segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sopros de vida

Sopros de vida 

Mais um fim de mês vem chegando. Uma amiga de Belo Horizonte, leitora assídua deste blog, já me havia escrito um email reclamando mais uma crônica. Escritor vive disso – não é? – da impressão de fazer alguma diferença na vida de alguém. Podemos não chegar a tanto, mas sonhamos com a pequena importância que pode ter o nosso gesto criativo, nossas horas de reflexão e diálogo conosco mesmos, que desejamos estender a todos que por eles se interessem – tanto o leitor conhecido quanto o desconhecido, o real ou aquele apenas sonhado. 

Enquanto questiono qual tema devo, aqui, abordar, um livro não me sai da cabeça: Why This World, de Benjamin Moser. Lançado para o mundo de língua inglesa pela Oxford UP, a obra foi traduzida para o português por José Geraldo Couto e publicada no Brasil pela Cosac Naify com um título que inclui uma vírgula matreira, Clarice,. Esse maravilhoso misto de biografia e análise literária anda mesmo presente no meu cotidiano desde o momento em que o apanhei na estante de uma livraria em Providence, Rhode Island. 

É sobre algo em torno desse livro que hoje quero refletir, embora não me sinta plenamente preparado. É que receio que não se possa falar bem, no espaço de uma crônica, de uma vasta e questionadora obra como aquela, de uma vida tão interessante e chocante como a de Clarice Lispector, de uma ficção tão complexa e intrigante como a que ela nos deixou ao falecer aos 57 anos de idade, e muito menos da brilhante análise e exposição que Moser faz das relações entre a arte de vanguarda genial e o drama pessoal de uma artista imortal. Aceito, entretanto, o desafio de instigar a imaginação do leitor com alusões à experiência surpreendente que foi me aproximar da mente e da criação de uma das escritoras que mais me fascinam. 

Não há como escolher o ponto certo para o início dessa jornada que me proponho. As referências de Moser ao primeiro romance de Clarice, Perto do coração selvagem, por exemplo, me surgem quase aleatoriamente. Fazem-me recordar que essa também foi a primeira obra que li da romancista judia que imigrou da Ucrânia para o Brasil antes de completar um ano de idade. Em 1942, ano anterior ao seu casamento com o diplomata Maury Gurgel Valente, seu colega de faculdade de direito, a escritora de apenas 21 anos elaborava naquele romance um profundo questionamento das possíveis dificuldades da vida matrimonial: a perda da privacidade, o peso da cumplicidade, a restrição da liberdade, e, talvez, ainda mais atemorizante, a definição de um destino certo, previsível, e acético para a mulher, principalmente se esse destino era o de exemplar esposa do lar. O casamento da autora duraria 16 anos. Quando o ex-marido lhe escreveu uma carta buscando reconciliação, utilizou-se exatamente das duas protagonistas de Perto do coração selvagem, Joana e Lídia, para expressar sua forma de ver o comportamento da autora/ex-esposa, uma mulher claramente atormentada pelo medo de amar, por depressão, e por uma desesperadora saudade do Brasil, país que nunca lhe saía da mente, onde quer que fosse – Itália, Suíça, ou Estados Unidos. 

As relações entre a vida e a arte dos artistas são assuntos que há anos me fazem ponderar o preço da fama. Nos últimos 12 meses minhas dúvidas se avolumaram ao ler sobre Vinicius de Moraes, Gibran Kahlil Gibran, D. H. Lawrence, Machado de Assis e Graham Greene, entre outros. O que me parece especialmente revelador e inusitado no caso de Clarice Lispector é que a autora pareceu viver uma vida em que a própria experiência empírica continha fortíssimos elementos da ficção que ela ia criando ao longo de três décadas. Era como se a escrita determinasse os caminhos da autora pelo mundo afora, desde o primeiro romance até os dois últimos. Em um destes, a pseudo-autora/narradora quer morrer, como ela própria, Clarice, parece ter desejado também, apesar do sucesso financeiro das vendas e o valor simbólico da glória no seu último ano de vida, 1977. Aquele novo momento de luz – repetindo a celebridade efêmera que lhe chegara após o lançamento do romance de estréia, 33 anos antes — talvez a fizesse se sentir um tanto redimida da ansiedade e da frustração acumuladas em longos períodos de sua carreira profissional. 
 
Ao final da vida Clarice Lispector havia desenvolvido grande cinismo diante do poder da própria literatura. Pensava que com ela, com a sua obra, não salvaria ninguém. Na melhor das hipóteses, poderia salvar a si mesma. Ela escrevia por sentir necessidade visceral de fazê-lo, forma irrecusável e insubstituível de se sustentar emocionalmente. Quando já não mais podia contar com o salário do marido, depois da separação, em 1959, a literatura também passou a constituir seu único ganha-pão, profissão esta que, em certa medida, desejou abandonar. Em Um sopro de vida há uma personagem-escritora cansada de escrever e de viver. Por isso desejava fazer com que uma de suas personagens, Ângela Pralini, morresse de câncer. Pois, assim, a vida da autora, Clarice Lispector, seguiu a arte da autora dentro da arte. Clarice posteriormente contraiu um câncer nos ovários, como se eles estivessem secos, como os de Macabéa, a protagonista de A hora da estrela (uma nordestina, como ela própria se sentia, por ter nascido e vivido até os 15 anos no Recife). 

Uma das lições de vida que me passa a obra de Moser (e a literatura de Clarice Lispector, naturalmente) é que nos tornamos muito vulneráveis ao colocar toda a nossa fortuna, por maior ou menor que seja ela, numa ficha só. Assim aconteceu ao protagonista de Scott Fitzgerald, no seu festejado romance O grande Gatsby, para quem o amor desenfreado por Daisy o separou do real e do plausível. Quando apostamos tudo o que temos numa única fonte de seiva, tal como uma determinada pessoa ou uma determinada ocupação, e esse sopro de vida absoluto se esvai, o vazio poderá não nos deixar crer em outra razão de viver. Viver, assim, sem razão, é um inóspito sofrer, é meio caminho à morte. Paradoxal como sua própria obra, Clarice trilhou esse meio caminho, mas resistiu como pôde à outra metade. Até as últimas horas de sua sofrida existência, quando já se encontrava sedada, ela não parou de escrever, ditando suas últimas palavras a Olga Borelli, uma fã de sua literatura que se tornou sua amiga, editora, governanta e, praticamente, figura-de-mãe-adotiva. 

Era como se Clarice Lispector agora escrevesse as últimas linhas de seu último romance, o romance de toda uma vida. Depois de uma severa hemorragia, ela sabia do seu iminente fim naquela na manhã de nove de dezembro. Levantou-se da cama, quis fugir do hospital e, irritando-se com a enfermeira que a tentava deter ali mesmo, derramou sua cólera: “Você matou minha personagem” (Moser 383). Esse longo e belo relato da existência e legado da maior estrela da literatura brasileira do século XX se encerra, apropriadamente, evocando as palavras do jornalista Paulo Francis: “Ela se tornou sua própria ficção” (Moser 383).

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