domingo, 18 de novembro de 2012

Uma casa assassinada


Uma casa assassinada


Dário Borim Jr 


Rua Presidente Getúlio Vargas, número 11. Foi ali que mataram um belo prédio, um casarão discreto, estilo colonial. Amputaram um membro de um corpo outrora formoso de cidade. Foi de madrugada. No obscuridade da noite. Na calada dos inocentes. Na premeditação dos cúmplices. Que horror!
Na verdade nem sei como dizer o que quero dizer. Não sei se há palavras para expressar o que sinto, o que tanta gente sente, pelo que já li e ouvi de muitos paraguaçuenses. Mas vou tentar. Escritor tem direito a gaguejar, a sentir-se impotente diante de certos desafios e responsabilidades. Minha mente e meu coração, porém, me dirigem a palavra. Eu ouço:
— É covardia! É ignorância! É desprezo! É desleixo! É desrespeito! É ganância! É triste! Muito triste! É revoltante! É muito feio!
Eu admirei, respeitei e amei a tia Noêmia como o fiz, ou o farei, a poucas pessoas desse mundo. Muita gente a amou. Pessoa boníssima. Inteligentíssima. Caridosa. Culta. Justa. Sincera. A cidade de Paraguaçu também amou aquela extraordinária mulher, Noêmia Prado. E a cidade ainda lhe deve muito, por tanto que fez por Paraguaçu, principalmente na escola, no posto de puericultura, na prefeitura e na igreja. Essa dívida é viva. Ela, tia Noêmia, onde ela estiver, ou a memória dela, como queiram, não merecia tal disparate!  A memória da nossa cidade e do nosso povo, a integridade histórica e arquitetônica da Praça Oswaldo Costa, tampouco! Nada e ninguém mereciam essa estupidez. Meu sobrinho, o arquiteto Alexandre Borim Codo Dias, ajudou, ajudou muito, e muito mais gente o ajudou: assim a casa foi tombada pelo Patrimônio Histórico. Mas, o quê? Destombaram o prédio? Teria sido possível? Como? Em nome do quê? Por quê? Para quê? Nova galeria? Lucro? Modernidade? A que custo?
O passado não é onde vivemos quando amamos, respeitamos e preservamos o passado. Quando, por ele temos consideração e apreço, ele vive dentro de nós. Sim, dentro de nós! Porque nós, no presente, somos a soma de todo o nosso passado. E não respeitar o passado é não ter auto-respeito. É ser incapaz de superar as amarras da ignorância, as marcas e o peso do subdesenvolvimento. Essa negligência é marca encarnada de barbárie e mesquinhez que nenhuma falsa modernidade poderá encobrir.
A casa da tia Noêmia, estivesse onde ela estivesse, deveria sobreviver aos avanços da usura, avareza e ambição. Era simples, mas bela. Era imponente enquanto documento vivo, enquanto registro e membro muito importante do corpo histórico da nossa cidade. Amputaram-na. Agora é buraco. Agora é pó. Agora, onde existia, há nuvens da destruição traiçoeira, do entulho que demarca a cena de um crime cultural.
As consequências da maldade são ululantes, desconcertantes, e chamam atenção de todos os que vão à igreja, ao coreto, aos jardins, aos bancos, aos restaurantes e aos bares da nossa linda Praça Oswaldo Costa. Será que os monstros não viram nada disso? Não entendiam? Não pensaram? Era bem destacada a localização da casa da tia Noêmia. Bem no centro da praça central da cidade: à direita, um quarteirão, e à esquerda, o outro, dos dois que compõe a praça. Foi por isso, então, que a mataram? Era sua culpa existir ali, no coração da cidade?
Já ouvi dizer que os novos proprietários da casa da tia Noêmia clamaram que não tinham dinheiro para fazer o que deveria ser feito: reformar o prédio, mas também preservar a fachada e sua estrutura. Não ter dinheiro não é desculpa para destruir, ou, melhor dizendo, para matar, um prédio como aquele. Não sei se foi até mesmo um caso de latrocínio. Talvez. Pelos detalhes que se revelaram, expondo o grau de covardia naquela noite sinistra, com corte de luz e com ação sob a cobertura da escuridão, imagino que sim, que foi um latrocínio cultural histórico. E se foi coisa de assassino, bem, assassino que se preza traz consigo suas pistolas. Mas disso eu não tenho certeza. Não importa. Tratores e guindastes também matam. O que sei é que as vítimas somos todos nós, os que amamos Paraguaçu, os que a queremos viva, bela e senhora de si, senhora da sua história e da sua identidade.
Talvez tenhamos sido vítimas da ignorância de uma parte do nosso próprio povo, pois essas pessoas elegeram dirigentes que não podem estar muito distantes do cerne de tal impensável e inaceitável insensibilidade. Se de fato ocorreu isso entre nós, isso é trágico. Gente cega e poderosa também é gente perigosa — gente que pode ter aquiescido, orientado e/ou propelida as ações daqueles assassinos da casa da tia Noêmia.
E agora? Será que se aprendeu uma lição? Será que a justiça e se aplicará aos responsáveis pelo ilícito e pelo abominável? Ou será que vamos simplesmente sentir muita saudade ao lamentar a morte da casa da tia Noêmia? Será que só vamos tentar esquecer o ocorrido e fugir do temor pela amputação de outras partes do nosso ser coletivo, da nossa alma enquanto povo de uma cidade?

domingo, 30 de setembro de 2012

Amadas e odiadas tecnologias




Amadas e odiadas tecnologias

Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu

A tecnologia de ponta e o que acaba de sair da fábrica como o "melhor", o "mais rápido" e o "mais sofisticado" modelo de um instrumento qualquer, como a última versão do I-Phone, têm uma força enorme sobre a maioria de nós. Queremos comprar, se pudermos, ou pelo menos ver, se tivermos a chance. Porém, não sou eu muito chegado nesses sonhos de consumo. Exemplo: rejeitei o uso do telefone celular pelo maior tempo que pude. Só mesmo quando ele me pareceu ser solução incomparável para casos de emergências envolvendo os filhos pequenos foi que decidi experimentá-lo, isso já no século XXI. Por muito tempo quase não o usei, mas o tinha comigo para algum "caso de emergência" que de fato veio a acontecer, e o tal telefone portátil foi de fundamental ajuda.

Minha atitude reservada diante do celular continua, pois ainda prefiro os modelos mais simples, e, por opção mesmo, evito usar o telefone para ler email ou para navegar na internet, embora o faça em "casos de urgência". É verdade, porém, que meu telefone LG me serve enormemente como GPS há alguns anos, desde quando o filhote mais velho, Ian, passou a jogar futebol em várias cidades e era preciso achar as escolas em tantos cantos diferentes deste estado, Massachusetts, e de mais outros três ou quatro. Confesso, agora, que com ou sem emergência, já não quero viver mais sem um telefone celular só meu. Aquilo já faz parte da vida de quase todos os seres humanos, e não vejo fim nisso não.

A tecnologia hoje está presente em quase todas as nossas atividades, sejam elas de trabalho ou de lazer. Ela desse modo nos traz prazeres e dores de cabeça, de muitas formas e em variados graus de contentamento ou severidade. Pelo meu laptop, por exemplo, conversei com Ian vendo-o ao vivo na minha tela, via Skype, quando trabalhava na Itália nas férias de verão. Algumas vezes assisto a uma partida de futebol do Atlético ou da seleção brasileira que nenhum dos 150 canais da minha televisão vai mostrar. Por 89 centavos eu compro uma canção que gostei de um disco que acabou de sair. Chega a mim instantaneamente e posso tocá-la no Brazilliance, meu programa de rádio e internet, minutos depois. O disco inteiro (gravado em CD) custa bem mais e talvez não me interesse por completo.

Agora vamos falar das dores de cabeça. Outro dia passei duas horas longe do meu escritório (e da internet) e me chegaram umas 25 mensagens eletrônicas, algumas com demandas que eram "para ontem", isto é, ninguém tem mais paciência para nada: querem tudo "de imediato", talvez porque mandamos e recebemos mensagens na velocidade um piscar de olhos. Outra coisa: vejo minha irmã Silvana ter que fazer tudo relacionado ao seu consultório de psicologia através da internet. Mas ela não é secretária e nem é muito chegada em eletrônica. Coitada — tem que se virar. Só falta mesmo ter que medir eletronicamente a eficácia do seu trabalho e dar satisfação técnica a um órgão burocrático da sua profissão.

Na minha profissão, a educação, velho é o namoro entre novas tecnologias e as ideias de como  deve ser uma boa aula, como se dirigir uma escola, e como ser moderno e eficiente nas pesquisas. Isso vai longe no tempo, para além dos dias em que se usavam retroprojetores, projetores de slides, e tocadores de fitas cassetes. Era preciso usar tecnologia para se ter respeito dos administradores e dos colegas. Hoje em dia as projeções eletrônicas por power point e as aulas online são práticas comuns e as expectativas giram em torno delas, quase como que se fossem meios imprescindíveis  no ensino.

Numa reunião que tive essa tarde um colega falava que estava à procura de um professor para ensinar um curso sobre literatura portuguesa no próximo verão. Estima que teremos uns seis ou sete alunos da nossa universidade frequentando o curso, que será dado numa novíssima e moderníssima sala de aula da biblioteca na Universidade de Massachusetts Dartmouth. Os alunos estariam participando das aulas ao mesmo tempo em que seis ou sete alunos da Malásia fariam o mesmo, uns vendo os outros por telões, e todos vendo o mesmo professor: em carne-e-osso de um lado do mundo, e em imagem projetada em telas eletrônicas, a 20 mil km de distância.

Foi com essa última conversa em mente e o mundo high-tech em geral, que fui participar de um evento na escola do filhote mais novo, Zach. Após uma breve auto-apresentação dos administradores da escola em um auditório lotado, fomos todos encaminhados para um rodízio de apresentações em dezenas de diferentes salas de aula. Em sessões de 10 minutos pude conhecer cada um dos professores do meu filho e reconhecer um pouco das suas filosofias de ensino. Nesses dez minutos eles nos falaram de seus cursos, atividades e expectativas, nos passando uma ideia do que é ser aluno deles.

Honestamente, não gostei de quase nada das minhas experiências numa escola secundária de Belo Horizonte, mas ontem à noite eu quis novamente ser aluno do segundo grau. Os três professores que mais me encantaram foram os de História Mundial, Negócios, e Comunicações. Em nenhum momento utilizaram tecnologia, exceto na projeção estática de um único slide com o qual a professora de história mostrava os tópicos do seu curso. Não estou dizendo que ela e demais professores não utilizarão tecnologia em sala de aula. Com certeza, vão. Mas o que aconteceu foi que, para mim, aqueles três professores conseguiram revelar uma forte doze de entusiasmo e sabedoria sem fios: puderam nos engajar em discussões com a habilidade de quem usa bem a palavra, de quem se ocupa da interação humana para o melhor de suas possibilidades: com sorrisos, olhos nos olhos, e postura bem humorada de quem faz o que faz porque ama o que faz. Isso tudo não tem preço e nem não tem concorrente no mundo da educação e no nosso cotidiano — ambos ao mesmo tempo facilitados e desvirtuados pelas amadas e odiadas tecnologias.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Ponto de encontro






Hoje à noite pensei: por que não refletir um pouco sobre alguns paraguaçuenses ausentes? Seria uma pequena homenagem à cidade que neste ano viveu o seu centenário.

Bem, são muitos os paraguaçuenses ausentes, provavelmente várias centenas de pessoas espalhadas por esse mundo afora. Lembro-me, é claro, que esse conceito, o do "paraguaçuense ausente", já embalou muitas confraternizações em Belo Horizonte, onde vive uma senhora colônia de nossos conterrâneos. Já morei lá três vezes, por um total de quinze anos, e posso dizer que é mesmo difícil passar um dia sequer sem cruzar com algum paraguaçuense na capital mineira. Tenho, aliás, uma vaga lembrança de um objeto concreto associado a uma daquelas confraternizações: uma enorme lista de convidados montada pela Dorinha Prado e minha prima Lília Borim Rodrigues. Velhos tempos, bons tempos.

Agora, de um modo bem singelo, quero referenciar alguns grupos de paraguaçuenses ausentes. Não há tempo nem espaço aqui para suas histórias, mas não importa. Quero exercer o pensamento livre e evocar lembranças de pessoas que de algum modo a mim continuam relacionadas até hoje. São amigos e amigas, confesso, e aqueles que não destacarei, que me perdoem. Na verdade só posso incluir amostras dessa bela gente paraguaçuense que optou por viver fora da nossa cidade pelos mais variados desejos e em função dos mais incompreensíveis empurrões que a vida lhes deu. A simples menção desses aspectos, os enredos e os empurrões de cada um, me traz a lembrança de uma noite em que no barzinho do Nadir, o professor Sandro Adauto Palhão e eu (e não sei mais quem) tomávamos umas geladas e conversávamos sobre um livro que alguém deveria organizar, um volume sobre as histórias de cada um dos paraguaçuenses que já moraram (e, muitos, ainda moram) no exterior. Pensamos nos iraquianos Henrique Prado (o vulgo Queta) e os irmãos Delson e Wilson Andrade, nas irmãs californianas Maristela Prado Dunn e Marilene Prado, e também nos europeus Juliano e Rosa Mignacca (Londres) e Tania Prado Marques (Roma), entre outros.

Minha atenção se volta, do mesmo modo, para alguns paraguaçuenses que moram no nosso país, mas em regiões bem distantes do Sul de Minas, como Ana Lúcia Bueno, em Alagoas, os irmão Maurício e Marcelo Viana, em Pernambuco, e Marco Antônio Amaral, no Acre (se não me engano). Há ainda na minha mente espaço para um terceiro grupo de paraguaçuenses ausentes, aqueles que não moram muito distantes da nossa terrinha, mas que, por um motivo ou outro, pouco frequentam a cidade. São pessoas como as irmãs Liliana, Rosália e Rosane Maria Prado Moraes, de São Carlos, Rose Marinho Prado, de São Paulo, e meu queridíssimo tio João Bosco do Prado Mendes, em Florianópolis.

Muitos desses paraguaçuenses permanecem em contato não somente entre si, mas também entre centenas de atuais residentes da cidade, por meio do FaceBook. Por essa comunidade eletrônica nós podemos acompanhar, mais ou menos detalhadamente, a vida dos amigos que têm pelo menos uma coisa em comum: o amor pela nossa bela cidade. Melhor que o FaceBook, porém, é o sorriso, o abraço e a conversa face-to-face, o cara-a-cara que nunca pode acabar. Em férias e feriados, portanto, há muitos reencontros, como aqueles organizados semestralmente por Leylane Dias Ferreira, Cleuza Rodrigues, e outras mulheres dedicadas à permanência dos elos entre nós, "jovens" atualmente na faixa dos 45-55 anos de idade. Nos últimos anos, essas memoráveis festas, como a mais recente, em julho, O Arraial dos Amigos, têm se realizado com muito sucesso na casa da generosa e simpaticíssima Maristela Prado Dunn.

Outra forma especial de comemoração daqueles elos é mais rara, mas não menos importante. Ocorrem quando alguns de nós nos reunimos em locais bem distantes de Paraguaçu. Através da magia do carinho que temos em comum pela nossa cidade e das fortes lembranças do que lá já passamos juntos, parece que retornamos a nossa terra, sentimos de novo os aromas e vislumbramos a formosura da Biquinha, da Lajinha, da praça Oswaldo Costa, da serra da Matinada, ou dos eucaliptos na estrada para a fazenda do sr. Hermano Prado. Assim aconteceu recentemente em Londres e Roma, entre três amigas, Marilene Prado, Rosa Mignacca, e Tânia Marques, que não só conviveram em Paraguaçu muitos anos atrás, mas também compartilharam, juntas, das mesmas aventuras entre Grécia, Itália e Inglaterra. Para ser sincero, devo dizer que tais aventuras também aconteceram muitos anos atrás.

Sim, estamos todos a cada dia mais velhos (como negar?), mas também a cada vez mais ricos de boas lembranças e de ótimos motivos para relativizar, mais do que nunca, o termo "ausente" de um "paraguaçuense ausente". Ausentes estão aqueles que infelizmente cortaram seus laços afetivos e logísticos com nossa cidade. Não guardemos rancor dessas ovelhas desgarradas, naturalmente. Simplesmente agradeçamos ao Criador por nos ter postos para nascer entre o Sapucaí e a Matinada e por nos ter possibilitado amar e preservar os fortes laços ao nosso ninho, ninho que sempre será o norte de nossa bússola pessoal — nosso ponto de partida e, eternamente, nosso melhor ponto de encontro.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Belo e imperfeito





Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu
-- Em outra revista: http://www.huesoloco.org/?p=344

Outro dia acordei pelas cinco e pouco da manhã. Tentei recuperar o sono, mas minha cabeça já estava acesa e cheia de entusiasmo. Não me foi possível voltar aos sonhos de olhos cerrados, pois os sonhos de olhos abertos me chamavam. Estes logo me convenceram: eu não deveria perder o nascer do sol que, pela janela do quarto, já se insinuava com tons amarelos, lilases, roxos e vermelhos. Da janela do banheiro logo vi melhor a paisagem lá fora. Era hora de apanhar a câmera e fazer algumas fotos daquele espetáculo matinal. E foi só o começo. Dali a pouco sairia de casa em busca de mais cores e outros motivos para observar o mundo externo e criar novas imagens. 

Penso que a fotografia é — como outros meios de expressão humana, sejam eles das artes literárias, cênicas ou visuais — um poderoso elo entre o mundo interno, que existe e se transforma em cada um de nós, e o mundo externo, que podemos perceber com maior ou menor curiosidade, imaginação e sensibilidade. Ao decidirmos prestar mais atenção nos detalhes do que nos rodeia conseguimos ir muito além da nossa relação direta e pragmática com o imediato, o óbvio e o necessário. A fotografia poderá ser então o resultado dessa viagem mental e sensorial, onde há espaço e oportunidade para encaixarmos nossas representações de lembranças, preocupações, sonhos, e vasta variedade de emoções. 

Naquela manhã, que para mim começou quando sol, antes de se tornar visível, já tingia as nuvens e seu pano de fundo, o firmamento, eu pude caminhar pela orla do mar e muitas ruas da vizinhança. Estava bem disposto e animado ao ver um mundo em rápida transformação. Mais e mais pássaros, por exemplo, cantavam em múltiplos tons. Sua alegria era contagiante em face ao nascer de um belo dia de primavera já com cara de verão. Ainda se sentindo satisfeitas e renovadas com o orvalho, as folhas das árvores agradeciam o frescor da madrugada. O diafragma de minha Panasonic, azul como o céu naquele momento, funcionou intensamente naquelas duas horas de caminhada e comunhão de luzes, sons e  odores que eu compartilhava com os bichos (entre esquilos, gaivotas, lebres, marmotas e gatos, por exemplo), com as flores (como hortências, lírios, magnólias e margaridas), com as árvores centenárias, com os barcos a vela multicoloridos, e com as janelas espelhadas e reluzentes. Uma das fotografias dessa jornada acabou se tornando uma de minhas favoritas (veja-a acima). Segundo uma amiga conhecedora das artes plásticas, Glória de Sá, ela é como uma obra de Louis Comfort Tiffany (1848-1933), artista americano reconhecido principalmente pelos seus maravilhosos vitrais.

Satisfeito com minha expedição fotográfica de duas horas, pensava eu — quase ao chegar à casa — como era hora de marcar uma consulta de rotina com meu médico, Dr. Alexander Altschuller, um simpático cardiologista russo-americano com quem consulto, a cada seis meses, há onze anos. Nesse exato momento vejo um senhor a caminhar lentamente em minha direção. Trazia consigo um pequeno cão, provavelmente um poodle. Com muita surpresa reconheci o meu médico e também me dei conta da tremenda coincidência de estar pensando nele quando de repente o vi por ali. Surpresa ainda maior foi saber que há mais de 40 anos ele mora nesta cidade, Dartmouth, a apenas quatro quadras de onde moro há onze anos. De fato, foi exatamente em frente a sua casa que nele pensei, sem jamais o ter visto antes em nossa vizinhança. 

Outro aspecto desse encontro foi a diferença que notei entre os dois homens, aquele da rua e aquele do consultório. Vestido de branco e com autoridade do saber médico ele sempre me pareceu muito forte, poderoso, seguro e tranquilo. Ali, na rua, sem o aparato e o ambiente do profissional conceituado que ele é, pareceu-me um típico senhor bem idoso: fraco, lento e vulnerável. Mais um fator que me impressionou foi o elo que nos reunia naquele passeio matinal: a fotografia. Lembrei-me (e logo lhe disse) que admirava as fotos que ele próprio tirava e pendurava nas paredes da clínica onde eu o via há tantos anos. Lembrei-me também de lhe dizer que semanas atrás ouvira falar de um médico que, supostamente, fora o primeiro no país a decorar clínicas e hospitais com suas fotografias e pinturas, levando, assim, um pouco de conforto, distração, formosura e prazer aos pacientes.

Voltei para casa com mais motivos para refletir sobre a vida que levo e certas opções que faço diariamente. Vi-me mais consciente do papel e do poder que temos ao criar imagens. Pensei nas dezenas (talvez centenas) de pessoas que apreciam meu trabalho fotográfico na mídia social eletrônica, especialmente no Facebook. Vi semelhanças, mesmo que tênues, entre o hobby de meu médico e o meu. Conclui que tenho mesmo que continuar minha viagem mental e sensorial através da fotografia, porque através dela realizo a cada dia um dos maiores prazeres que possuo: compartilhar através de crônicas mensais, de músicas semanais, de fotografias diárias, todas as histórias, sensações, e sentimentos que nelas couberem, sejam eles nos momentos de paz e contemplação, como naquela manhã, ou nos momentos de dor e medo, como nas clínicas e hospitais desse mundo tão belo quanto imperfeito.

domingo, 3 de junho de 2012

Meus novos olhos



Dário Borim Jr.
dborim@umassd.edu





O mundo das percepções é fascinante.  Vivemos nele, sempre, ou já morremos, sem o perceber. Ironia à parte, nós podemos estar, às vezes mais, ou às vezes menos, conscientes dos detalhes do cotidiano, dos elementos que nos rodeiam, elementos esses que geralmente não percebemos, nem queremos ver. Em geral não queremos parar para observar ou refletir, com atenção e imaginação, sobre cheiros, cores, formas, movimentos, sabores ou sons. Passamos por tantas fontes triviais de admiração a caminho da escola ou do trabalho, como se elas não tivessem nenhum valor, nenhum atrativo, nenhuma beleza, nenhuma importância.

Quando comecei a me interessar a sério por fotografia, tornei-me mais consciente de minhas próprias tendências ao descaso para com os elementos do cotidiano e do mundo natural. Pareceu-me que eu tinha adquirido novos olhos, espécies de janelas para uma paisagem intimamente ligada a meus sentidos, mas, principalmente, a minha alma, o cerne de minha constituição emocional e espiritual. Achei, então, que jamais olharia para mundo como o fizera antes, de certo modo cego e alheio aos meus outros sentidos, por conta de minhas preocupações com o dia-a-dia, ou por conta das minhas mais variadas ideias e reflexões afastadas do que se encontrava diante de mim. Nesses novos tempos, passei até mesmo a carregar comigo, no bolso da calça ou na pasta de trabalho, minha nova câmera.

Como exemplos daquela "cegueira" e desses meus novos "olhos", relembro um incidente ao chegar a minha universidade, num desses dias comuns, repletos de tarefas rotineiras. Notei a beleza de um arvoredo refletido no enorme vidro de uma janela, fachada do prédio de Humanidades da Universidade de Massachusetts Dartmouth. Não hesitei. Tirei minha câmera e passei enquadrar a o arvoredo no visor LCD de minha Panasonic. Foi quando apareceu Gisany Parreira, uma de minhas alunas cabo-verdianas. Saindo do prédio ela se surpreendeu ao ver o professor de literatura fotografando aquela janela. Talvez querendo testar minhas hipóteses sobre o tal descaso para com o cotidiano, perguntei se ela também via o que eu estava vendo e fotografando. Ela disse-me: "Aquele aviso ali no vidro, não é?" Ela referia-se a uma placa de metal no centro da margem inferior daquela janela de aproximadamente seis metros de comprimento por cinco metros de altura. O aviso era sobre a proibição de se fumar por ali. Minha aluna não tinha notado a impressionante reflexão das árvores. Ignorava o estético, o belo, enquanto se limitava a ver o óbvio, o imediato, o prático, o "importante".

Por conta dos meus novos "olhos", tenho quase a certeza de que há praticamente três meses não para de ventar nesta região costeira do sudeste de Massachusetts. Por que sei? É que quando se deseja fazer close-ups de flores, por exemplo, o vento atrapalha. Ele intervém e se revela aos olhos de quem vê as flores e procura enfocar na sua câmera os seus minúsculos elementos de formosura. O trabalho é dobrado. Há de se dar conta do vai-e-vem da planta, de se considerar os passos de sua dança ao vento, e clicar, clicar várias vezes, até que ocaso parcialmente manipulado nos ajude a obter uma fotografia nítida e detalhada.

Tenho clicado, sim, e muito. Já foram quase quatro mil fotos nas últimas oito semanas! O dito acaso faz a sua parte. Nós devemos fazer a nossa, estando atentos ao que o acaso nos traz. Outro dia meu filho mais novo, Zach, esqueceu de levar algo para a escola e me telefonou. Saí da universidade e fui ajudá-lo. Passei em casa para apanhar uma raquete de um esporte típico desta região do país, o tal de lacrosse, mistura de tênis e hóquei sobre grama. Ao retornar  à universidade, perto de uma hora da tarde, resolvi "quebrar a rotina" e observar por uns minutos as paisagens ao longo de um belo riacho paralelo à estrada. Fiquei encantado com o que vi e com o que fui descobrindo pelo visor de minha câmera, fotos que poderiam "acontecer", se eu clicasse, ou que já tinham "acontecido" -- todas elas observáveis pelo mesmo visor eletrônico.

Meu entusiasmo foi crescendo. É que havia certa mágica na composição, justaposição e fusão dos elementos naturais. Árvores altas e altivas alinhavam-se na outra margem do riacho. Quase não tinham cores. Nesse momento eu me encontrava bem rente à beira d'água. Olho para baixo. Percebo que, sob o meu queixo, a água reflete o céu azul e as árvores, mas tudo sob efeito dos movimentos e da plasticidade do próprio leito do riacho após dois dias de chuva. Os efeitos multicoloridos também vinham das pedras, da terra sob e sobre elas, da relva e de outras plantas rasteiras e coloridas nas margens. Os efeitos eram, principalmente, criados pelos raios de sol, além das sombras e tons do fundo do riacho.

A imagem que via ali, praticamente adjacente aos meus pés, é emoldurada pela grama e pelas pedras da margem, onde piso, e, como eu dizia, se refletem as árvores do outro lado. Mas estas estão de cabeça para baixo. Eu fotografo aquela imagem espelhada, e o resultado e' um retrato — claro — da imagem do espelho que retrata as árvores. Na água as árvores estão pequenas. Na foto obtida, já dão a impressão de terem readquirido seu tamanho normal. Já no meu escritório, certifico-me de que, para meu deleite, a foto que tirei minutos antes é um tanto rara, misteriosa. Vejo, então, que se eu inverter aquela foto (portanto, a imagem da imagem da árvores), a nova imagem que tenho (resultado da inversão que executo no computador) é ao mesmo tempo impressionista e surreal. Com relva suspensa no ar e árvores com troncos embaçados surgindo do leito do rio, essa nova foto repõe as árvores de cabeça para cima. Nessa nova imagem da imagem da imagem da imagem, tudo parece mágico, mas não é, ou nada é somente o que é. Tudo também é o oposto do seu oposto, um pouco modificado, o espelho que inverte e altera a imagem de um espelho, e assim por diante.

Essas são para mim apenas algumas das várias lições que venho recebendo depois de ganhar novos "olhos". Outras também transformaram o meu viver. Não passo mais por uma poça d’água sem ver que tipo de imagem ela reflete. Por poder e querer caminhar diariamente, aprendi que as poças ressurgem nos mesmos lugares da cidade, mas sempre com novas paisagens na sua superfície. Além disso, mal consigo dirigir sem observar as janelas das casas, os passarinhos e outras aves no chão ou no ar, e apaixonadamente, as esculturas da natureza sob a forma de sugestivos troncos, galhos, folhas e flores.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Ressaca dos tempos do Cine Íris





                    [Foto de Evaldo Prado de Souza]

Dário Borim Jr.

Segundo o meu Novo Dicionário Aurélio, há sete sentidos para o termo "ressaca". Os dois últimos são os mais conhecidos entre as pessoas que não vivem no litoral: "Enfado, cansaço provocado por noite passada em claro" ou a "Indisposição do bêbado após curada a bebedeira". A primeira definição no Aurélio, porém, tem o significado que lhe outorga a metáfora no título desta crônica: "Refluxo de uma vaga, depois de se espraiar ou de encontrar obstáculo que a impede de avançar livremente".
Vaga, nesse caso, é uma onda do mar. Foi enorme, de fato, a vaga de reações suscitadas por minha primeira crônica sobre "Os tempos do Cine Íris". Embevecido, agradeço o interesse geral. Meu pai me disse que de vez em quando ouvia um zunzum na sua loja, a Casa Dois Irmãos, sobre aquele texto. Muitos comentários que me chegaram por e-mail ou FaceBook continham mais causos sobre o cinema e a praça Oswaldo Costa.
Os elogios que bateram em minha praia me fizeram sorrir de contentamento, pois, é claro, ego de escritor é sempre massageado pelos carinhos dos seus leitores. Alguns queriam mais e me lembravam de que eu tinha prometido uma segunda crônica sobre o mesmo tema. Aqui vai, então, uma nova onda que junta água e espuma daqueles que reagiram a minha vaga de lembranças de um tempo tão especial na história de Paraguaçu. Obrigado a todos que de uma forma ou de outra, aqui citados ou não, contribuíram para essa "ressaca".
Maristela Faria, moradora de São Paulo, por exemplo, solicita que se escreva sobre as barraquinhas com o Jazz Sudan tocando na porta da Igreja, e os belíssimos canteiros de papoulas e bocas de leão plantados pelo João Idalino. "Eu voltei mais um pouco aproveitando a sua idéia, pois sou da década de 50. Lembrei com saudades da linda voz do Sr Pedro Tavares e posteriormente do Carlitos anunciando o Bienvenido Granda, Cascatinha Inhana cantando Chalana e outros."
Voltei aos meus tempos de adolescência, quando passava as férias nessa cidade que tanto amo, escreve Anamaria Prado. "Recordo que Violeta Ferraz e Zé Trindade também se apresentaram no Cine Íris e eu, carioca, fiquei impressionada de vê-los em Paraguaçu."
Sua crônica foi uma gostosa viagem ao passado, confessa Rosane Moraes, de São Carlos, também presente nas peças de teatro da tia Selma Násser. "De algumas coisas lembro-me bem, outras eu reavivei na memória. Sabe que eu também participei do musical de Walt Disney? Nem me recordava mais, porém, trechos da música vieram a minha mente 'Pato Donald furioso, seus sobrinhos já fizeram papelão, tio Pateta, de pileque... Papai Walt Disney,te agradecemos, e estarás sempre nosso coração'".
Prima Lília Rodrigues, residente em São Paulo, encheu a bola do cronista e jogou uma pitada de humor típica do seu pai, tio Delmo: "Eu me envolvo e viajo nos seus textos. Acho uma delícia. Do Cine Iris, eu me lembro de quando foi passar o filme E o Vento Levou. Daquela vez o filme não chegou à cidade. Ou seja, o vento levou mesmo".
Viviane Vigato, da vizinha Varginha, recorda como era lindo aquele laguinho na praça Oswaldo Costa. "Que delícia a gente andando com as amigas, parecendo em 'procissão'".  Tio José Adolfo Mendes fala dos diversos "programas" na praça, dependendo da idade que a gente tinha. Por exemplo, "brincar de pique ao som do Cine Íris ou rodar pela praça para paquerar as meninas que mais disputávamos".
Deu até pra sentir o cimento frio do banco da praça e ouvir a Rita Pavone, comenta Nélida Prado. "Deu até pra andar pisando só nos retângulos brancos do piso. Eu adorava fazer isso, nunca pisava no preto, dava azar".
De Paraguaçu mesma vem o apoio de quem tem semelhantes preocupações e afazeres. De Goretti Prado, "os parabéns pelo resgate da memória da nossa história". Para Olga Prado, é importante não esquecermos as famosas gincanas na porta da igreja, "que incentivavam a busca pelas informações sobre a nossa cidade, seus habitantes ilustres, fatos históricos e que também traziam muita diversão. Qual padeiro daquela época não tentou fazer o maior pão? Quem já na não tentou colocar 30 pessoas dentro do fusca?". Ela tem saudades disto e arremata: "É lastimável que nossos filhos mal tenham o Ideal como opção de lazer".
A atenção e o carinho dos leitores podem partir de muito longe. Lá de Valência (Espanha), a amiga Blanca Rodriguez ressalta o sacrifício de se escrever por prazer em meio a tudo mais na vida: "Enseñas, tienes programa de radio, familia y vida personal... Puedes dar clases de organizacion del tiempo. Felicidades por tu nueva hija literaria". 
Em Londres (Inglaterra), Rosa Mignacca diz que leu aquela crônica "como quem estava chupando um picolé de maracujá. Amei, me transportei pra praça enquanto lia, e quero mais de uma história tão saborosa".
Concluindo, Cristina Schmidt, em Goiânia, acha que o cronista "andou fazendo a gente viajar literalmente! Fiquei com gostinho de bala Chita na boca!" Para seu irmão Frederico, "Nos tempos do Cine Íris" é uma lembrança de que todos nós fazemos parte da grande família "Paraguaçu" e jamais nos esqueceremos disso. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A foto nossa de cada dia


A foto nossa de cada dia

Dário Borim Jr
dborim@umassd.edu




Sou um apaixonado pela vida. Por isso mesmo, às vezes, mas muito de vez em quando, estou de mal com ela. Porque a paixão implica em querer muito, e mais, e muito mais, só que nada é eterno. O próprio amor pela vida precisa ser sempre renovado, reenergizado e reinventado. A vida em si e o amor por ela são, portanto, como o amor romântico.
Por ser um apaixonado pela vida, sou também apaixonado por literatura, que leio, ensino ou escrevo; por música que ouço sozinho ou toco para o mundo curtir pelo meu programa de rádio e internet; por cinema, que assisto ou mostro a meus alunos; e pelos causos da vida real, que me contam e reconto nas minhas crônicas e nos encontros pelos bares da vida. Esses hábitos e interesses tornam minha vida mais intensa, mais musical, mais cheia de vida, com seus dramas, euforias e mistérios.
Eu também gostaria de poder imaginar e recriar o mundo nas telas, mas não sou pintor, e desenho muito mal desenho livre, quero dizer. Até que no desenho arquitetônico me dei relativamente bem. Isso foi durante meu curso secundário de Edificações, em Belo Horizonte. Agora, nos últimos três anos, e nos últimos três meses, em particular, cresceu em mim uma velha fascinação por imagens. De repente tornei-me um fotógrafo amador, um tipo de artista de câmera na mão ou no bolso, com olhar inapelavelmente curioso e criativo para tudo e para todos. É um modo de amar a vida ainda mais, mais amiúde e mais detalhadamente. Não quero dizer que estou exatamente obcecado com as possibilidades de retratar o mundo através do meu diafragma eletrônico. Mas quase! Sim, minha câmera japonesa Panasonic, uma Lumix DMC-ZS10 azul, é quase que uma extensão dos meus olhos, com os quais compete. Tantas vezes é ela quem vence: enxerga mais longe através de um ligeiro e poderoso jogo de lentes de marca alemã, a Leica.
Antes de falar um pouco do que anda rolando no mundo da fotografia na era da internet (e do Facebook, em particular), eu queria voltar no tempo e recordar o amor de meu pai, Dário Borim, por retratos. Ele produziu e nos deixou vários álbuns com os frutos de sua Rolleiflex, milagre alemão de 1939 que revolucionou o mundo da fotografia. (E ela ainda é produzida e muito ambicionada em plena era digital!)
Outra figura memorável é a do sr. Nunes Prado, artista das lentes que registrou em filmes e em papel as vidas de tantas gerações de Paraguaçu. Eu não tinha nascido quando (se, de fato) existiu algum lambe-lambe em nossa terra, mas, um terceiro personagem da minha memória fotográfica é a do Sr. Stanislaw Ostrowisk, aquele senhor que de vez em quando passeava pela praça Oswaldo Costa tirando fotos pequeninas para vendê-las em forma de monóculos de plástico. Quem sabe um dia desses ainda vou encontrar no fundo de um baú o monóculo que o sr. Polonês fez de mim, numa pose de moleque transvestido em roupa de domingo.
E por falar nelas, outro dia uma querida amiga de infância, a Rosane Maria Prado Moraes, filha de Heitor e Maria Moraes, residente em São Carlos há muitos anos, postou no FaceBook uma foto dos velhos tempos, uma daquelas de monóculos. Ela e muitos amigos nossos estão empenhados em escanear e postar milhares de antigas fotos de familiares e amigos. Antes de aparecer o tal de FaceBook, a internet já facilitava, é claro, o hábito de compartilhar fotografias, mas nos últimos dois anos essa prática se popularizou enormemente. Isso é fascinante..
O deleite popular da fotografia não é coisa recente, com certeza. Como muita gente por aí, lembro-me bem daquela Olympus Trip 35, fantástica câmera de bolso japonesa que entre 1967 e 1984 superou a venda de 10 milhões de unidades. Hoje existe um website exclusivamente dedicado às belas fotos tiradas por jornalistas ingleses com essas pequenas e competentes câmeras. Naquela época, o problema não era apenas ter dinheiro para comprar uma máquina. Era preciso ter grana para revelar as fotos e, depois, pagar o correio, se quiséssemos compartilhá-las. Ao morar nos Estados Unidos entre 1981 e 1982 tirei perto de mil fotografias, mas meus pais e meus amigos não puderam ver nem 10% delas antes de eu voltar. 
Hoje, no mesmo minuto em que tiro uma foto posso postá-la no FaceBook ou enviá-la para centenas de amigos que poderão vê-las antes mesmo desse primeiro minuto se expirar. Tão gratificante quanto receber essas fotos é poder comentá-las em público, atingindo centenas de amigos que por elas se interessarem. Desse modo as fotografias mostram um mundo do presente ou do passado que ressuscita múltiplas histórias oriundas de pessoas de diversas idades. Através delas, por exemplo, não só fiquei sabendo, mas vi, que minha mãe (sim, d. Lucci Prado Mendes Borim, hoje chegando à beira dos noventa anos) andava a cavalo na juventude. Anna Campos e Silva, minha amiga no FaceBook, postou uma foto em que sua mãe, d. Aparecida Prado, passeava com Lucci, além das suas amigas, tia Vanda Borim Lappoli e d. Onésia Tavares, entre outras.
Esse é o poder das fotografias. É por causa dele que eu, na era digital, já fiz minha Panasonic (a quem chamo de Azulinha) trabalhar incessantemente desde que a recebi pelo correio 12 dias atrás. Já foram mais de 800 cliques e não sei quantas emoções em mim e em centenas de amigos. Mas isso é pouco. Hoje, com a chance de escanear e repassar verdadeiras relíquias do passado, o show da vida ficou ainda mais memorável e apaixonante. Fotos que até pouco tempo mofavam em álbuns abandonados, hoje são motivos de pasmo, delírios, entre nossas próprias recordações e as fascinantes revelações que nos fazem os amigos ao ver, lembrar e comentar as mesmas fotografias. 
Vivemos num século XXI digno das melhores fantasias de ficção científica, e minha paixão pela vida se renova a cada olhar ao meu redor e na tela do meu computador. Acompanho as transformações da natureza, por exemplo, como quem nunca tivesse aprendido na escola que, embora o sol se levante e se ponha todos os dias, não há um único dia de bichos, cheiros, cores, formas, luz, plantas, nuvens, reflexos, sons, e sombras como os de outro dia. Assim foi e assim será. Amém!  

terça-feira, 20 de março de 2012

Nos tempos do Cine Íris


Nos tempos do Cine Íris

Dário Borim Jr.



A praça Oswaldo Costa é do povo, assim como o céu é do avião. Caetano Veloso que me empreste seu delicioso verso em "Frevo novo", sobre a lendária praça Castro Alves em Salvador, para eu iniciar essa "crônica nova" em viagem, no céu da memória e da imaginação, até minha querida Paraguaçu. Convenhamos, poucas cidades pequenas têm uma praça tão charmosa como a nossa, e pouquíssimas têm na sua história um cine-teatro como o Cine Íris. Como falar, no curto espaço de uma crônica, desse enorme palco de recordações? Por onde começar e onde terminar? Acredito que será necessário escrevê-la em duas partes para resgatar apenas algumas das histórias que ainda estão por serem registradas. Então, se chegarem ao fim dessas mal traçadas linhasbrincadeira, né, pois elas estão certinhas por culpa do computador—e se quiserem mais, podem esperar porque virá uma segunda crônica incluindo mais "causos" daquela inesquecível era de cinema em nossa cidade.
Nos anos 1960 e 70 o Cine Íris era mesmo a alma e o coração daquela praça, e ela, por seu turno, era um microcosmo de toda a nossa Paraguaçu. Os autofalantes tocariam centenas de vezes umas dezenas de versos, como "Dio, como ti amo, non e possible/ Avere tra le braccia, tanta felicita" na voz da italianíssima Gigliola Cinquetti. Eu particularmente me emocionava quando o antigo laguinho e todos os bancos da praça ouviam comigo o Roberto Carlos cantar "Como é grande o meu amor por você". E lá vinham sucessos estrondosos de Wanderléia, Os Incríveis, Jerry Adriani e Rita Pavoni. Na verdade havia música para gente de toda idade e gosto, inclusive melodramas de Agnaldo Rayol, Nelson Ned e Nelson Gonçalves. O fato é que desde o fim da tarde até as primeiras horas da noite, podia-se andar de bicicleta ou fazer o footing na praça deliciando-se ao som que saía das duas ou três poderosas gargantas de ferro do Cine Íris. Quantos namorados sonhavam juntos e quantos casais se casariam depois de um flerte por ali, onde o romance também se nutria dos aromas das flores de um jardim tão belo e bem cuidado.
 De fato, o cinema se fazia presente por todos os cantos da cidade não só por conta daqueles poderosos autofalantes fixos, mas também por conta do autofalante móvel que circulava pra baixo e pra cima nas mãos do competente cantor e animador de shows chamado Airton, aquele fanático torcedor do Palmeiras que tantas vezes passou pela Casa Dois Irmãos só para gritar bem perto das orelhas do meu tio Delmo: "Cê viu? O Parmeira meteu o fumo no Corintia". Quando Airton não se vangloriava do time dos periquitos, ele cantava a todo vapor e vendia broas de fubá ao anunciar as atrações do cinema pelas ruas da cidade. A pronúncia que ele tinha dos nomes das estrelas de Hollywood era especial: "Não perca. É hoje, no Cine Íris: Ben Hur, com Xarton Reston. Amanhã tem mais, o sensacional O dólar furado, com Giuliano Gemma!"
Aquele era o tempo das balas Chitas compradas no cinema (um pouco mais caras) ou no bar mais famoso da época, o Shangrilá. Época dos beijinhos escondidos e prazeres atrevidos da mão boba, dos tagarelas que não calavam a boca por nada desse mundo. Muitos já sabiam os diálogos (depois de ver o mesmo filme meia dúzia de vezes) e falavam alto antes dos atores na tela. Mais comuns ainda eram as guerras de pipoca, e mais temida era a figura do "lanterninha", que tentava apaziguar os ânimos da rapaziada excessivamente namoradeira ou bagunceira. Difícil manter a ordem, claro, se o filme arrebentava muitas vezes ou se o maquinista levava muito tempo para emendar as pontas da película e reiniciar o filme. A vaia era de deixar a gente surda. Dependendo da gravidade da zorra, era hora do famoso e saudoso Carlito (Carlos Prado Campos), dono do cinema, descer e subir o corredor central com um olhar de fera e uma voz impaciente (coitado), às vezes ameaçando de chamar a polícia e expulsar os mais exaltados.
A magia dos filmes vinha de nossos maiores ídolos, um Alain Delon, uma Brigitte Bardot, un Rin-Tin-Tin, uma Sophia Loren, um Zé do Caixão e, também, um Mazzaropi, que um dia visitou nossa cidade. Eu estava lá e mal acreditei: o quê, nosso grande herói caipira em Paraguaçu?
Pois é, nossa cidade não era nada "típica" não. Havia algo de muito especial no ar, na água, sei lá. Alguma coisa metafísica que dava um gosto tão especial àquilo tudo. As escolas tinham campeonatos de futebol. O Fabril tinha um nome a zelar. Vários circos nos visitavam. A cidade tinha duas ou três boates, por exemplo. Lembro-me da Super Plá e da Tesão. O bar do Vatinho era um ímã para todos nós que ali passávamos tardes e noites regadas a muita Antárctica. Havia animadíssimos bailes nos três clubes, o Democrata, o Ideal e a Liga Operária. Tínhamos também um dinamismo cultural impressionante, com festivais de música semanais e com peças de teatros apresentadas por crianças sob a direção da (tia) Selma Sólia Nasser. Lembro-me de um musical que fizemos, com os personagens de Walt Disney. Que festa!
E que festas animadas tinha a própria igreja. Os leilões de prendas e comestíveis eram disputadíssimos. Nós pirralhos sonhávamos com um frango assado embalado em papel celofane. Aquelas festas tinham até partidas de futebol de garotinhos de cinco anos organizadas pelo Múcio Prado Campos e Cícero Viana, jogadas ali mesmo no adro da matriz.
Em poucas palavras: éramos felizes e sabíamos!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Causos de avião




Dário Borim Jr.

Viajar é quase sempre bom. Quando a viagem é longa e passamos muitas horas ao lado de alguém que nos enche de histórias interessantes, melhor ainda. O acaso (será que isso existe mesmo?), então, reúne pessoas que, se estiverem num avião, acabam almoçando ou jantando e tomando umas biritas, como se fossem velhos amigos. Como gosto e, por causa de minha profissão, posso viajar amiúde, tenho tido várias oportunidades de desfrutar de excelentes conversas pelos ares, atravessando mares e matas, longitudes e latitudes de um mundo vasto, mas cada vez mais acessível às pessoas de quase todas as classes sócio-econômicas. Como exemplo, Creuza, uma simpática senhora que faz limpeza na casa de minha irmã Silvinha há muitas décadas, foi recentemente a Lisboa visitar o filho.
Em minha mais recente viagem internacional também fui a Lisboa. No itinerário de ida, passei primeiro por Amsterdã. Na rota sobre o Atlântico assentei-me ao lado de Frank, um engenheiro alemão com quem conversei em inglês por horas a fio. Foram muitos os assuntos e, algumas, as garrafinhas de vinho tinto. Soube que além de criar cavalos nos arredores de Frankfurt, ele treina e chefia um grupo de vendedores e experts em assuntos ligados a seguros industriais operando em diversos países. São engenheiros (que não trabalham exatamente com engenharia) e outros profissionais. Não deixei de falar, com orgulho, de meu irmão Tatau, também engenheiro e também empurrado pelas circunstâncias a mexer com muito mais coisas do que engenharia ao atingir um alto posto na Vale, enorme empresa na área de minérios. Além do mais, Frank ficou sabendo que Tatau trabalhou por muitos anos para uma companhia alemã do ramo, a Ferteco.
Ao retomar esse assunto de longas viagens aéreas lembro-me, claro, que já escrevi algumas crônicas sobre outros excelentes companheiros que o destino me pôs ao lado. Ano e meio atrás foi a vez de uma jovem catarinense, Gabriela, cuja história pessoal me tocou e me inspirou a refletir sobre grandes mistérios, como o papel do amor, da amizade, e da morte de entes queridos nas nossas vidas.
Hoje quero recordar um encontro tão comovente quanto divertido, também em jornada rumo a Lisboa. Era minha primeira viagem a Portugal, há oito anos. Antes de chegar à bela capital às margens do Tejo, meu primeiro voo seguiria de Boston para Paris. Mal tinha eu assentado em minha poltrona quando comecei a perceber o jeito alegre de quem estaria ao meu lado pelas próximas oito horas. Wesley, um senhor de uns setenta e cinco anos, fazia brincadeira com a aeromoça antes mesmo de decolarmos. Quando as garrafinhas de vinho começaram a chegar, nós dois já levávamos um papo animado. Já éramos meio amigos. Ao sabor delas, uma após outra, tínhamos nos tornado dois meninos sorridentes.
A um dado instante, Wesley soube que além de professor universitário eu era radialista, com ouvintes espalhados pelo mundo afora. Ele se levantou e se voltou para trás para anunciar em voz alta a toda a cabine: "Gente, que honra! Estou assentado ao lado de uma celebridade da mídia!"
Logo quis saber de minhas pesquisas e tal. Disse-lhe que o tema de minha dissertação de doutoramento era a narrativa autobiográfica, assunto sobre o qual eu faria uma palestra na Universidade de Coimbra dali a poucos dias. Quando eu lhe disse que minha tese estava ali comigo, pediu para vê-la. E não é que esse senhor passou a ler ali mesmo, por vários minutos, algumas partes do meu primeiro livro?
Houve bastante tempo para Wesley me contar um pouco de sua longa história de vida. Nascido no País de Gales, tinha se mudado para os Estados Unidos com os pais e mais nove irmãos, todos fugindo da miséria que assolava certas partes da Europa na década de 1920. O destino inicialmente lhes foi ainda mais cruel. Seu pai logo morreu, deixando a esposa com dez filhos para criar em terra estrangeira onde, a seguir, chegou a Grande Depressão: desemprego em massa, fome, etc. Em tais anos de escassez geral, o governo do estado de Maine, onde moravam, não tinha pena de imigrantes: não lhes concedia comida subsidiada. A família de Wesley sobreviveria à base de peixes que todos pescavam. Eles os comiam ou trocavam por outros comestíveis.
O pior passou, e anos mais tarde Wesley foi para a França, onde serviu à marinha dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Disse que foi porque foi obrigado, mas foi com a determinação de não matar ninguém. Mesmo na linha fogo não atirava no inimigo.  Ocupou-se de carregar os colegas feridos ou mortos. Para ele o horror maior foi ver tantos deles perderem a vida nos seus braços. A seu modo, Wesley muito colaborou pela Tomada da Normandia, em 1944. Por conta dos serviços prestados ao povo francês naquele Dia-D, ele agora voltava à França, em viagem ao meu lado, para receber homenagens oficiais. Não queria. Não gostava de comemorações por motivo de guerra, mas acabou cedendo aos apelos vindos dos dois lados do Atlântico.
O tom de nossas conversas variou entre o jocoso e o patético, até que exaustos acabamos dormindo um pouco antes de aterrissar no aeroporto Charles de Gaulle. Antes, porém, presenciei mais um "causo" de humor desse grande homem. Quando furtivamente lhe disse que os óculos daquele professor-doutor à sua direita eram de marca Ph.D., ele disse que tinha uma surpresa, algo análogo àquela marca inscrita na armação dos meus óculos. Pediu que eu fechasse os olhos e que só os abrisse dali a segundos. Eu não tinha a menor ideia do que me esperava. Quando pude olhar para ele novamente, o ex-combatente pacifista estava com sua dentadura superior nas mãos: "Veja aqui, Dr. Dário. Você tem Ph.D. comprovado até nos óculos. Eu tenho minha identidade confirmada e nome registrado até nesse instrumento de minha velhice". Pensei com meus botões: com um humor desses, vai-se longe na vida, muito além da Normandia.

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