Ensaios e crônicas em português ou inglês sobre artes, literatura, viagens, e o cotidiano na Nova Inglaterra. // Personal essays and crônicas in Portuguese or English about art, literature, travel & day-to-day in New England.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Décadas
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de Ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. – Carlos Drummond de Andrade
O que é uma década? Todos sabem que é um período de dez anos, mas que surpresa tive eu numa fila de supermercado essa semana! Li a manchete numa revista semanal: “Acaba-se mais uma década!” Como é que é? Já estamos ao fim de mais uma? E como é que eu não me dei conta disso antes? Nem por um minuto nesses últimos doze meses pensei que estaríamos finalizando os primeiros dez anos do século XXI. Espera aí, não foi outro dia que tivemos aquela festa toda, depois de certo pânico com os computadores, pois eles entenderiam a chegada do ano (20)00 como a volta ao ano de 1900? É claro que também havia os grupos messiânicos e apocalípticos prevendo o fim do mundo em 2000.
O tempo é apenas uma referência em nossas vidas. Aquilo que de fato acontece em dez anos é o que nos marca e o que importa. Como referência, o tempo tem que ser vivido várias vezes durante certos períodos específicos para que possamos nos referenciar a ele corretamente, ter a uma razoável noção do que é um minuto, uma hora, um dia, uma semana, um mês, um ano e... uma década. Ninguém obviamente pôde ainda viver uma vida de mil anos. Portanto, é pela abstrata percepção do tempo histórico – a constatação de fatos que nós não vivemos diretamente – que podemos acreditar na veracidade de um milênio.
É muito mais fácil, porém, apreender o conceito por trás de uma década. Mesmo assim, essa idéia não é acessível a todos. Como pode um homem de 25 anos de idade entender bem o que é uma década? Ele só viveu metade de uma enquanto adulto! O problema maior, eu acho, é que na vida não há tempo para treinamento ou ensaio: antes de aprendermos a viver (se é que aprendemos) já estamos sendo testados pelas contingências do acaso, muitas vezes até pelos horrores da tragédia, que, aliás, nos chegarão, mais cedo ou mais tarde.
Agora, já vivendo na casa dos 50, tenho marcas na história da minha existência que me ajudam a entender o que é uma década. Estou aqui, morando mais uma vez nos Estados Unidos, há dez anos. Dez anos anteriores àquela mudança eu me casava. Entre hoje, o início de 2000, e o raiar da década de 1990, rolaram duas décadas – mas o que são 20 anos? Bem, mudei-me de casa umas 15 vezes, perdi ótimos amigos, uma queridíssima prima, e até uma irmã. Prefiro, pois, relembrar Fernando Sabino, para quem o “valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.
Por outro lado, foram tantas coisas boas. Nasceram-me dois lindos e saudáveis filhos, mais gigante e apaixonante golden-retriever. Vi meu pai praticamente renascer depois uma cirurgia cardíaca, minha mãe sobreviver penosamente a um câncer, e quatro de meus sobrinhos e sobrinhas se formarem e se casarem. Foi o tempo em que descobri o email, o telefone celular (e, depois, as suas maravilhosas mensagens comumente chamadas de “torpedos”) e as conversas instantâneas por computador (os ditos chats). Conclui dois mestrados e um doutorado, escrevi três livros, publiquei uns 30 trabalhos acadêmicos em vários países, e nove artigos de página integral no Estado de Minas. Também criei um blog de crônicas, através do qual compartilho idéias e histórias ao conversar com amigos-leitores espalhados pelo mundo. Ah... viajei muito, também -- a pelo menos quinze países.
Então é isso aí – uma década é tempo para muitas realizações e eventos radicais nas nossas vidas, mas não é nenhuma eternidade. Mais difícil é pensar que sabendo bem como uma década é pouco tempo, o ser humano só pode, em média, desfrutar de algumas delas: pouco mais que cinco após se tornar adulto. Então, aos 50 anos, sabendo mais ou menos o que cabe e não me cabe numa década, quantas me restam? Três já foram para o espaço. Se for de sorte mediana (tendo em mente a expectativa de vida média perto de 73), terei mais duas décadas e uns quebrados pela frente, antes de bater as botas. Se concordarmos com o grande filósofo romano Sêneca, tudo isso é bobagem: “O importante é viver bem, não viver por muito tempo. Muitas vezes vive bem quem não vive muito”.
Como dizia John Lennon, “a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados fazendo outros planos”. Millôr Fernandes também colabora: “quem mata o tempo não é assassino; é um suicida”. Por isso quero e vou renovar minhas esperanças e reconstruir sonhos agora e a cada fim de ano – saravá! Bem, o relógio está batendo. É melhor acabar logo esta crônica e tomar mais um trago de uma excelente cachaça, a Vale Verde, que recebi de uma amiga a quem conheço há quase três décadas. Com aquela água-benta, digo, aguardente, ela me desejava mais 50 anos de vida. Os Oscar Niemeyer e Manoel de Oliveira da vida existem, sim. Quem sabe tomaram dessa pinga ou de outra tão boa para alcançar os cem anos de idade mais que lúcidos – produtivos!
sábado, 12 de dezembro de 2009
Outono de ciúmes
Outono de ciúmes
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Ainda não sei bem de que vou tratar nesta crônica. Devido ao pouco espaço que temos nos jornais, é preciso ser objetivo. Por isso mesmo eu nem deveria tecer estas considerações, pois já estão utilizando três ou quatros linhas da parcela que me cabe nesta página de jornal. Este preâmbulo me faz pensar em certos acadêmicos. Ao iniciarem suas palestras falam que vão ser breves, mas acabam por gastar quase dez minutos antes mesmo de ler uma linha do seu trabalho.
Ao especular sobre o que escrever, lembranças da noite anterior me cutucam a mente. Então, como vai ficar esta crônica? Sobre o quê estou aqui para conversar? Meu leitor tem certa vantagem sobre mim. Você que agora lê estas “mal traçadas linhas” já sabe qual é o título desta crônica, mas eu ainda não. A primeira idéia que tive foi chamá-la de “Arqueologia do ciúme”, mas desisti. É muita ambição para pouco espaço que, aliás, vai acabar logo. Bem, já que as folhas por aqui caíram todas e o outono está quase por desaparecer por completo (nevou duas vezes esta semana!), resolvi intitular este texto de “Outono de ciúmes”.
São tantas as inspirações por trás dessa escolha que eu nem poderia sequer mencioná-las todas por aqui, muito menos as desenvolver a contento. Quem sabe começo pelo fim, como o faz Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas? Revisito as conversas de ontem à noite na casa do professor Frank Sousa, então. Estavam lá dois distintos convidados, Carlos Reis e João Cezar de Castro Rocha, críticos de peso no mundo da literatura de Portugal e do Brasil, respectivamente. Antes de começarmos a contar dezenas de piadas (ou anedotas, como dizem os portugas), demos prosseguimento informal às discussões que predominaram pela tarde adentro, quando tivemos um belo colóquio na Universidade de Massachusetts Dartmouth.
Organizado por Sousa, aquele encontro acadêmico enfocava a literatura de Eça de Queirós e Machado de Assis. Reis e Rocha foram as grandes estrelas, e dois dos assuntos que mais renderam análises foram adultério e ciúme. Sobre essas questões, Reis, mundialmente reconhecido como um dos maiores especialistas em Eça, discorreu sobre o romance A correspondência de Fradique Mendes. Por seu turno, Rocha, grande teórico da narrativa machadiana, fez instigantes alusões ao mais famoso livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, ao dissecar os percalços da crítica ferrenha com a qual Machado Assis condenara O primo Basílio, a obra do seu contemporâneo português.
Horas mais tarde, pouco antes do jantar, tive o prazer de apresentar uma pergunta aos ilustres convidados. A questão tinha surgido durante minha aula da última quinta-feira, sobre Dom Casmurro. Um aluno, Marc McCarthy, me perguntara se eu sabia por que razão, ou sob quais circunstâncias da vida real, Machado de Assis teria abordado tão bem os temas do ciúme e do adultério em Dom Casmurro e Memórias póstumas. Não foi Machado um homem de vida burguesa bem comportada, um homem apaixonado por sua casta esposa, Carolina, a portuguesa que, segundo João Cezar, tivera grande influência sobre a carreira do magistral escritor brasileiro?
Aconteceu-me de ter visto, recentemente, uma bela versão cinematográfica de um romance do escritor inglês Graham Greene, Fim de caso. Naquele triângulo amoroso criado por Greene, quem mais sofria de ciúme era o escritor ficcional Maurice Bendrix, o amante, e não a infeliz esposa, Sarah Miles, ou seu marido, Henry, um burocrata tão sem-sal quanto desapaixonante (serve o neologismo?). Tanto os colegas naquele jantar saboroso, intelectual e anedótico, quanto os meus alunos de literatura, ouviram de mim pouco mais que uma pergunta: haveria alguma relação entre a sofisticada e profunda tematização que Machado faz do ciúme em Dom Casmurro e a sua suposta paternidade do poeta Mário de Alencar, oficialmente registrado e reconhecido como filho de José de Alencar? Sabe-se que Mário de Alencar tinha mais que as mesmas iniciais do autor carioca, M. A. Havia também fortes semelhanças físicas com Machado, e ambos eram epiléticos. Ademais, argumenta-se que Machado de Assis teve conduta antiética ao promover o “filho” a membro da Academia Brasileira de Letras.
Infelizmente não há mais espaço para reproduzir aqui as discussões que se seguiram. Elas ficam para a fértil imaginação do leitor, imaginação esta que não faltou aos ciúmes de Maurice Bendrix, Brás Cubas, Bento Santiago e, talvez, Machado de Assis. Se foi assim, assim será. E salve-se quem puder.
Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu
Ainda não sei bem de que vou tratar nesta crônica. Devido ao pouco espaço que temos nos jornais, é preciso ser objetivo. Por isso mesmo eu nem deveria tecer estas considerações, pois já estão utilizando três ou quatros linhas da parcela que me cabe nesta página de jornal. Este preâmbulo me faz pensar em certos acadêmicos. Ao iniciarem suas palestras falam que vão ser breves, mas acabam por gastar quase dez minutos antes mesmo de ler uma linha do seu trabalho.
Ao especular sobre o que escrever, lembranças da noite anterior me cutucam a mente. Então, como vai ficar esta crônica? Sobre o quê estou aqui para conversar? Meu leitor tem certa vantagem sobre mim. Você que agora lê estas “mal traçadas linhas” já sabe qual é o título desta crônica, mas eu ainda não. A primeira idéia que tive foi chamá-la de “Arqueologia do ciúme”, mas desisti. É muita ambição para pouco espaço que, aliás, vai acabar logo. Bem, já que as folhas por aqui caíram todas e o outono está quase por desaparecer por completo (nevou duas vezes esta semana!), resolvi intitular este texto de “Outono de ciúmes”.
São tantas as inspirações por trás dessa escolha que eu nem poderia sequer mencioná-las todas por aqui, muito menos as desenvolver a contento. Quem sabe começo pelo fim, como o faz Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas? Revisito as conversas de ontem à noite na casa do professor Frank Sousa, então. Estavam lá dois distintos convidados, Carlos Reis e João Cezar de Castro Rocha, críticos de peso no mundo da literatura de Portugal e do Brasil, respectivamente. Antes de começarmos a contar dezenas de piadas (ou anedotas, como dizem os portugas), demos prosseguimento informal às discussões que predominaram pela tarde adentro, quando tivemos um belo colóquio na Universidade de Massachusetts Dartmouth.
Organizado por Sousa, aquele encontro acadêmico enfocava a literatura de Eça de Queirós e Machado de Assis. Reis e Rocha foram as grandes estrelas, e dois dos assuntos que mais renderam análises foram adultério e ciúme. Sobre essas questões, Reis, mundialmente reconhecido como um dos maiores especialistas em Eça, discorreu sobre o romance A correspondência de Fradique Mendes. Por seu turno, Rocha, grande teórico da narrativa machadiana, fez instigantes alusões ao mais famoso livro de Gustave Flaubert, Madame Bovary, ao dissecar os percalços da crítica ferrenha com a qual Machado Assis condenara O primo Basílio, a obra do seu contemporâneo português.
Horas mais tarde, pouco antes do jantar, tive o prazer de apresentar uma pergunta aos ilustres convidados. A questão tinha surgido durante minha aula da última quinta-feira, sobre Dom Casmurro. Um aluno, Marc McCarthy, me perguntara se eu sabia por que razão, ou sob quais circunstâncias da vida real, Machado de Assis teria abordado tão bem os temas do ciúme e do adultério em Dom Casmurro e Memórias póstumas. Não foi Machado um homem de vida burguesa bem comportada, um homem apaixonado por sua casta esposa, Carolina, a portuguesa que, segundo João Cezar, tivera grande influência sobre a carreira do magistral escritor brasileiro?
Aconteceu-me de ter visto, recentemente, uma bela versão cinematográfica de um romance do escritor inglês Graham Greene, Fim de caso. Naquele triângulo amoroso criado por Greene, quem mais sofria de ciúme era o escritor ficcional Maurice Bendrix, o amante, e não a infeliz esposa, Sarah Miles, ou seu marido, Henry, um burocrata tão sem-sal quanto desapaixonante (serve o neologismo?). Tanto os colegas naquele jantar saboroso, intelectual e anedótico, quanto os meus alunos de literatura, ouviram de mim pouco mais que uma pergunta: haveria alguma relação entre a sofisticada e profunda tematização que Machado faz do ciúme em Dom Casmurro e a sua suposta paternidade do poeta Mário de Alencar, oficialmente registrado e reconhecido como filho de José de Alencar? Sabe-se que Mário de Alencar tinha mais que as mesmas iniciais do autor carioca, M. A. Havia também fortes semelhanças físicas com Machado, e ambos eram epiléticos. Ademais, argumenta-se que Machado de Assis teve conduta antiética ao promover o “filho” a membro da Academia Brasileira de Letras.
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