domingo, 18 de novembro de 2012

Uma casa assassinada


Uma casa assassinada


Dário Borim Jr 


Rua Presidente Getúlio Vargas, número 11. Foi ali que mataram um belo prédio, um casarão discreto, estilo colonial. Amputaram um membro de um corpo outrora formoso de cidade. Foi de madrugada. No obscuridade da noite. Na calada dos inocentes. Na premeditação dos cúmplices. Que horror!
Na verdade nem sei como dizer o que quero dizer. Não sei se há palavras para expressar o que sinto, o que tanta gente sente, pelo que já li e ouvi de muitos paraguaçuenses. Mas vou tentar. Escritor tem direito a gaguejar, a sentir-se impotente diante de certos desafios e responsabilidades. Minha mente e meu coração, porém, me dirigem a palavra. Eu ouço:
— É covardia! É ignorância! É desprezo! É desleixo! É desrespeito! É ganância! É triste! Muito triste! É revoltante! É muito feio!
Eu admirei, respeitei e amei a tia Noêmia como o fiz, ou o farei, a poucas pessoas desse mundo. Muita gente a amou. Pessoa boníssima. Inteligentíssima. Caridosa. Culta. Justa. Sincera. A cidade de Paraguaçu também amou aquela extraordinária mulher, Noêmia Prado. E a cidade ainda lhe deve muito, por tanto que fez por Paraguaçu, principalmente na escola, no posto de puericultura, na prefeitura e na igreja. Essa dívida é viva. Ela, tia Noêmia, onde ela estiver, ou a memória dela, como queiram, não merecia tal disparate!  A memória da nossa cidade e do nosso povo, a integridade histórica e arquitetônica da Praça Oswaldo Costa, tampouco! Nada e ninguém mereciam essa estupidez. Meu sobrinho, o arquiteto Alexandre Borim Codo Dias, ajudou, ajudou muito, e muito mais gente o ajudou: assim a casa foi tombada pelo Patrimônio Histórico. Mas, o quê? Destombaram o prédio? Teria sido possível? Como? Em nome do quê? Por quê? Para quê? Nova galeria? Lucro? Modernidade? A que custo?
O passado não é onde vivemos quando amamos, respeitamos e preservamos o passado. Quando, por ele temos consideração e apreço, ele vive dentro de nós. Sim, dentro de nós! Porque nós, no presente, somos a soma de todo o nosso passado. E não respeitar o passado é não ter auto-respeito. É ser incapaz de superar as amarras da ignorância, as marcas e o peso do subdesenvolvimento. Essa negligência é marca encarnada de barbárie e mesquinhez que nenhuma falsa modernidade poderá encobrir.
A casa da tia Noêmia, estivesse onde ela estivesse, deveria sobreviver aos avanços da usura, avareza e ambição. Era simples, mas bela. Era imponente enquanto documento vivo, enquanto registro e membro muito importante do corpo histórico da nossa cidade. Amputaram-na. Agora é buraco. Agora é pó. Agora, onde existia, há nuvens da destruição traiçoeira, do entulho que demarca a cena de um crime cultural.
As consequências da maldade são ululantes, desconcertantes, e chamam atenção de todos os que vão à igreja, ao coreto, aos jardins, aos bancos, aos restaurantes e aos bares da nossa linda Praça Oswaldo Costa. Será que os monstros não viram nada disso? Não entendiam? Não pensaram? Era bem destacada a localização da casa da tia Noêmia. Bem no centro da praça central da cidade: à direita, um quarteirão, e à esquerda, o outro, dos dois que compõe a praça. Foi por isso, então, que a mataram? Era sua culpa existir ali, no coração da cidade?
Já ouvi dizer que os novos proprietários da casa da tia Noêmia clamaram que não tinham dinheiro para fazer o que deveria ser feito: reformar o prédio, mas também preservar a fachada e sua estrutura. Não ter dinheiro não é desculpa para destruir, ou, melhor dizendo, para matar, um prédio como aquele. Não sei se foi até mesmo um caso de latrocínio. Talvez. Pelos detalhes que se revelaram, expondo o grau de covardia naquela noite sinistra, com corte de luz e com ação sob a cobertura da escuridão, imagino que sim, que foi um latrocínio cultural histórico. E se foi coisa de assassino, bem, assassino que se preza traz consigo suas pistolas. Mas disso eu não tenho certeza. Não importa. Tratores e guindastes também matam. O que sei é que as vítimas somos todos nós, os que amamos Paraguaçu, os que a queremos viva, bela e senhora de si, senhora da sua história e da sua identidade.
Talvez tenhamos sido vítimas da ignorância de uma parte do nosso próprio povo, pois essas pessoas elegeram dirigentes que não podem estar muito distantes do cerne de tal impensável e inaceitável insensibilidade. Se de fato ocorreu isso entre nós, isso é trágico. Gente cega e poderosa também é gente perigosa — gente que pode ter aquiescido, orientado e/ou propelida as ações daqueles assassinos da casa da tia Noêmia.
E agora? Será que se aprendeu uma lição? Será que a justiça e se aplicará aos responsáveis pelo ilícito e pelo abominável? Ou será que vamos simplesmente sentir muita saudade ao lamentar a morte da casa da tia Noêmia? Será que só vamos tentar esquecer o ocorrido e fugir do temor pela amputação de outras partes do nosso ser coletivo, da nossa alma enquanto povo de uma cidade?

21 comentários:

Goretti disse...

Darinho. vc sabe o quanto esta demolição nos deixou estarrecidos... Por mais que eu queira, não consigo entender o propósito desta ação aterradora... Durante anos fui membro do Conselho do Patrimônio Histórico de Paraguaçu, sempre lutamos pela manutenção deste imóveis antigos que contam a nossa história. E hoje, o que vai contar a história da família de tio Luluca?

Não só a vida de D. Noêmia, mas de toda uma família e da cidade... Estou tão abismada quanto vc; isto de modo geral, feriu a todos nós...Por maior que seja a penalidade, que se pague, nada trará de volta esta casa imponente...agora faz-se necessário uma ação do ministério público em favor do tombamento dos outros imóveis da Praça Oswaldo Costa e rua Ferreira Prado, pois, daqui há alguns anos creio que nada se conservará e a história ficará apenas no papel...Infelizmente, é a nossa realidade...lastimo...Um abraço!

Rosane disse...

Fiquei estarrecida com a demolição da casa da Dona Noêmia! Como muitas outras que circundam a praça, era um casarão histórico.O que virá em seguida? A casa do meu tio Mazico? O Cinema? O Hotel?...
Sera com grande tristeza que ao voltar para minha terra natal não encontre mais essa esquina como era outrora! Senhores do poder que estupidez é essa! Contramão da história? Não confundam modernidade com progresso! Progresso é garantir a história as futuras gerações, ai de nos se não existissem cidades como Parati, Olinda, Ouro Preto, Goias Velho...
Esse é literalmente um vazio que nos toma de assalto!

Vinicius disse...

Acabei de chegar de Paraguaçu e posso dizer que a visão daquela esquina é de doer o coração. E as opiniões são as mais desencontradas possíveis : como já disse anteriormente, há quem considere isto sinal de progresso. Acho que além do tombamento há que se estudar medidas para viabilizar a conservação destes imóveis , pois de forma geral a tendência é que, com o decorrer do tempo, os herdeiros acabem por vendê-los por motivos os mais diversos.

Infelizmente ainda temos algumas semanas até que as coisas possam mudar. Vamos esperar que os desdobramentos no aspecto legal aconteçam . A cidade está maltratada e cheia de problemas, e como de outras vezes não houve nenhuma consequência prática, você pode imaginar o que anda ocorrendo.

Rosane disse...

Não me venham com essa história de progresso..uma pequena pesquisa na internet nos mostra qual cidade é mais visitada, Veneza ou Dubai?

Darinho disse...

Temos que ter pelo menos leis que protejam o patrimonio historico e temos que ter a atuacao concreta da policia para punicao de quem quebrar as leis. Sem lei ou sem respeito a lei, nao ha' justica, nao ha' civilizacao, e nao ha' preservacao do patrimonio cultural ou mesmo da saude publica, por exemplo. Construcao tem que seguir as leis, ter aval, e desconstrucao, tambem! Herdeiros podem vender o que quiserem, mas quem comprar tem que seguir as leis, senao temos a lei da selva capitalista, onde somente o dinheiro dita o comportamento. Modernidade e mesmo progresso sao desculpas para o ridiculo e o imponderavel, como o asfalto na Praca Oswaldo Costa.Tem gente que acha bonito, e dai? Que gente e' essa? Pretende-se ali uma pista de corrida de Formula-Um, p. ex.? Mas a imbecil modernidade com certeza foi a retorica a favor do asfalto, ne'? Abs

Rosa disse...

Li a sua cronica! Eta, tava bravinho ne? Gostei muito! Vai publicar na Voz da Cidade?

Leila disse...

oi, dario.
li a sua cronica. sinto muito pela grande perda. nossa, q coisa... nunca vi algo tombado ser demolido. isso e coisa seria pq envolve o poder federal, nao?
e quem foi tia noemia?
vc tem q como me adicionar a lista? eu busquei nos botoes la e nao consegui. se nao tem como me adicionar, poderia me dizer os passos prncipais de onde ir p/ eu me inscrever?
obrigada!

Anônimo disse...

Darinho, estive em Paraguaçu neste feriado. A sensaçao que tive ao me deparar com aquele vazio, foi um enorme buraco no coraçao. A praça está a cada dia mais descaracterizada, mais fria...mais... sem palavras, falar o que desta tamanha ignorância?????

Silvana disse...

Ei, irmão, como você expressou tao bem sentimentos que todos temos deste cenário chocante!Dói mesmo como um machucado no corpo!Um beijo Nina

Zé disse...

Darinho

Emocionante, lindissima; pena que sob a inspiração da tragédia. Difícil acreditar que fizeram sozinhos sem estarem com alguma orientação e proteção.

Alguém já disse que povo sem passado é um povo sem futuro e parece-me que Paraguaçu segue este caminho.

Abraços e solidariedade

Morgana disse...

Belíssima crônica, Darinho! Não consegui deixar o comentário lá no blog... É triste constatar essa troca da sensibilidade por outros valores. Essa praça fez parte da minha infância também! Tomara que os responsáveis sejam punidos, e condenados a reconstruir tudo, idêntica fachada... mas claro que nunca mais seria a mesma, eles levaram embora a essência, o mais bonito que existia aí, a originalidade. Mereciam um boicote ao seu comércio. Parabéns pela crônica!

Ines Helena disse...

Lindo texto Darinho. Deixei um comentário no blog, mas não sei se deu certo. Beijos

Goretti disse...

Darinho, atualmente não sei quem é presidente do Conselho do Patrimônio, mas a partir do próximo ano será outro, pois com a mudança política, quem sugere os nomes para novo mandato é o prefeito,e o Sr. Evandro, sabe perfeitamente, quais as pessoas em Paraguaçu, que se interessam por esta causa... há algumas pessoas querendo retornar ao Conselho,para poder restaurar certas leis sobre patrimônio, que ficaram digamos "esquecidas", por interesses pessoais. Coisas de nossa terra.

Rosane disse...

Estou compartilhando um link sobre a cidade de "Bocaina" terra natal de meu marido , fica bem perto de S. Carlos e lá os moradores se conscientizaram da importância de se preservar a história da cidade mesmo qdo o município não possui legislação específica para tal.

Darinho...
são dois links sobre o assunto
UM
http://globotv.globo.com/rede-globo/antena-paulista/v/cidade-do-interior-paulista-preserva-centenas-de-casaroes-da-epoca-do-cafe/2140821/

DOIS
http://globotv.globo.com/tv-tem-interior-sp/tem-noticias-1a-edicao-baurumarilia/v/bocaina-sp-preserva-cerca-de-200-casaroes-do-seculo-19/2187741/

Cidade do interior paulista preserva centenas de casarões da época do café
A centenária cidade de Bocaina, localizada no centro-oeste do estado,abriga cerca de 200 casarões da época do café. As construções espalhadas pela cidade foram construídas no fim do século XIX e muitas delas estão reformadas e muito bem conservadas.

José Codo disse...

Darinho
Emocionante, lindissima; pena que sob a inspiração da tragédia. Difícil acreditar que fizeram sozinhos sem estarem com alguma orientação e proteção.
Alguem já disse que povo sem passado é um povo sem futuro e parece-me que Paraguaçu segue este caminho.
abraços e solidariedade

Fabio disse...

OI Darinho, li seu artigo, e concordo em parte com sua posição, mas realmente as coisas acontecem á margem da vontade popular e da máxima que o povo é dono de seu destino. A derrubada da casa da D. Noêmia causou forte impacto na população, nos sentimos violentados, nos sentimos em uma terra onde leis não são respeitadas, mas acredito que todos somos culpados. Há muito tempo carregamos a alcunha de "a cidade do já teve", devido aos tantos atos de nossa população que na maioria dos casos prefere criticar as ações adotadas do que realmente participar nas decisões. Para que não perdamos mais , precisamos de lideranças que dividam com os cidadãos seus direitos, obrigações, sabendo ouvir e filtrar as melhores intenções. Imaginar que pessoas irão comprar os casaróes para mantê-los com suas características atuais ao meu entender é mera utopia, ou criamos uma projeto turístico e cultural para mantermos essas construções ou veremos ainda outros serem derrunados a favor da especulação imobiliária que corre solta em nossa terra.

Fabio disse...

OI Darinho, li seu artigo, e concordo em parte com sua posição, mas realmente as coisas acontecem á margem da vontade popular e da máxima que o povo é dono de seu destino. A derrubada da casa da D. Noêmia causou forte impacto na população, nos sentimos violentados, nos sentimos em uma terra onde leis não são respeitadas, mas acredito que todos somos culpados. Há muito tempo carregamos a alcunha de "a cidade do já teve", devido aos tantos atos de nossa população que na maioria dos casos prefere criticar as ações adotadas do que realmente participar nas decisões. Para que não perdamos mais , precisamos de lideranças que dividam com os cidadãos seus direitos, obrigações, sabendo ouvir e filtrar as melhores intenções. Imaginar que pessoas irão comprar os casaróes para mantê-los com suas características atuais ao meu entender é mera utopia, ou criamos uma projeto turístico e cultural para mantermos essas construções ou veremos ainda outros serem derrunados a favor da especulação imobiliária que corre solta em nossa terra.

Frederico disse...

Darinho,
Li e como sempre gostei muito de seu texto. Tomei a liberdade de compartilhá-lo num grupo chamado Paraguaçu e a repercussão já começa a se dar! Um abraço!

Kabana disse...

Oi Darinho, a gente tá é trabalhando demaissssss, não vejo a hora de dar uma parada. Adorei sua última crônica; bacana, viu? É bom ter alguém que consiga expressar o que a gente, às vezes, não consegue.

Cacá disse...

Uma perda irreparável. Compartilho da indignação.
Beijos,
Cacá

Practical Fitness: Private, One-on-One, Exercise Studios disse...

Darinho,

É o asfalto na praça, as arvores, a casa do meu avô, agora esse casarão tão bonito. A cidade tinha que ter um mínimo de planejamento.

Um forte abraço, Alcyr

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