessos, registrados na história da música popular brasileira, são as marchas “Já comi, já bebi”, “Galinha carijó”, e “Minha Belo Horizonte”, de 1957; e “Rua da Bahia,” lançada no Carnaval de 1962.

Paes ficou famoso por outro tipo de criação. Em reportagem publicada pelo jornal Estado de Minas (edição de 30 de maio, 2009, p. 20), Arnaldo Viana discorre sobre a história do famoso prato feito de Belo Horizonte, o “kaol”, iguaria lançada por um tradicional bar-restaurante, o Café Palhares, situado no número 638 da rua Tupinambás. Pois então, paraguaçuenses que moram ou visitam Belo Horizonte e que também queiram comer um kaol, como eu mesmo o fiz várias vezes lá pelos anos 70 e 80 afora: nosso conterrâneo está no centro desta criação culinária de 1950.

Assim narra Viana: “Sentado ao balcão, Rômulo Paes degustou o prato de arroz, ovo e lingüiça, que, para a maioria da freguesia, ganhava mais sabor se fosse precedido de uma pinguinha. […] E o poeta, compositor etc. etc. propôs ao João [Ferreira, dono-fundador do Café Palhares] batizar a singela iguaria: ‘Vamos lá: cachaça, arroz, ovo e lingüiça. Então vamos chamá-lo de kaol’, disse o multicultural Rômulo Paes. O ‘k’ entrou na pia batismal para dar certa nobreza ao prato, mas nem precisava. A nobreza, no caso, estava na simplicidade. E isso ninguém consegue explicar”.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Vida de artista


Dário Borim Jr.
A noite de cinco de junho foi muito especial, por vários motivos. Ocorria uma vernissage de belas obras de escultura e pintura. Quem expunha era uma artista russo-americana nascida em Leningrado, Yelena Sheynin, uma loira engraçada, faladeira, risonha e emotiva. Tem cara de lua, como se fosse escandinava, e baixa estatura e muita energia, como se fosse italiana. Lá na galeria Colo Colo, de um amigo, o pintor chileno Luís Villanueva, fui comer queijo e tomar vinho de graça, rever os amigos e examinar os trabalhos.

Fiquei conhecendo o indivíduo mais alto entre todos os presentes, um senhor de cabelo ondulado, bem grisalho, e com aparência de artista. A harmonia das nossas cabeças foi imediata. Uma das primeiras coisas que conversamos foi sobre relações entre pais e filhos (de homem pra homem). Eu lhe perguntei se era pai. A resposta dele foi romanesca. Primeiro disse: “Que eu saiba, não”. Isso é normal homem dizer, porque quem sabe se de verdade tem ou não tem filho é a mulher, não é? Mas o que me pareceu curioso foi o seu complemento à resposta: “Mas não tenho certeza. Uma vez briguei com uma namorada, e depois disso nunca abri quatro ou cinco cartas que ela me mandou”.
Charles deixava assim um enorme mistério em torno do caso, como um romance (livro) que acaba com um final aberto a múltiplas interpretações. Ontem mesmo tive a oportunidade de reciclar esse diálogo, e ouvi gente incriminando o sujeito, já assumindo que a moça estivera grávida e que ele não teria tido coragem de assumir o filho. Acho que era arriscado demais ir tão longe e culpar o sujeito. Se um filho de fato tivesse nascido, a mãe provavelmente teria dado um jeito de achar o pai.

O gigante disse que estaria completando 70 anos em poucas semanas, e que já tivera uma vida cheia de aventuras. Morou por cinco anos na Alemanha, em Hiedelberg, e por 35 anos na Bélgica, em Bruxelas ou perto de Bruxelas. Viajou por quase todo o mundo, sempre procurando visitar os locais onde viveram grandes artistas e grandes escritores. Por exemplo, foi à Índia e lá alugou, por algumas semanas, a casa onde morou o escritor alemão Hermann Hesse ao escrever o livro Siddhartha. Charles falou que gostava de absorver a energia criativa que ficava impregnada nas paredes e nos ares dessas casas. Nossa conversa me fez recordar da casa onde morou a grande poeta americana Elizabeth Bishop, em Ouro Preto. Um amigo meu, o Lucas Magalhães, alugou essa moradia por uns tempos e lá passei uma agradável tarde. Li um poema entalhado no vidro de uma janela e também cheirei um pouco de poesia no ar.

Charles contou sobre os anos 70, época em que alugou por pouco dinheiro um castelo de dezoito cômodos na Bélgica. Disse que ninguém naqueles tempos queria morar no campo. Dava aulas de história da arte em Bruxelas e no verão alojava estudantes de universidades americanas naquele castelo. Pensei com meus botões, “eu também gostaria de ter esse tipo de negócio um dia”.
Depois falamos de correspondências. Charles afirmava que tinha todas as cartas que recebera num período de 30 anos! Eu lhe disse que tinha uma boa parte das cartas que recebera ao longo de toda a minha vida! Estão “arquivadas” para posteridade em três ou quatro sacos plásticos em Paraguaçu – um verdadeiro tesouro de minhas experiências de vida e daquelas de meus parentes e amigos. Além disso, eu venho guardando ao longo dos anos várias dezenas de fitas cassetes que recebera de namoradas, amigos, e família, gente conversando comigo. Jill, uma namorada que morava em Wiesbaden, na Alemanha, gravava as fitas nas ruas, nos parques da cidade, e até mesmo ao tomar banho numa banheira bem confortável.

Charles então confessou que andava gravando os roteiros de seus sonhos. Vem narrando essas experiências do subconsciente antes de esquecê-las. Achei excelente a idéia e me lembrei de uma fita cassete que escutei essa semana. Tem uma conversa de 90 minutos que 20 anos atrás eu tivera com Carlos, um astrólogo, sobre meu mapa astral e o de minha noiva, Ann, com quem me casaria um ano depois. Os mapas, incrivelmente acertados (e comprovados ao longo de duas décadas), foram presentes de minha irmã Silvana, uma interessante forma de preparação para o matrimônio. Em seguida falamos de instant messages e como as relações interpessoais haviam mudado radicalmente nessa era de torpedos, Skype, emails e tudo mais. Mas este é um assunto para outra crônica.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Sabrina


Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
A crônica de hoje é sobre uma jovem campeã, Sabrina Amaral Figueiredo — uma vencedora de múltiplas e penosas batalhas ao longo de seus dezoitos anos de idade. Nascida em New Bedford a 28 de agosto de 1990, Sabrina mudou-se aos nove anos para a cidade de Gouveia, região centro-norte de Portugal (Beira Alta). Em 2008 retornou aos Estados Unidos, e agora em maio, ao terminar seu primeiro ano de faculdade, foi convidada para nadar pela UMass Dartmouth. Aqui faz psicologia, mas certamente possui talentos para vários outros campos do saber, inclusive a matemática e a música clássica.

Logo após concluírem os últimos trabalhos do semestre, ela e sua mãe, Cecília, também aluna da nossa universidade (fazendo o Ph.D. em Estudos Luso-Afro-Brasileiros e Teoria), deram-me o prazer de uma entrevista de pouco mais de duas horas. Eu estava diante de duas mulheres de raríssima determinação e articulação verbal, de admirável beleza física, charme e entusiasmo. O que se fez totalmente inesquecível, porém, foi como eu às vezes nem podia acreditar naquela narrativa a duas vozes. Pelo exemplo que me davam, faziam-me renovar a fé na força do espírito humano, na enorme capacidade que temos para tolerar imensos desconfortos físicos, solidão, medo, e o arrastar do tempo antes e depois de nove cirurgias, em uma jornada de quase sete anos entre quatro paredes brancas de um hospital em Boston.
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Quando Sabrina tinha treze meses de idade, constatou-se o gigante desafio à espera de uma linda criança. Ela nascera aparentemente saudável e enorme (53 cm), com belíssimos olhos verdes. Soube-se então, mais tarde, que tinha um sério problema ortopédico. Ainda no útero da mãe, seu fêmur se deslocara por completo quando o feto tentava se mover. O osso chegou a se posicionar perto da axila direita do neném. Ela viera alegrar o lar de Cecília Amaral Figueiredo, portuguesa como a própria filha, e Eduardo Emanoel de Almeida Figueiredo, um brasileiro filho de portugueses temporariamente radicados no Rio de Janeiro.

Sabrina foi logo posta aos cuidados de uma equipe médica do mais alto gabarito, chefiada pelo Dr. Michael Goldberg, do Hospital Infantil da Universidade de Massachusetts Boston. A vida daquela menina jamais seria a mesma. Ela que não dava conta de andar por causa do deslocamento do osso da perna, passou por aquelas várias intervenções cirúrgicas (sete a laser) e ao método corretivo por tração conhecido como Sulzer. Foram muitos meses de desafios constantes, mas por boa parte desse período aquela criança destituída de uma vida comum (de convivência com amigas e liberdade de locomoção) era quem levantava a esperança das outras pessoas. Usava seu próprio nome ao invocar a paciência e a fé dos pais: “A Sabrina vai ficar boa”.

O fardo, entretanto, não era leve para ninguém. Se os pais viviam em tremendo estresse (seu pai até chegou a ser demitido do trabalho por se ausentar muitas vezes e fazer companhia à filha), Sabrina era forçada a esquecer o que era uma cama. Vivia esticada por cabos em posição vertical. Por causa da tensão e precisão necessárias para o esforço imposto ao osso, de modo que esse baixasse lentamente e se aproximasse dos quadris, Sabrina vivia fechada em um arcabouço de gesso que circundava seu corpo do tórax ao final das canelas. Todas as pessoas que já estiveram engessadas sabem do martírio que é ter uma parte do corpo imobilizada por esse material. Além das intensas coceiras, Sabrina sofreu com chagas que se abriam e tornavam sua condição ainda mais inóspita.

Um dia aquele sofrimento intenso foi se amenizando. Uma última e bem sucedida cirurgia, em 1997, retirou longos parafusos que ajudaram na rearticulação do fêmur à bacia. O pós-operatório, porém, não foi nada simples, já que um dos pontos internos se rompeu e a jovem de nove anos retornou ao hospital para lá permanecer por mais dois meses. Nessa fase de recuperação Sabrina já desenvolvera uma verdadeira fobia de médicos e todas as pessoas vestidas de branco. Adquirira, também, uma forte descrença nos adultos em geral, pois lhe prometiam a liberdade para viver sua vida de criança mas constantemente a retornavam ao hospital. Depois daquela recaída e providencial recuperação, não houve mais dúvida: Sabrina estava curada e sua infância se tornaria “normal” dali para frente.

No ano seguinte ela ganharia um irmãozinho, o Ricardo, e a família logo se mudaria para Gouveia, em Portugal. A menina Sabrina, “um nome brasileiro”, segundo a mãe, encontraria fortes barreiras na adaptação a um mundo desconhecido, aquele mundo exterior às paredes do hospital em Boston. Enquanto nos dormitórios daquela instituição ela só queria saber do requebrar de Michael Jackson na televisão, agora, em liberdade, mal se continha quando se via num parque: corria e pulava como uma louca. Na escola, falava demais, sem parar, e irritava as colegas e professoras.

Confinada naqueles anos anteriores de tratamento, Sabrina desenvolvera os sentidos mais intensamente que o normal. Por isso foi capaz de detectar o cheiro de bebida alcoólica e acusou uma de suas professoras de ir trabalhar intoxicada. Foi um escândalo, e não se acreditou na menina, mas tempos mais tarde se constatou que era verdade o que dizia Sabrina, e a professora dependente dos etílicos acabou sendo demitida. Na época de escola, Sabrina entrava em pânico quando tinha que ir ao dentista ou tomar vacinas. Por esse motivo os pais tiveram que solicitar permissão para que a jovem recebesse esses cuidados em ambientes especiais, distantes de enfermeiras vestidas de branco. A fobia e a revolta da jovem não eram nada superficiais ou desprezíveis.

A volta de Sabrina ao mundo exterior, ocorrida em um país diferente daquele no qual vivera até os oito anos, acarretou desafios de outros tipos, inclusive o lingüístico. Era capaz de falar o português muito bem, mas escrever nesse idioma era uma nova provação. No caminho teve o azar de encontrar uma professora que por ignorância ou antiamericanismo lhe disse várias vezes que ela, Sabrina, jamais seria capaz de acompanhar o ritmo da classe. Enganou-se redondamente: Sabrina terminou seu primeiro ano em escola portuguesa com as melhores notas da turma! Uma estratégia adotada pelos pais da menina dera resultado: nos Estados Unidos, falavam entre si o português, se estivessem em casa; e o inglês, quando estavam na rua. Em Portugal, simplesmente inverteram o paradigma, que mais uma vez funcionou muito bem.

Sabrina sempre se ajudou muito naquele processo de aquisição lingüística, entretanto. Era (e ainda é) uma voraz leitora. Em um mesmo Natal, por exemplo, já recebeu 11 livros de presente. Entre outras paixões, aproximou-se muito dos animais, e por isso dedicou especial atenção aos cursos de biologia no ensino básico e secundário. Filosofia, literatura portuguesa e psicologia foram outras matérias que muito a interessavam naqueles anos, mas ela também obteve grande desenvolvimento como pianista clássica.

Seguindo recomendação médica, a jovem luso-americana também deveria se interessar pela natação. Não deu outra, e através dela Sabrina se tornou muito popular no colégio. Até mesmo o nome, bastante raro em Portugal, agora a ajudava. Ela não era mais a “americana” que algumas colegas evitavam. Os pais estavam bem conscientes dos benefícios que esse esporte trazia a quem precisava fortalecer os músculos e por isso construíram uma piscina de 19 metros no quintal da sua casa, em Gouveia. Sabrina podia não apenas aprimorar sua forma física, mas também reunir muitos de seus amigos. Certa vez eram 40 os jovens que se deliciavam numa casa que se tornara o centro das atenções da vizinhança. Aquela menina com sérios problemas na perna direita se curou, batalhou pela sua plena recuperação e acabou sendo campeã regional e membro da equipe oficial de natação de seu país.

Tanto a força do acaso como a dedicação aos esportes e à formação de seu caráter ainda lhe trariam mais surpresas agradáveis antes de se mudar de novo para os Estados Unidos. Por causa de uma séria infecção virótica não diagnosticada por um bom tempo pelos médicos de Gouveia, Sabrina aos 16 anos de idade perdeu o gosto por comer e, conseqüentemente, muito peso. Foi sua sorte, pois se buscavam novas modelos em todo o país para um concurso de beleza e um desfile de moda que se realizariam em Lisboa. Dotada de belos traços físicos, além dos raros olhos verdes, Sabrina se saiu muito bem. Entre duas mil candidatas, ficou em terceiro lugar. Hoje, dois anos mais tarde, ela se destaca entre os alunos da nossa Universidade. Pelo visto, é somente o começo de uma nova fase na fascinante vida de uma pessoa cujos poderes de superação de infortúnios e outras barreiras servem-nos a todos como fonte de inspiração e motivo de orgulho por fazermos parte da mesma raça humana.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Brazilliance Teaches and Entertains its Audience


Brazilliance, on WUMD


Music and writing has been deeply intertwined throughout UMass Dartmouth Professor Dário Borim's 20-plus year career. Borim, chairperson of the Portuguese department, produces and hosts the live radio and Internet show, Brazilliance every Thursday from 3 p.m. to 6 p.m. on 89.3 FM and http://www.893wumd.org/.

Music and writing has been deeply intertwined throughout UMass Dartmouth Professor Dário Borim's 20-plus year career.Borim, chairperson of the Portuguese department, produces and hosts the live radio and Internet show, Brazilliance every Thursday from 3 p.m. to 6 p.m. on 89.3 FM and www.893.wumd.org. The program features an array of musical styles and education about the Portuguese-speaking communities of Brazil, Cape Verde, Mozambique, Portugal and southeastern Massachusetts.

During its seven year run, Brazilliance has attracted not only a local devoted audience but also listeners across the United States and in foreign countries like Brazil, Chile and Spain."Making this show has been one of my greatest dreams come true," Borim said. "Brazilliance now means the world to me. It's the best way I've found to stay in touch with my cultural roots and the music I love the most."

Borim first started thinking about sharing music and poetry through live broadcasting in 1997 when he taught as a college professor in Brazil. He helped to establish a new radio station at the Federal University of Ouro Preto, but left to accept the position at UMass Dartmouth prior to launching his own show.For more than 20 years, Borim has been researching and teaching courses about the thematic and theoretical interfaces of literature and music.

Listeners of Brazilliance hear a range of traditional and progressive music such as bossa nova, choro, fado, morna, samba and various types of instrumental genres. In addition, the music is occasionally combined with short talks, critical commentaries and contextual information, some of which complement his graduate courses in literature and other cultural representations. Using this unique forum, Borim enhances the benefits of a typical in-class approach. When he taught a graduate class in 19th century literature approximately two years ago, music was taken as a central theme in novels and short stories. Students understood and appreciated that literature by listening to the course's "soundtrack," which was broadcast live on WUMD and recorded on compact discs for further dissemination. A few libraries in this country and in Europe hold these discs.

Borim, a native of Paraguaçu, Minas Gerais (a state in southeastern Brazil), has published widely on music themes in books and academic journals. He runs a blog of essays www.drborim.blogspot.com devoted to the mingling of music issues and day-to-day affairs and has organized numerous concerts at UMass Dartmouth featuring Lusophone artists from around the globe. Occasionally, guest artists appear on Brazilliance to discuss their work and share their professional journeys.The latest special edition of Brazilliance celebrated Women's Month by playing and educating listeners about one hundred years of women's songwriting in Brazil. In June and July, Borim plans programs on music written by Cape Verdeans living abroad as well as a show on Brazil's legendary singer-songwriter Caetano Veloso.

For more information about Brazilliance, contact its host at dborim@umassd.edu.

Author: John Hoey
Date: April 30, 2009
This page's original location: http://www.umassd.edu/communications/articles/showarticles.cfm
An Official UMass Dartmouth Web Page/Publication. © 2008 Board of Trustees of the University of Massachusetts. University of Massachusetts Dartmouth • 285 Old Westport Road • North Dartmouth, MA 02747-2300

domingo, 3 de maio de 2009

Ondas





Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

A vida flue em variadas ondas: as de momentos difíceis, tais como aqueles criados por doenças, saudades e falecimentos; e as de momentos bons, como os de nascimentos, reencontros e casamentos. Essa última onda foi a que me levou ao Brasil no fim-de-semana passado. Meu sobrinho Alexandre e sua noiva, Bruna, se empenharam ao máximo e produziram um casamento-espetáculo dos mais memoráveis. O único expatriado da família não podia perder esse evento, e por isso organizou seus afazeres e conta bancária de modo a acomodar a extravagância de uma viagem-relâmpago ao outro lado do globo.

No caminho de ida, na quinta-feira, eu tive que lidar com o enorme estresse de chegar tarde ao aeroporto para embarcar. Não foi bem culpa minha. Os estacionamentos estavam lotados e a companhia aérea antecipou o horário de partida sem me avisar. Por um triz não me dei mal. Mesmo que tenha sido quase no último minuto, ainda consegui sair de viagem como era necessário para não perder as próximas conexões.

Em Belo Horizonte, tudo conspirava a favor de um casamento maravilhoso: tempo bom, a família toda bem disposta, e o reencontro com velhos amigos. Numa capela do condomínio Retiro das Pedras, Alexandre e Bruna foram unidos em matrimônio religioso sob os raios multicoloridos de um belíssimo pôr-do-sol iluminando a enorme parede de vidro atrás do altar. Os pombinhos programaram várias surpresas: homem vestido de anjo, palhaço, malabarista e sanfoneiro. O melhor da festa ficou por conta dos noivos sapecando uma dança bem coreografada ao som de “Sweetheart of Mine”, uma valsa cujo arranjo combinava linguagens e artistas do chorinho carioca e do jazz de Nova Orleãs.

Depois de múltiplas conversas com parentes e amigos, repetidas doses de uísque, e incansáveis danças, o casamento virou lembrança. Antes que meu fim-de-semana internacional se acabasse por completo, porém, outras ondas chegariam. No vôo de domingo à noite entre o Rio de Janeiro e Nova Iorque pude ajudar uma mocinha a não desmaiar. Karina, sentada na janela ao meu lado, era lutadora de Jiu-Jitso, uma carioca de uns 18 anos. Estava com o joelho esquerdo contundido e enfaixado. Tinha uma cachorrinha vira-lata pretinha e peluda, a tal de Sininho, resguardada embaixo do banco da frente. Sininho recebeu longos cafunés da sua dona, durante quase toda a viagem, e não a ouvi latir uma só vez.

Conversamos muito pouco. Eu curtia a leitura de um belo e estranho romance, Coiote, de Roberto Freire, quando, a certo momento, Karina pediu que chamasse os comissários. Estava passando mal e suando frio. Pus a mão na sua testa e suspeitei que estivesse mesmo com pressão baixa. Os comissários vieram e comecei a abanar seu rosto enquanto um deles passava um paninho gelado no pescoço e no tórax. Fiz-lhe umas perguntas e ela disse que aquilo era hipoglicemia, mas que não era diabética. Fui atrás de um copo de coca-cola. Ela foi melhorando aos poucos. Karina agradeceu minha ajuda, e eu lhe disse, com convicção, para acalmá-la: "Estou aqui pra te ajudar". Reagiu bem ao açúcar. Fiquei pensando como não deveria ser fácil depender da ajuda de estranhos, uma observação que certa vez ouvi de Janis Joplin.

Por coincidência, outro sério problema de joelho me esperava em casa. Meu filho mais velho, Ian, sofrera uma colisão traumática numa partida de futebol e corria risco de ter que fazer cirurgia e ficar fora dos gramados por quase seis meses, o que seria uma mini-tragédia para esse aficionado do esporte das multidões. Ele tinha acabado de chegar de uma fascinante viagem de ônibus a Nova Orleãs, com mais 44 jovens, onde trabalhara na construção de casas para os menos favorecidos. Naquela viagem de 10 dias, Ian fora eleito o “príncipe da caravana” pelas garotas adolescentes. Segundo disseram os professores responsáveis pela jornada, ele foi o trabalhador mais entusiasmado do grupo. Tudo transcorrera às mil maravilhas até voltar às suas atividades em Dartmouth, onde moramos. A vida tem desses revezes: o pico do sucesso muitas vezes é seguido de uma queda vertiginosa ao fundo do posso.

Assim foi a história de mais um fim-de-semana inusitado para mim e muitas outras pessoas, inclusive Alexandre e Bruna. O mundo pós-moderno e globalizado tem dessas coisas: a canção de maior destaque no seu casamento foi uma composição de Jelly Roll Morton interpretada por Tom McDermott, a quem eu assistira ao vivo no clube Donna, de Nova Orleãs. O seu disco, Choros do norte, a mim oferecido pelo próprio exímio pianista, eu levara ao Brasil para compartilhá-lo com José Codo, meu cunhado apaixonado por música melódica e romântica. Dessa exportação de um tesouro de Nova Orleãs altamente influenciado pelo chorinho do Rio de Janeiro veio a escolha musical dos noivos. Por coincidência, meu filho voltava daquela outra “cidade maravilhosa”, às margens do delta do Mississipi, quando, em Belo Horizonte, um belo casamento transcorria ao som de um grande artista da incomparável cidade franco-americana.

Sem despachar mala alguma, eu chegara ao Brasil para aquela cerimônia de matrimônio, e de Belo Horizonte voltei com uma senhora bagagem de recordações: aventura, enternecimento, e orgulho do meu primogênito, principalmente. Estava, pois, um tanto mais feliz e mais forte para lidar com os desafios, dores e preocupações de pai, num cotidiano de muitas ondas, sem aviso prévio e sem trégua.

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domingo, 12 de abril de 2009

Sem espelho

Dário Borim Jr dborim@umassd.edu 

 Acabo de reler uma das mais pungentes narrativas que já encontrei nos últimos anos: "Narciso em férias”. É um conto autobiográfico de Caetano Veloso, uma jóia rara "escondida" em forma de capítulo de livro nas páginas centrais de seu enorme volume, Verdade tropical (Companhia das Letras, 1997). 

Lá se vê maravilhosamente a questão do "eu" (ou ego) em relação ao "corpo" do indivíduo. O "eu" está dentro ou fora do corpo? É o corpo parte do nosso próprio "eu"? Mas e se o corpo “desaparecer”, isto é, e se você deixar de percebê-lo? Nós, nessas circunstâncias, morremos? Enlouquecemos? E se, profundamente deprimido, você não conseguir nem chorar? E se não conseguir se onanizar? E se o corpo secar os dois fluidos humanos mais intimamente ligados à emoção, os do choro e do gozo, que não têm nada ou têm muito pouco em comum com os outros líquidos e excreções humanos, como a urina, a saliva, o suor, as fezes, as acnes, e as melecas — tudo isso é sinal barato de vida. 

Os grandes baratos do corpo são, de fato, os outros líquidos (um deles nem tão líquido): os líquidos do choro e do orgasmo. Mas, e se eles sumiram de você, e se você se sentir totalmente seco? E se você não se lembrar — como não se lembrou, Caetano — de ter escovado os dentes em dois meses? Este questionamento está todo lá, em “Narciso em férias”, um texto orientado por uma múltipla perspectiva diante das lembranças e dos traumas de uma experiência-limite: os dois meses em que Caetano Veloso passou em diferentes celas da Ditadura Militar, no Rio de Janeiro, entre dezembro de 1968 e fevereiro de 1969. 

A voz que narra e reflete sobre aquela desumana desventura legitimada pelo AI-5 se constrói ao mesmo tempo filosófica, biológica, psicológica, semiótica, e acima de tudo, confessional, questionadora de preconceitos e da distância entre o "eu" vivido, o "eu" que escreve, e o "eu" que lê aquele texto. Sob a gentil custódia da Polícia do Exército, o cantor-compositor baiano permaneceu detido durante duas semanas em uma cela solitária tão minúscula que ele era capaz de pôr as costas contra uma parede e tocar a outra em frente com seus pés. O silêncio e a solidão, o medo e a humilhação, a incompreensão do que se passava e do que estaria por vir — aquilo tudo lhe causava um processo de estranhamento que o levou a um tipo de loucura temporária. Por ora desacreditava em si mesmo (já que seu corpo se afastava de sua percepção) e em sua existência (pois a própria vida se tornara absurda, insípida, surda e muda). 

No entanto, pondera o narrador, “que benção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer mas também — e talvez principalmente — ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação!” (362). Restava ao presidiário político de apenas 26 anos uma forma de esperança. Parecia-lhe que poderia ser “salvo do horror a que fora submetido” se sentisse jorrar dele esses líquidos “que parecem materializar-se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito” (362). Para o memorialista, o pranto e a ejaculação são “vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande, paradoxo interdito à matéria” (362). “Narciso em férias” confirma certa percepção da condição humana explicada pelo psicanalista Jacques Lacan: o ego é basicamente um objeto, uma projeção artificial de subjetividade que se apóia nas imagens visuais que o indivíduo confronta no dia a dia, e nosso corpo faz parte desse cenário ao sentirmos que tem vida sob a pele e ao olharmos para ele diretamente ou através de um espelho. 

Além disso, nosso ego é intrinsecamente dependente do olhar de outras pessoas sobre nós: elas criam importantíssimas imagens para aquele mesmo cenário que compõe quem nós somos. Na companhia de outras pessoas vemos nos seus olhares um jogo de espelhos que nos reflete. Se esses olhares não existirem mais, e nem sequer existir um espelho onde nos vejamos sem intermediação alheia, tendemos a perder a auto-imagem e o auto-respeito. Se aquela rotina de nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para Caetano adquirir uma impressão de perda do “eu”, o escritor destaca outra limitação. Ela se perpetuou por todo o período de prisão, intensificando tal impressão: “não ter acesso a espelhos” (359). Era como se o corpo lhe tivesse sido abandonado de verdade, e a falta de um espelho condenasse Narciso (ele, Caetano, metaforicamente) à morte, a uma morte em horror e suspense, em meio a uma esquisita mescla de descaso e desespero. O narrador explica: “comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia — nunca houvera — outros lugares” (359). 

A letargia se tornara uma forma de fuga para Caetano naquelas longas semanas no cárcere, mas dela ele se afastava em certos dias de visita. Era quando surgiam no ar a voz e o choro de sua esposa, Andréa (Dedé) Gadelha, com quem estava casado há pouco mais de um ano, tentando obter o direito a uma conversa com o marido. Ouvir-lhe a voz sem poder ver-lhe o rosto, tocar-lhe a pele ou lhe dar resposta era para ele “uma experiência dilacerante” (377). Sem ser capaz de tirá-lo totalmente do estado de loucura a que fora levado, afirma Caetano, “aquela voz, vinda do passado remoto e inconvincente” que ele guardava na memória, ainda tinha o poder de enternecê-lo (377). 

Era um limitado retorno do ego despedaçado, que deixava sua tocaia. O enternecimento desequilibrava a letargia, onde normalmente se escondia. A cada tentativa de visita de Dedé, Caetano temporariamente se ressuscitava, sentindo o “ímpeto de abraçar e beijar, cheio de gratidão” aquela mulher que era a “fonte de todo o bem possível” (377). Mal sabia ele que ela estava tão próxima, apenas uma parede separando-os, e que ela jamais desistiria de pleitear até lhe conseguir melhores condições de vida naquela prisão, inclusive sua providencial saída da cela solitária. Andréa Gadelha salvou assim, por um triz, o corpo, a alma e a mente de quem se tornaria um dos maiores artistas e pensadores que o Brasil já viu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Vinicius



Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu



Vinicius é um documentário que muito me impressiona pela sua formosura poética. Também me faz questionar o papel das paixões românticas e do amor desenfreado pela vida. Para aqueles que ainda não o viram, digo e suplico: que o vejam o quanto antes. Aliás, quem já o viu somente uma vez deveria assistir-lhe de novo. Suas lições precisam ser reforçadas. Dirigido por Miguel Faria Jr e lançado em 2005, o filme se abre com as palavras saudosas do Braguinha. Era assim que Vinicius chamava o queridíssimo cronista Rubem Braga, seu grande amigo. Naquelas cenas iniciais do documentário Rubem Braga se dirige diretamente ao amigo morto acerca da chegada da primeira primavera numa Ipanema sem Vinicius de Moraes. Logo a seguir, surge uma vista aérea daquela praia encantada e ouve-se uma belíssima interpretação de “Se todos fossem iguais a você”, a pioneira canção composta pela genial dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Quem canta é o paulista Renato Braz.


Cantor, compositor, diplomata, dramaturgo, letrista e poeta, Vinicius de Moraes (1913-1980) foi um descendente direto na linha de Xangô (saravá!), o orixá deus-rei do trovão, o justiceiro filho de Iemanjá. Educado nas melhores escolas do Rio de Janeiro no início do século XX, ele posteriormente estudou literatura na Universidade de Oxford, onde se inteirou, mais rigorosamente, da lírica inglesa. Depois de ingressar no mundo formal, prestigioso e bem pago da diplomacia, e de publicar alguns volumes de poesia bastante tradicional, esse carioca, para si mesmo “o branco mais preto do Brasil”, descobriu que o prazer maior da sua vida profissional tinha outro endereço: o domínio da música popular. Passou a escrever poemas que se encaixavam em melodias elaboradas por grandes nomes, tais como Carlos Lyra e Baden Powell. Também cedeu sonetos e outras criações poéticas para compositores que lhes cobrissem de sons e harmonias, como Tom Jobim e Toquinho.


Diga-se, de passagem, que escrever letra de música não é para qualquer um não. Tem que ser poeta e um pouquinho mais. Tem que ter ouvido de músico e conhecimento instintivo ou adquirido de nuances musicais. No fundo, Vinicius foi um grande poeta e um grande compositor. Sem parceria nenhuma, escreveu maravilhas como “Valsa de Eurídice” e “Pela luz dos olhos teus”. Vale a pena recordar alguns versos: “Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus / Resolvem se encontrar / Ai que bom que isso é meu Deus / Que frio que me dá o encontro desse olhar”. Porém, para se atingir a mais completa magia, é preciso suscitar maior sedução por meio de um falso desapego. Por isso o poeta pondera: “Mas se a luz dos olhos teus / Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar / Meu amor, juro por Deus, me sinto incendiar”.


Pode-se inferir uma pequena dose de humor nesse “incêndio” de amor, e a vida de Vinicius realmente se desenvolveu em torno de uma série de fogueiras da paixão. Casou-se nove vezes, por exemplo. Suas esposas podiam ser de idades próximas às suas em diversas fases da vida, ou podiam ser 40 e poucos anos mais jovens. Naquela pioneira canção escrita com Tom o poeta proclamava, “Vai tua vida, teu caminho é de paz e amor / A tua vida é uma linda canção de amor / Abre os teus braços e canta a última esperança / A esperança divina de amar em paz”. A vida de Vinicius que nos mostram os roteiristas Miguel Faria Jr e Diana Vasconcelos foi uma constante busca por amar, sempre amar. A paz, porém, nunca lhe foi duradoura. A cada vez que sua paixão se esmorecia, ele sofria, e sofria muito. Como é de se imaginar, também fazia os outros sofrerem: a esposa do momento, os filhos, os parentes, e certamente alguns amigos.


O turbilhão amoroso de Vinicius não tinha fim e por isso o poeta foi acusado de depravação e outras “imoralidades”. Ele certamente viveu como muitos poetas gostariam de viver. Pouquíssimos deles o fizeram, entretanto, como bem observa Carlos Drummond de Andrade em certo momento do filme. Vinicius foi leal a si mesmo, à sua necessidade de sempre estar apaixonado, para que junto a um copo de uísque e aos amigos do peito, sua vida tivesse sentido. Longe deles, isto é, da paixão sem limites, daquele a que chamou de “cachorro engarrafado”, ou dos parceiros da música e da poesia, Vinicius de Moraes era um homem triste. Porém, bastava um de esses insumos dar força a seu vaso de flores, que seu rosto era só sorrisos e sua mão escrevia preciosidades do amor demais.


“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”, escreveu Guimarães Rosa, mas poderia ter sido Vinicius. Por seu amor à vida e à alegria e por seus extasiados e frustrados amores lhe devemos a graça de sua obra, um elogio à loucura, se loucura for viver intensamente a vida, doa a quem doer, inclusive ao louco amante. O próprio Vinicius resume sua sina em “Como dizia o poeta”, de parceria com Toquinho: “Quem já passou por essa vida e não viveu / Pode ser mais, mas sabe menos do que eu / Porque a vida só se dá pra quem se deu / Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu”.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Do berimbau baiano ao trombone francês






Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

Pois é, mais um Carnaval se foi. O que nos resta agora é esperar pela Semana Santa. Que nada: isso é brincadeira de expatriado que (sobre) vive onde a festa de Momo é coisa de minoria étnica, e a Sexta-Feira da Paixão não tem bacalhoada no almoço, porque todos seguem suas rotinas nas escolas, campos e construções, só parafrasear o quase-esquecido Geraldo Vandré.

Quem me conhece de velhos tempos convividos ao sul da linha do equador sabe: o Darinho é como o tio Delmo e a prima Lília – ele adora Carnaval! Então, a cada ano, quando chega esse feriado, as circunstâncias me levam a repensar e reavaliar os motivos pelos quais não estou aí, não moro no Brasil, nem desfrutei mais que um único Carnaval tropical nos últimos nove anos.

A crônica de hoje, porém, não vai explicar minha opção de amarrar minha égua em curral estrangeiro. Sem nostalgia, de fato ela vai ecoar lembranças muito recentes, as deste Carnaval 2009, passado aqui mesmo, na costa sudeste do estado de Massachusetts.

Sei que muitos brasileiros não gostam de Carnaval, da mesma maneira que existem franceses que não bebem vinho e italianos que não comem pizza. Bem, para esses compatriotas, não tenho muito a dizer senão, “tudo bem, meus caros—assim sobra mais cachaça pra galera do samba e do maracatu”.

Então, sexta-feira chegou e o programa noturno não foi bater pernas pelos botecos da Praça Oswaldo Costa, digo, das ruas congeladas de South Dartmouth. A atração da noite era um espetáculo de dança moderna cuja coreografia é inspirada nos movimentos da capoeira e nas danças rituais do Candomblé e alguns estilos musicais brasileiros, como o samba, o afoxé e o baião.

A trupe, chamada Dance Brazil, apresenta-se em teatros de todo o mundo, mas é exclusivamente tupiniquim. Dirigida pelo carioca Jelon Vieira, conta com uns 20 bailarinos e bailarinas de Goiás, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, além da Bahia, de onde vem a maioria desses fabulosos artistas-atletas, ou artesões dos ares. Eles são como corpos-aviões de borracha, ou espermatozóides de carne e osso. Com muita graça, restituem em nós, brasileiros, um enorme orgulho das nossas heranças culturais ao som de canções interpretadas, ao vivo, por quatro instrumentistas, com seus violões, berimbaus de vários tipos, e bumbos baianos do tamanho de uma lua cheia, com mais de um metro de diâmetro.

O Carnaval no exterior pode oferecer outras surpresas, como o Mardi Gras (Terça-Feira Gorda, em francês), de que pude aproveitar aqui mesmo, em Massachusetts. Dezenove anos atrás curti pela primeira vez essa tradição francesa, uma irmã do nosso Carnaval. Foi exatamente quando participei de um congresso de literatura numa universidade em Baton Rouge (vizinha da deliciosa, charmosa e matreira cidade costeira de Nova Orleãs, no estado sulista de Louisiana). Velhos tempos: eu dava minha primeira palestra acadêmica na vida e ganhava viagem de graça à terra do jazz. Naqueles dias de festa, que a todo ano coincidem com as datas da folia no Brasil, assisti aos desfiles de carros alegóricos lotados de bêbados e fantasiados pelas ruas Canal e Bourbon, pontos mais agitados da cidade.

Encontrava-me extasiado ao ver algo tão festivo e parecido com nossas tradições em terras tão distantes e destoantes do nosso país. Na época, informei-me dos grandes bailes de máscara realizados na cidade desde 1718. Outras novidades, entretanto, eram muito mais óbvias: o uso de carruagens puxadas a cavalos e apresentações de bandas escolares, militares e de bombeiros no meio da confusão. Havia também o antigo hábito, surgido em 1870, de se jogar colares coloridos das varandas dos sobrados coloniais rumo aos foliões que passavam dançando e bebericando rua abaixo.

Agora, em 2009, lá estava eu numa galeria de arte situada no coração histórico da cidade de New Bedford (a 15 minutos da minha casa, em South Dartmouth). Num ambiente um pouco estranho ao contexto “gélido” da Nova Inglaterra, normalmente enrustida e quieta em pleno rigor de inverno, dançávamos animados ao som de dixieland e ragtime. Estas são formas de jazz bem sincopado e salpicado de extravagâncias melódicas típicas de Nova Orleãs e nela imortalizadas pela prata da casa, o genial Louis Armstrong. No Mardi Gras de New Bedford uns 10 músicos locais tocavam trombone, saxofone, gaita, trompete, violão, alguns tambores e outras percussões. Interpretavam múltiplos estilos do Sul, como o blues, o cajun, e o zydeco, e outros ritmos alegres de origem afro-americana, francesa, caribenha, ou franco-canadense.

Com toda essa dança exuberante e energia musical, do berimbau baiano ao trombone francês, o coração de um paraguaçuense na terra do Tio Sam bateu em harmonia com os astros. Ficou em paz com o destino que lhe faz saudoso da terra natal, mas, do mesmo modo, admirador das alegrias e dos remelexos de outros carnavais.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Pelo telefone do século XXI



Dário Borim Jr.

dborim@umassd.edu

Em 1916 o telefone era uma tremenda novidade, uma espécie de “coisa do outro mundo”. Quase um século atrás, a maioria da população nem podia sonhar com tal luxo. Passavam-se os anos da Belle Époque e da chamada Era de Ouro de enormes invenções humanas: o Titanic, o automóvel, o avião, etc. O telefone tornou-se logo símbolo de status e, muito depois, uma imprescindível necessidade de todos—pobres ou ricos. Porém, até os anos 90, o serviço telefônico custou o olho da cara no Brasil. Lembro-me de que uma linha chegou a valer o equivalente a uns 4 mil reais. Em nossas peregrinações por múltiplas repúblicas em Belo Horizonte nos anos 70 e 80 sempre tivemos que alugar nossas linhas e ir ao centro da cidade todo mês para saldar as contas. Ainda por cima, era preciso contar com almas generosas, como a do saudoso Ti-Tom (Gladstone Prado), para servirem de avalistas.

O governo militar, como se sabe, controlava o acesso ao serviço restringindo a competitividade e assim mantendo os preços fora de lógica e fora de alcance à maioria dos brasileiros. Então João Figueiredo desceu do cavalo e… salve Fernando Henrique Cardoso, e afasta de mim aquele “cale-se” chamado Telebrás! Que coisa horrível, não? Mas é assim mesmo que a modernidade se instaurou no Brasil: lenta e injustamente e... cheia de disparates.

Hoje o telefone celular (o “telemóvel” para os portugueses e africanos) é um dos instrumentos eletro-eletrônicos mais usados em todo o mundo. Em nosso país deve haver mais telefones celulares do que bíblias católicas ou protestantes. São milhões e milhões deles, e por isso temos um sério motivo para pensar que, como os povos de outros países, também vivemos numa forma de pós-modernidade globalizada.

Antes de falar desses nossos dias de internet, i-phone, i-pod, e GPS, eu queria recordar um samba histórico e controvertido por natureza, composição e gravação: “Pelo telefone”. Para lembrar-lhes da canção, aqui estão dois de seus famosos versos: “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar / Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”.

Em uma de suas passagens mais engraçadas a canção se auto denomina “samba”: “Porque este samba, sinhô sinhô / É de arrepiar, sinhô sinhô / Põe a perna bamba sinhô sinhô / Mas faz gozar”. A questão é que “Pelo telefone” foi escrito em 1916 e lançado em 1917, quando a tradição do samba ainda não tinha sido estabelecida. Apesar de muitos historiadores registrarem essa canção de Ernesto Joaquim Maria dos Santos (mais conhecido como Donga) e Mauro de Almeida como se tivesse sido o primeiro samba gravado, na verdade “Pelo telefone” não foi o tal, porque essa canção não é samba. É, sim, um maxixe que fez enorme sucesso no carnaval por várias décadas.

A controvérsia, de fato, é anterior a essa questão de gênero musical, que aliás, ficou mais ou menos resolvida ao se concordar que “O telefone” seja um samba-maxixe. Segundo alguns pesquisadores, Donga foi muito “espertinho” e registrou o “samba” como se fosse somente seu. A escrita teria sido coletiva, entretanto, numa roda de cerveja e cachaça na casa da Tia Ciata, famoso reduto de boêmios na primeira capital da República.

O telefone enquanto “personagem” na canção de Donga (e companheiros) proporciona acesso a informações estratégicas ao malandro sobre roletas (provavelmente ilegais) no centro da cidade. Curiosamente a dica vem de um chefe de polícia. No poema-canção o telefone também serve para uma conversa um pouco estranha entre o malandro que canta e um dos seus rivais, que ouve uma espécie de praga do cantor-poeta: “Tomara que tu apanhes / Não tornes a fazer isso, / Tirar amores dos outros / Depois fazer seu feitiço”.

O uso do telefone no Brasil ainda é uma questão às vezes associada à ilegalidade e marginalidade, como se percebe nas discussões da mídia sobre o controle dos celulares de traficantes em liberdade ou no cárcere. Porém, a sociologia desse instrumento de comunicação no Brasil tem muitos outros aspectos. Recentemente li uma entrevista do antropólogo Roberto DaMatta a minha colega de profissão, Luci Moreira, em que o carioca discutia os efeitos da pós-modernidade e da globalização. No Brasil, afirma DaMatta, o telefone celular é muito usado para falar com a família e amigos. Sua difusão, argumenta o professor, “tem a ver com a sua capacidade de ampliar um valor tradicional, no caso, as velhas relações familiares e de amizade da sociedade brasileira”.

Sem discordar do grande antropólogo, desconfio que algo mais esteja paulatinamente acontecendo no Brasil de modo semelhante ao que se vê com mais frequência aqui nos Estados Unidos. O telefone hoje é um computador. Como tal, ele nos oferece muito mais que essa comunicação familiar. O meu telefone LG, por exemplo, me auxilia a dirigir, literalmente dizendo onde estou, onde devo virar, onde há engarrafamentos, postos de gasolina, restaurantes, farmácias, hospitais, e tal—tudo pelo sistema GPS, via satélite.

O telefone do século XXI também afasta as pessoas, entretanto. Dão-lhe entretenimento privado, particular e exclusivo. Também oferecem amizades fictícias e amores levianos, alguns deles perigosos ou abusivos. Ademais, observa-se como que adolescentes se sentem mais independentes e agem com muito menos interferência dos pais. Antigamente, com apenas um telefone em casa, pai e mãe tinham uma idéia de quem telefonava para seus filhos. Sabia-se até mais que isso, por se ouvir parte da conversa na mesma sala ou copa onde se encontrava o aparelho. Hoje, os pais têm pouquíssima consciência de quem telefona aos jovens da casa. Estes conversam, fazem planos, e muitas vezes os pais são os últimos a saber do que os filhos e amigos já combinaram de fazer.

Esse enorme acesso à comunicação também permite que o jovem viajando com os pais se mantenha em contato com os amigos que deixou na sua cidade. Ele então não se desprende totalmente do que poderia estar fazendo se não estivesse acompanhando os pais, e lá vem conflito, um conflito muito maior do que o que se conhecia no passado. Gostariam de estar em vários lugares a um só instante, o que (ainda?) é impossível. Já são capazes, porém, de fazer mil coisas ao mesmo tempo: assistir a um filme, ouvir música, escrever e enviar mensagens eletrônicas, comer chips e ainda falar com um amigo ao telefone.

Este mundo pós-moderno tem muitas maravilhas, sim, mas causa muitos danos, também. É lamentável a noção de “direito” que muitas crianças e adolescentes vêm adquirindo. São jovens que crescem pensando que filmes, canções, jogos eletrônicos e conversas constantes com os amigos fazem parte de um mundo de privilégios com os quais nasceram e que tudo o mais nas suas vidas deverá ser assim: fácil, rápido, eletrizante, colorido e digital, como é a vida pelo telefone no século XXI. Não sei não, mas desconfio que muita decepção também virá em forma de correio eletrônico, por um i-phone, i-pod, ou coisa parecida. Um dia a ficha vai cair e muitos jovens vão saber que sem trabalho e sem luta não se chega a lugar algum, pois nada cai do céu. Apesar de todo o avanço da tecnologia, ainda mais importante são a fé em quem realmente somos e a determinação para se trabalhar e construir uma vida concreta, bem menos cintilante, mas bem mais firme, que a etérea e fantasiosa realidade virtual online, desse outro mundo de alta tecnologia—instantâneo e falsamente sem limites.

Prazeres, Riscos e Danos

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